Nos livros antigos de Gales e da Irlanda existem tradições que, se as compararmos com o mito da Atlântida, não podem ser justificadas por outra teoria que não a de serem originalmente dele derivadas. O material tradicional, nos livros antigos de Gales, que aborda o tema de territórios submersos por cataclismos, é tão extenso que seria necessário um volume inteiro só para o compilar. Antes de ensaiar uma justificação da teoria de que as lendas galesas de dilúvios estão relacionadas com a catástrofe atlante, podemos, talvez, examinar algumas das mais conhecidas.
No livro de «Caradoc», de Nantgarvan, que remonta ao Século XII, e no livro de «Jevan Brechva, Thomas Jones» de Tregarn descobriu, em 1601, certos versos conhecidos como as Tríades da Ilha da Grã-Bretanha. Estas foram impressas pelo Rev. Edward Davies no seu livro «Celtic Researches» (Londres, 1804). Sob o título «Os Três Eventos Terríveis da Ilha da Grã-Bretanha», lemos que estes consistiram de:
“Primeiro, a explosão do lago de águas e a submersão de todas as terras, pelo que toda a humanidade se afogou, excepto Dwyvan e Dwyvach, que escaparam numa embarcação nua (sem velas), e foi a partir deles que a Ilha da Grã-Bretanha foi repovoada.”
“O segundo foi o terror do fogo tempestuoso, quando a terra se despedaçou até Annwn (a região inferior) e a maior parte de todos os seres vivos foi consumida.”
“O terceiro foi o Verão escaldante, em que os bosques e as plantas foram incendiados pelo calor intenso do sol, multidões de homens e animais, tipos de aves, répteis, árvores e plantas, perderam-se irrecuperavelmente.” O dilúvio a que se faz alusão na primeira tríade é a explosão do lago de Llyn Llioi. A mesma história, praticamente, é contada sobre Llyn Tegid, perto de Bala, em Merionethshire, e, como observa o falecido Sir John Rhys, “provavelmente todos os outros lagos de Gales teriam, supostamente, habitantes abastados com manadas de gado, e nos nossos dias supõe-se que cada lago se terá formado pelo aluimento de uma cidade, cujos sinos podem ainda hoje ser ouvidos, por vezes, dobrando alegremente”.
O facto de a memória de um território submerso ser tão universal no País de Gales indica certamente a existência de uma tradição mais antiga e enraizada. “Os druidas” diz Davies[1], “representam o diluvio sob a figura de um lago, chamado Llyn Llion, cujas águas terão explodido e coberto toda a face da terra. Daí eles considerarem um lago como o símbolo justo do dilúvio. Mas o dilúvio em si mesmo era encarado não apenas como um instrumento de punção para destruir os habitantes perversos do globo, mas também como uma purificação divina, que limpava a ruína da corrupção e purificava a terra para receber os justos, ou seja, o patriarca deíficado e a sua família. Em consequência, o dilúvio era considerado peculiarmente sagrado, e comunicava o seu carácter distinto aos lagos e baías através dos quais era localmente representado.”
O Lago de Llioi, então, nas mentes dos galeses do Século XII, era um símbolo nítido de dilúvio e de catástrofe causada pela água. De uma classe algo diferente é a tradição do Cantref de Gwaelod, ou “Os Cem Submersos“, que relata como a planície de Gwyddneu foi inundada. “Esta história” diz o Professor Lloyd[2], “surge pela primeira vez num poema do «Livro Negro de Carmarthen» (53b, 54a), escrito na última parte do livro e, portanto, por volta de 1200. Este poema foi traduzido muitas vezes; existe, por exemplo, uma versão inglesa na obra «History of Cardiganshire», de Meyrick (2), 153, e uma versão em galês moderno em «Cymru Eu» (p. 6). A melhor é, contudo, a mais recente, a de Sir J. Rhys, em «Cymmrodorion Transactions», de 1892-3 (pp. 14-16), segundo a qual parece que a planície de Gwyddneu foi inundada pelo mar devido à maldade dos seus habitantes, que se tinham entregue à comida, à bebida e a um orgulho insolente. A pessoa que libertou este julgamento sobre a terra foi uma donzela, talvez chamada Margaret (“Mererid“) que, numa altura de festa, permitiu que as águas de um poço mágico que se encontrava a seu cargo escapassem e inundassem os campos […] Esta é a história primitiva; é complementada num ponto pelo compilador da forma mais antiga da obra «Pedigrees of the Saints» (que data também aproximadamente de 1200), que fala de cinco “santos” como filhos do rei Seithennin da Planície de Gwyddno, cujo reino foi engolido pelo mar. Para encontrar o germe da lenda moderna, que é em vários aspectos muito diferente, temos de olhar para a terceira série das «Tríades», datada do Século XVI; diz-se aí que o terceiro dos Três Completos Bêbados da Grã-Bretanha (um grupo festivo desconhecido na literatura triádica mais antiga) era Seithennin, o Bêbado, Rei de Dyfed, que, embriagado, soltou o mar sobre Lowland Hundred, uma região de belas cidades, património de Gwydnno Garanhir, rei de Ceredigion. A donzela do poço desaparece nesta versão e Seithennin torna-se o autor da má acção, e o reino inundado já não é o seu, mas sim o do seu vizinho, Gwyddno. Mas a famosa represa ainda não tinha sido introduzida na história. Foi o antiquário Robert Vaughan de Hengwrt (1592-1667) que primeiro teve a ideia de ligar a história de Lowland Hundred com o caminho elevado natural que existe perto de Harlech, chamado pelos camponeses, tanto nesse tempo como ainda hoje, “Sam Badrig“, ou Caminho de St. Patrick. A explicação popular, sem dúvida, diz que esta era a estrada particular que o santo usava para regressar a casa, à sua adorada Irlanda, mas para Vaughan é “uma grande muralha de pedra construída como um muro contra o mar”, que ele não tem dificuldade em supor ter sido em tempos um baluarte do reino sepultado. Lewis Morris, no século seguinte, adoptou a mesma ideia e, recordando o poema do «Livro Negro», adicionou a sua própria sugestão “de que por embriaguez as comportas tivessem sido deixadas abertas” (Celtic Remains, p. 73; cf. p. 390). Mas era ainda necessário mais um toque para dar a esta narrativa a sua forma moderna; a questão das comportas tem de ser especificamente atribuída a Seithennin, que deve desempenhar o papel do porteiro embriagado. Isto é feito em «Cambrian Biography», de Owen (1803); sob o patrocínio de um estudante tão influente da antiguidade galesa, a história assim moldada ganhou grande popularidade e proporcionou um tema atraente para tratamento literário. Os ingleses familiarizaram-se com ela através das páginas fascinantes de «The Misfortunes of Elphin»; para os galeses, ela foi vigorosamente contada nos versos de Hiraethog e leuan Glan Geirionydd.”
Davies cita o registo da catástrofe conforme é dado nas «Tríades»: “Seithinin, o Bêbado, filho de Seithin Saidi, rei de Dyved, na sua embriaguez deixou entrar o mar sobre Cantre’s Gwaelod, destruindo assim todas as casas e terras do local, onde antes desse acontecimento existiam dezasseis cidades, as melhores de todas as cidades de Gales, à excepção de Caerleon Upon Usk. Este distrito era domínio de Gwyddnaw Garanhir, rei de Cardigiawn. O evento teve lugar no tempo de Emrys, o Soberano. Os homens que escaparam à inundação deram à costa em Ardudwy, na região de Arvon, e nas montanhas de Snowdown, e em outros locais que até então eram desabitados.”
“Esta é, sem dúvida, a substância de uma velha mabinogi, ou lenda mitológica, e não deve ser entendida como história verídica. Pois, em primeiro lugar, a baía de Cardigan existia de facto no tempo de Ptolomeu, que assinala os promontórios que a circunscrevem e a foz dos rios que nela desaguam quase na mesma posição relativa em que se encontram no presente. Mas nem Ptolomeu nem qualquer outro geógrafo da antiguidade, menciona a existência de uma única dessas dezasseis cidades, que consta terem desaparecido no Século VI.”
“Em segundo lugar, sabemos o bastante da geografia do País de Gales, tanto antiga como moderna, para concluir decididamente que um único Cantrev, ou cem, nunca conteve dezasseis cidades que se comparassem minimamente com Caerleon, tal como seria supostamente na era de Gwyddno.”
“Mais uma vez: o incidente é geralmente representado como tendo acontecido em consequência de alguém se ter esquecido de fechar uma comporta; uma causa inadequada, certamente, para o alegado efeito. E essa omissão é imputada a um filho de Seithin Saidi, rei de Dyved, uma personagem que já encontrámos nas regiões da mitologia.”
Esta lenda, claro está, não é mais nem menos do que uma versão galesa da lenda de Ys, a cidade submersa da Bretanha, cuja história é contada no meu livro «Legends of Brittany» ou talvez seja mais correcto dizer que ambas as histórias têm uma origem comum e estão profundamente entranhadas na tradição celta do passado. Chamo ainda a atenção para o facto de ambas concordarem com a tradição da Atlântida na circunstância de a terra ter sido engolida pela água em consequência da perversidade dos seus habitantes.
Conta-se uma história semelhante sobre o Lago Savadda, em Brecknockshire, que Davies relata como se segue[3].
“O local onde se encontra hoje o lago era antes ocupado por uma grande cidade; mas constava que os seus habitantes eram muito perversos. O rei enviou o seu servo para avaliar da veracidade deste rumor, com a ameaça de que, caso este se revelasse fundado, ele destruiria a cidade como exemplo para os outros súbditos. O enviado chegou à cidade ao final do dia. Todos os habitantes estavam envolvidos em ruidosas festividades e entregues a excessos. Ninguém olhou para o desconhecido nem lhe ofereceu os rituais da hospitalidade.
Por fim, ele viu a porta aberta de uma habitação humilde, na qual entrou. A família tinha-a abandonado para se dirigir ao local do tumulto, todos menos uma criança, que chorava no seu berço. O enviado real sentou-se ao lado deste berço, acalmou o pequeno inocente e ficou desgostoso ao pensar que ele teria de perecer na destruição dos seus vizinhos. Assim passou o estranho a noite; e, enquanto distraía a criança, deixou cair acidentalmente a luva dentro do berço. Na manhã seguinte partiu antes que nascesse o dia, para levar as tristes notícias ao rei.
Partira há pouco tempo quando ouviu um barulho atrás de si, como um tremendo ribombar de trovão misturado com gritos e lamentos de consternação. Parou para ouvir. Agora parecia o rebentamento de ondas; e depois ficou tudo mortalmente silencioso. Ele não conseguia ver o que acontecera, pois ainda era escuro, e não sentia qualquer desejo de voltar à cidade, pelo que prosseguiu a sua viagem até ao nascer do sol. A manhã estava fria. Procurou as luvas e, ao encontrar apenas uma, recordou-se onde deixara a outra. Estas luvas tinham sido um presente do seu soberano. Decidiu voltar para buscar a que deixara para trás. Quando se aproximou do local da cidade viu, surpreendido, que não lhe surgia à vista nenhum edifício, como sucedera no dia anterior. Avançou mais alguns passos. Toda a planície estava coberta por um lago. Enquanto olhava para esta cena nova e terrífica, notou um pequeno ponto no meio da água; o vento empurrou-o gentilmente na direcção da margem onde ele se encontrava; à medida que se aproximava, reconheceu o próprio berço onde deixara a sua luva. A sua alegria com este penhor do favor real só foi acentuada pela descoberta de que o pequeno objecto da sua compaixão chegara à margem vivo e incólume. Levou a criança ao rei e disse a sua majestade que era tudo o que conseguira salvar daquele lugar amaldiçoado.”
“Esta pequena narrativa contém, evidentemente, a substância de uma dessas lendas a que chamamos Mabinogion, ou seja, lendas para instruir os jovens nos princípios da mitologia bárdica. E parece ter como objecto uma recordação local e impressionante da destruição de uma raça libertina pelas águas do dilúvio.”
Estas tradições de cidades afundadas nos lagos do país, ou de zonas densamente povoadas submersas pela intrusão do mar, são correntes em todo o País de Gales.”
Obviamente que estas lendas não são relatos de verdadeiras ocorrências históricas, mas sim recordações de alguma catástrofe muito remota que atingiu a raça celta noutro ambiente.
No poema do bardo Taliesin, chamado “Os Espíritos das Profundezas“[4], fala-se de Artur, na sua personagem mitológica, em relação com um grande dilúvio ou catástrofe semelhante. A composição em questão é obscura em dicção e significado e está evidentemente, como Turner observa, “envolta em mitologia”. Davies acreditava que o poema aludia “aos mistérios dos deuses Baco e Ceres britânicos”, que estavam ligados à “mitologia diluviana”, mas admite que “talvez outra mão seja mais destra a afastar as grades ferrugentas que guardam estes mistérios”. O poema diz que: “Três vezes o número necessário para encher Prydwen (o navio de Artur), entrámos nas profundezas; à excepção de sete, nenhum regressou a Caer Sidi (Local do Círculo)”.
A segunda estrofe desta misteriosa canção louva o saber “que foi quatro vezes revisto no recinto quadrangular”. “Nós acompanhámos Artur“, conclui, “nos seus esplêndidos trabalhos.”
Mais à frente, o bardo canta: “No recinto quadrangular, na ilha com a porta forte, o crepúsculo e a escuridão de breu misturavam-se[5].”
Esta passagem e aquilo que a precede parecem-me guardar uma vívida memória da tradição atlante. O leitor recordará que, no relato de Platão, se diz que a cidade da Atlântida estava dividida em zonas ou círculos de terra e água, e numa obra anteriormente publicada, «The Problem of Atlantis», exponho muitas provas que sustentam que o plano circular da Atlântida foi copiado em muitas cidades posteriores. A passagem que resume estas semelhanças diz o seguinte:
“Partindo então do conhecimento da planta atlante, tal como é descrita por Platão, vemos que ela se reflecte não só em Cartago mas nas localizações de várias cidades antigas, espalhadas pelas áreas onde podemos esperar encontrar vestígios arquitectónicos que se aproximam do modelo atlante — por um lado, ao longo de toda a extensão do Mediterrâneo, e por outro, ao longo das costas marítimas do Atlântico Ocidental, até à Grã-Bretanha e à Irlanda. Não podemos considerar que tenham surgido em sucessão histórica de Leste para Oeste. Os iberos, os construtores destes veneráveis monumentos, não tiveram origem na região oriental do Mediterrâneo, pelo que é impossível considerar essa zona como o ponto de partida da sua história arquitectónica.”
A quinta estrofe desta estranha canção lança também alguma luz sobre o seu significado atlante:
“Não resgatarei as multidões com escudos. Eles não sabem em que dia o golpe será dado, nem em que hora do dia sereno Cwy (a pessoa agitada) nascerá, ou quem o impediu de ir aos vales de Cevwy (a propriedade da água). Eles não conhecem o boi malhado com a grossa fita, e com sete vezes vinte contas ao pescoço[6].”
Isto refere-se obviamente à população de um país que aguardava inconsciente o choque da catástrofe pelo dilúvio. No que diz respeito à alusão ao boi, “em quase todos os memoriais britânicos do dilúvio” escreve Davies, “o boi é introduzido”. O boi ou touro era, recordemos, o animal sagrado venerado na Atlântida.
A canção acima citada refere-se evidentemente à fuga ao dilúvio de um grupo de pessoas, sob a liderança do Artur mitológico. Estes eram, segundo parece, os líderes ou aristocratas da ilha, que tinham pouca ou nenhuma preocupação com o povo, e que fugiram para se salvar. A natureza circular ou quadrangular da cidade que abandonaram é mencionada, e depreende-se daí que levaram com eles a memória e os instrumentos dos seus mistérios sagrados.
Mas será que se encontram nestas antigas tradições galesas algumas reminiscências mais concretas da Atlântida perdida, reminiscências que justifiquem a afirmação de que os nossos antepassados britânicos associavam a tradição de um território submerso com uma região no Atlântico? Estas evidências parecem estar indicadas nas lendas relativas a Artur e a Lyones ou Lyonesse, e à Ilha de Avalon.
Em primeiro lugar, é claro que o lago Llion, cuja lenda já discutimos, é nada mais nada menos que uma lenda de submersão oceânica adaptada a uma localidade galesa — que, na verdade, as tradições relativas ao lago Llion e a Lyonesse têm uma origem comum. Nem será difícil provar que o lago Llion, Lyonesse, Avalon e a Atlântida são apenas vários nomes para uma e a mesma localidade oceânica.
Examinemos primeiro as tradições associadas com a Ilha de Avalon. Os celtas da Grã-Bretanha consideravam que Avalon ficava no oceano ocidental. O nome foi explicado como significando Insula Pomorum, ou Ilha das Maçãs, embora a grafia da palavra com dois “I“[7] pareça antes significar “Ilha das Macieiras“. Geoffrey de Monmouth equiparou-a à Ilha das Hespérides, guardada por dragões[8]. Um poeta anónimo, citado na edição de lan Morti feita por Geoffrey (pp. 425-6), faz um relato semelhante, tendo os versos sido atribuídos por Usher ao bardo britânico Gildas. Pelas evidências internas destes poemas e por William de Malmesbury, parece que Insula Avallonia ou Ynis Avallach se referia à ilha pertencente a um rei Avallach, que aí residia com a sua filha. Este Avallach é identificado pelo Manuscrito Harleian como filho de Beli e Annu, e por Rhys como Evalach, o Rei-Pescador ferido da lenda do Graal.
A Atlântida, escusado será dizer, foi uma e outra vez identificada com a Ilha das Hespérides, que continha as maçãs sagradas, pelo que a associação de Avalon com esse paraíso insular faz corresponder a localização britânica com a localização platónica, e Avalon revela-se como a Atlântida de Platão. Se esta correspondência for justificada, temos então de estar preparados para encontrar em Avallach, o rei da ilha, Atlas na sua forma britânica, e em Beli e Annu, seus pais, os gregos Poseidon e Clito da tradição platónica.
Procurando ainda mais associações entre as localizações de Avalon e da Atlântida, antes de tratarmos dos respectivos governantes e habitantes, encontramos na lenda do “Castelo Giratório”, introduzida por Peredur, um incidente peculiarmente atlante. Este pode ser encontrado no Seint Greal Galês[9]. A passagem diz o seguinte:
“E cavalgaram através das florestas selvagens, e de uma floresta para outra, até chegarem a terreno aberto fora da floresta. E então contemplaram um castelo que lhes surgiu ao nível do solo no meio de um prado; e em torno do castelo corria um grande rio, e dentro do castelo viram grandes salões espaçosos com janelas grandes e belas. Aproximaram-se do castelo e viram que o castelo girava com maior velocidade do que o vento mais rápido que alguma vez tinham visto. E no cimo do castelo viram arqueiros disparando tão vigorosamente que armadura alguma poderia proteger dos disparos que faziam. Além disto, havia ainda homens que sopravam cornetas tão vigorosamente que quase podíamos sentir o chão a tremer. Aos portões havia leões, presos com correntes de ferro, que rugiam e urravam tão violentamente que quase julgámos que desenraizavam a floresta e o castelo.”
Rhys equipara, sem hesitar, este Castelo Giratório ao Castelo do Graal, morada do Rei-Pescador. Encontramos esta misteriosa fortaleza também mencionada num dos poemas de Taliesin, no qual ele diz:
Perfeito é meu assento em Caer Sidi:
Pestes e idade não atingirão quem nele se sentar
Eles sabem, Manawydan e Pryderi.
Três órgãos à volta do fogo cantam perante ele,
E à sua volta há correntes do oceano,
E o poço abundante sobre ele,
Mais doce do que vinho branco a bebida nele.[10]
O nome “Caer Sidi” significa “Lugar Giratório“, e Rhys identifica-o com o “Castelo Giratório“. Recordemos que esta Caer Sidi é mencionada como sendo a localidade insular abandonada por Artur e os seus companheiros após a ocorrência do dilúvio. Isto, portanto, identifica o Castelo Giratório com uma localização oceânica em tempos atingida por um dilúvio. As circunstâncias da lenda parecem associá-la a um local com tendências cataclísmicas e, no geral, parece que temos aqui uma memória indubitável da localização da Atlântida. Está situada “ao nível do solo no meio de uma planície ou prado”, tal como a Atlântida estava, e, tal como ela, é rodeada por uma “imensa vala ou fosso”. O terreno estremece e o castelo rodopia como se se debatesse com um terramoto. Os leões que o rodeiam simbolizam as forças naturais de destruição. É, segundo o poema, de natureza insular. “À sua volta há correntes do oceano.” “A palavra usada”, diz Rhys, “é banneu ou ban” (que significa pontas) e isto relaciona o local com a Benwyk do romance arturiano, a ilha reino do Rei Ban. Implica também que tinha quatro cantos ou ângulos, o que parece associá-la com a “Ilha das Quatro Muralhas Preciosas” da saga irlandesa “A Viagem de Maeldune“. Estas muralhas uniam-se no centro da ilha, e eram feitas respectivamente de ouro, prata, cobre e cristal. É mais uma vez a Atlântida, cujas muralhas eram construídas de ouro, prata e oricalco ou cobre. Comparemos o relato de Platão com o do Seint Greal Galês:
- “Não resgatarei as multidões com escudos”, diz o cantor do povo de Caer Sidi em “Os Despojos das Profundezas“. Os proprietários de terras na Atlântida, diz Platão, “tinham de fornecer a sexta parte de uma carruagem de Guerra, de modo a perfazer dez mil carruagens, com dois cavalos e dois homens de cavalaria, uma carruagem ligeira sem assento, um condutor e um ajudante, dois soldados de infantaria fortemente armados, dois arqueiros, dois fundeiros, três lançadores de pedras, três lanceiros e quatro marinheiros, para formar a tripulação de mil e duzentos navios.”
- “Eles” (as multidões, os plebeus) “não conhecem o boi malhado com a grossa fita.” “Perto do templo de Poseidon, na Atlântida” diz-nos Platão, “pastavam os touros sagrados, e os dez reis da ilha ofereciam-nos periodicamente em sacrifício […] Punham vestes azuis e julgavam os prevaricadores.” Eram, em suma, uma aristocracia do culto do touro ou boi, culto esse que era desconhecido das multidões.
Talvez estas comparações tornem mais claras as origens atlantes das lendas galesas de Caer Sidi e Avalon, e possamos agora prosseguir com o exame de outros mitos britânicos que falam de locais insulares ou submersos, na esperança de encontrar mais evidências.
No folclore celta destaca-se, de forma quase proeminente, a figura de Morgana le Fay, a fata, fate, ou fada associada ao mar. Ela é, diz Rhys, a mesma Morgana que, na Ilha de Avalon, curou os ferimentos de Artur, e é também a Senhora do Lago, a mãe adoptiva de Lancelot, a carcereira de Merlim. Morgana significa “a cria do mar” e podemos deduzir que ela representa o oceano na sua fase de grande abismo de esquecimento ou oblívio. Moré galês para “o mar”, e talvez Morgana represente esse mar que Plínio, na sua «Natural History», nos diz que os mortos tinham de atravessar para alcançar o reino do rei Cronos, ou Tempo. O mar, para os celtas, era na verdade o caminho para o Outro Mundo, uma ideia que podemos encontrar em muitas mitologias, e o Local dos Mortos celta fica invariavelmente localizado no oceano ocidental. Assim, parece provável que o local para onde todas as almas partiam supostamente depois da morte estava associado com uma localidade anteriormente habitada pelos vivos, o Lugar dos Antepassados, o lar original. O homem primitivo acreditava invariavelmente que, depois da morte, se juntaria aos seus antepassados num ambiente de bem-aventurança não terrestre, e recolhi noutros locais tantos mitos e lendas provando que esta ideia estava relacionada, em alguns casos, com localizações submersas, que me parece desnecessário cobrir mais uma vez esse terreno.
Em primeiro lugar, enumeremos as localizações, para além das já mencionadas, que os celtas da Grã-Bretanha acreditam ter-se afundado. Algumas encontram-se efectivamente no próprio País de Gales. Assim, Llyn Tegid, perto de Bala, em Merioneth, pertence a esta categoria. Na verdade, Rhys escreve que “nos nossos dias supõe-se que cada lago se terá formado pelo aluimento de uma cidade, cujos sinos podem ainda hoje ser ouvidos, por vezes, dobrando alegremente”. Isto prova pelo menos que a ideia de territórios submersos tem um forte poder sobre a imaginação dos celtas bretões. Porquê? Mitos desta categoria não nascem “naturalmente”, podendo provar-se que têm por trás uma longa genealogia tradicional e que, seja como for, tiveram origem em algum facto histórico.
A inundação de zonas costeiras pelo mar é também uma extensão desta tradição de submersão. Nalguns casos, claro, isto pode efectivamente ter ocorrido, mas noutros parece não ser mais do que o localizar de uma tradição muito mais antiga de regiões oceânicas submersas. A lenda dos “Cem Submersos” já aqui foi citada. Semelhante a esta é a lenda da cidade afundada de Aberdovey, cujos sinos é possível ouvir no reino de Gwydno. Diz Rhys: “O relato euhemerístico da submersão da planície de Gwydno diz que esta ocorreu em consequência da negligência de um certo Seithennyn, cuja função era cuidar das represas e das comportas; este, um dia, fortemente embriagado, esqueceu-se do seu dever e a catástrofe ocorreu. O relato mais antigo, no entanto, encontra-se num poema curto em «The Black Book of Carmarthen»; e não é de forma alguma uma história tão banal: pois o autor do poema desconhece por completo a embriaguez de Seithennyn, que caracteriza apenas como uma pessoa de fraco intelecto, colocando antes toda a culpa numa donzela que denomina a Pastora do Poço ou Serva da Fonte. Não nos é dito quais eram exactamente os seus deveres; mas ela teria provavelmente a seu cargo um poço mágico, como na história irlandesa correspondente de Lough Neaghf […] na qual a falha em manter a tampa sobre a nascente mágica resultou numa inundação, uma catástrofe profetizada pelo idiota da família, que ocupa aqui o papel de Seithennyn da versão galesa.
Ora, o nome da mulher que estava encarregue do poço na história irlandesa era Liban, que é, em galês, Llion, e que surge na narrativa galesa do dilúvio causado pela explosão de Llyn Llion, ou Lago de Llion. Mais ainda, é o nome desta dama, provavelmente numa das suas formas, ou um seu derivado, que encontramos em Liones, de Malory.” O espírito deste país é uma tal Dama Liones, proprietária de um Castelo Perigoso perto da Ilha de Avalon. Rhys identifica o seu território com a costa oeste da Cornualha, “jazendo algures sob o mar entre Lundy e as Ilhas de Scilly […] Sem nos demorarmos”, diz ele, “sobre a provável extrema antiguidade dos mitos subjacentes a estes romances, podemos arriscar dizer que parecem existir evidências, remontando à fase inicial da ocupação romana neste país, justificativas da equiparação de heróis como Tristão ou Lancelot com o Hércules da mitologia clássica; veja-se o facto de Ptolomeu chamar Herakleous Akron a Hartland Point, ou seja, Promontório de Hércules.”
Os nomes Liones ou Lyonesse, claro, correspondem ao desse lago mítico, Llyn Llion, que terá supostamente inundado o mundo com a sua explosão e, como já foi mencionado, pode também ser associado à submersa Terra de Ys da lenda da Bretanha. Mas também me parece ter uma ligação etimológica, bem como tradicional, com a Atlântida. Na verdade, creio que o nome Atlântida é apenas uma versão helenizada do celta Llyn Llion ou Lyonesse, tal como, de facto, os gregos fariam a um nome celta. Consideremos Llyn Llion, pronunciado como a maioria das pessoas não-celtas o pronunciariam (Lin Lion), e adicionemos a terminação grega “is”, com a letra “t” adicionada por questões de eufonia.
Obteríamos Lin-Lion-tis, Linliontis. Parece então possível que, através de alguma associação do deus Atlas com esta localização ocidental, e por uma confusão e helenização do nome Llyn Llion, possa ter surgido o nome Atlântida[11]. Ou não poderão os nomes Llyn Llion e Atlântida derivar de uma raiz comum?
Atlas pode ser facilmente associado com os deuses da Grã-Bretanha. Era de linhagem titã e irmão de Albion que, tal como ele, era filho de Poseidon. Albion era o deus protector original da Grã-Bretanha. Tanto Atlas como Albion contestaram a passagem ocidental de Hércules. Segundo Pompónio Mela, Albion, com o seu irmão Iberius (deus da Irlanda), filhos de Poseidon, desafiaram e combateram o semideus grego perto de Aries. Albion é também esse Alba a quem a Escócia foi buscar o seu nome de Albany. Havia pois uma família ou clã de titãs ligados ao oceano ocidental, e se Albion e Iberius podem ser associados às Ilhas Britânicas, às quais, de facto, os seus nomes ainda estão fortemente ligados, é razoável presumir que Atlas tenha sido também em tempos a divindade protectora de uma terra ocidental no oceano com o qual o mito associa persistentemente o seu nome. Albion (Grã-Bretanha), Iberius (Irlanda), Atlas (Atlântida). A sequência é precisa, e é difícil acreditar que, se os dois primeiros nomes estavam ligados a ilhas ainda existentes, o terceiro possa ser encarado como divindade de um local que existiu apenas na imaginação mítica, especialmente quando as personagens mencionadas tinham o mesmo progenitor e pertenciam todas à mesma família. Não há qualquer exemplo na História mítica de um clã de figuras ancestrais, derivadas de um mesmo antepassado epónimo, em que alguns dos seus membros tenham sido ligados a locais verdadeiros e os restantes a locais míticos. Procurem nas páginas do «Velho Testamento», do Rig-Veda, das Edas — qualquer corpo de escritos tradicionais que forneça genealogias ancestrais —, e não encontrarão em parte alguma uma anomalia deste género.
Examinemos agora o mito grego de Gerion, senhor de uma ilha atlântica, que tem equivalentes celtas. Gerion era o governante da ilha de Erítia e tinha três cabeças e um número correspondente de mãos e pés. Possuía várias manadas de gado magnifico, de uma cor púrpura-avermelhada, que pastavam perto das Terras do Sol, ou seja, a oeste, pois a sua ilha de Erítia estava situada no Oceano Ocidental, para além das Colunas de Hércules, e gozava de um clima saudável. Hércules, no decurso dos seus trabalhos, navegou até à ilha na taça dourada do sol, ou seja, a embarcação na qual se imaginava que o sol regressava ao oriente durante as horas da noite.
Ao chegar à ilha, Hércules foi atacado pelo cão de Gerion, Orthus, e pelo seu vaqueiro, Eurytion, e chacinou-os a ambos. Gerion, ao saber disso, apressou-se a perseguir Hércules e atacou-o, mas foi igualmente chacinado pelo herói, que conduziu então o gado até à costa e, com os seus despojos ornados de chifres e com a filha de Gerion, embarcou em segurança na taça dourada.
Quase exactamente da mesma maneira, Cuchulainn, o Hércules irlandês, leva as vacas e a filha do rei Mider de Inis Fer Falga, ou Ilha dos Homens de Falga. Mas, mais concretamente, note-se a circunstância de tanto Gerion como Mider, que residiam em ilhas atlânticas, possuírem, tal como os atlantes, uma manada de gado sagrado.
Vemos, então, que a ilha atlântica do mito celta britânico é, em muitas das suas circunstâncias, paralela à Atlântida. Não só se trata de um local insular, mas orgulha-se de uma cidade, Caer Sidi, que era construída, tal como a Atlântida, em forma circular, rodeada por um grande fosso ou canal, guardada por soldados de infantaria fortemente armados, e o seu culto estava, de alguma maneira, relacionado com gado sagrado. Sabemos também que se julgava ter sido arrasada por uma inundação ou outro Cataclismo da natureza.
Os mitos nativos da Grã-Bretanha contêm outras referências a perturbações cataclísmicas insulares, para além das já referidas, e associadas mais com convulsões vulcânicas ou sísmicas do que com inundações. Plutarco, no seu «De Defectu Oraculorum», alude a uma delas do seguinte modo: “Demétrio disse ainda que, das ilhas em torno da Grã-Bretanha, muitas estão dispersas e desabitadas, algumas das quais baptizadas com os nomes de divindades e heróis. Disse-nos também que, tendo sido enviado pelo imperador para efectuar reconhecimento e inspecção, foi à ilha que se encontra mais perto das ilhas desabitadas e descobriu que era ocupada por alguns habitantes que eram, contudo, sacrossantos e invioláveis aos olhos dos bretões. Pouco depois da sua chegada teve lugar uma grande perturbação da atmosfera, acompanhada por muitos portentos, ventos que sopravam em furacões e raios de fogo que caíam do céu. Quando tudo acabou, os ilhéus disseram que algum dos poderosos tinha morrido. Pois, disseram eles, tal como uma lamparina ao ser acesa não traz consigo qualquer perigo, quando se apaga é penoso para muitos, e o mesmo se passa com as grandes almas: quando começam a brilhar, esse início é agradável e o oposto de penoso, enquanto a sua extinção e destruição perturba frequentemente os ventos e as vagas, como acabara de acontecer; muitas vezes também infectam a atmosfera com doenças pestilentas. Mais ainda, disseram, há uma ilha onde Cronos está aprisionado, com Briaeru a guardá-lo enquanto dorme, pois, conforme eles explicaram, o sono é a amarra forjada por Cronos. Acrescentaram também que à volta dele há muitas divindades, os seus escudeiros e ajudantes.”
Ora, este mito é de grande importância em mais do que um ponto de vista. Em primeiro lugar, refere-se a “ilhas em torno da Grã-Bretanha”, muitas das quais com os nomes de deuses e heróis. Man e Skye, nomeadamente, são exemplos disso. Mas algumas eram desabitadas. Porquê? Muito provavelmente porque, nesse período, perturbações vulcânicas ou sísmicas como as descritas na passagem acima ocorriam de forma constante. Os ilhéus acreditavam que estas tempestades e erupções estavam de alguma forma relacionadas com os mortos, ou seja, com aqueles que residiam no Ocidente. Mais ainda, a alusão a Cronos, como estando aprisionado numa ilha ainda mais distante “com Briaeru a guardá-lo enquanto dorme”, é, como Rhys observa e muito bem, um paralelo com o sono de Artur em Avalon, a ilha que já mostrei ser, muito provavelmente, a mesma que a Atlântida. Também Nennius descreve como Benlli, um gigante, depois de resistir a St. Germanus, foi, com toda a sua corte, reduzido a cinzas por um fogo proveniente do céu. Ora Benlli está também associado com a ilha de Ynys Benlli, ou Bradsey, localização onde Merlim desapareceu na sua casa ou barco de vidro, e também esta foi equiparada a Avalon.
Assim, encontramos praticamente todas as circunstâncias mais vastas e gerais do relato de Platão sobre a Atlântida duplicadas na tradição britânica — a crença na submersão de um antigo território insular situado a Ocidente, a sua destruição por inundação ou causas vulcânicas ou sísmicas, o facto de possuir uma cidade construída de certo modo peculiar, e a existência de um culto religioso relacionado com gado. A conclusão inevitável é que os refugiados ou emigrantes atlantes devem em dada altura ter-se instalado em solo britânico, e que a impressão da grande catástrofe que se abatera sobre os seus antepassados no continente atlante permaneceu intacta durante séculos, adquirindo um significado literário e religioso que uma mera lenda nunca poderia ter alcançado.
Um estudo do saber tradicional irlandês deixa também claro que nele se incluem muitas memórias atlantes. Os formorianos da lenda irlandesa eram os Domnu, povo do mar profundo, ou Fomors, povo de sob o mar, de um país que se afundara sob as ondas. Tal como os titãs, eram um povo de estatura gigantesca e, como eles, travaram uma Guerra contra os deuses, os Tuatha De Danann.
Os fenianos, outra raça primitiva irlandesa, são associados pela tradição à região perto das Colunas de Hércules. Fenius Forsa, o seu antepassado epónimo, era pai de Nial, que casou com Scota, filha do faraó do Egipto. Fenius e o seu clã foram banidos do Egipto por se terem recusado a juntar-se à perseguição dos Filhos de Israel e residiram em África durante quarenta e dois anos. Viajaram através de Canaã “perto dos altares dos filisteus”, depois passaram entre Rusicada e o território montanhoso da Síria, até chegarem à Mauritânia, às Colunas de Hércules, onde atravessaram para Espanha.
Mile, líder dos milesianos de Espanha, os Tuatha De Danann, foi, com o seu povo, exilado para um paraíso ocidental para lá do mar, descrito variadamente como “A Terra da Promessa“, “A Planície da Felicidade“, “A Terra dos Jovens” e “Ilha de Breasal“. “A mitologia celta”, diz Squire, “está repleta das belezas deste território místico, e a sua tradição nunca morreu. Hy-Breasail foi inscrita uma e outra vez em mapas antigos como uma terra real[12].”
O romance «The Fate of the Children of Turenn» está também repleto de alusões óbvias à tradição atlante. Os filhos de Turenn foram condenados, pela morte de Kian, a adquirir certos objectos mágicos e, depois de se fazerem ao mar no Barco de Manannan, chegaram primeiro ao Jardim de Hisberna (Hespérides) onde assumiram a forma de falcões e se apoderaram das maçãs douradas que aí cresciam. Depois de outras aventuras, chegaram ao reino de Asol, rei das Colunas Douradas, de quem receberam sete porcos mágicos. As colunas em questão parecem ser as Colunas de Hércules.
A lenda da inundação de Lough Neagh já foi mencionada como sendo quase exactamente igual à lenda galesa de Seithennyn, mas a saga de “A Viagem de Maildun” faz referência a várias ilhas mágicas no Atlântico e dificilmente pode ser encarada como outra coisa senão uma memória popular directa do grupo insular atlante. Uma das primeiras ilhas que Maildun e a sua tripulação encontram é “A Ilha dos Socalcos e dos Pássaros“. Era “uma ilha grande e alta, com socalcos a toda a volta, que se erguiam um por trás do outro”, e povoada por aves de plumagem colorida, “uma ilha em forma de escudo, coroada de socalcos”. As Atlântidas, as filhas de Atlas, tornaram-se, segundo Diodoro, as Plêiades, e segundo outras autoridades clássicas, aves. A altura da ilha e a característica dos seus socalcos parece ser reminiscente da lenda atlante.
Numa “ilha larga e lisa”, Maildun e os seus companheiros descobriram “uma larga pista de corridas verde”, que era usada pelo povo para o desporto das corridas de cavalos. Platão diz-nos que existia uma grande pista de corridas na Atlântida. Chegaram também a uma Ilha das Maçãs, semelhante à Ilha das Hespérides, e a uma ilha rodeada por uma grande muralha, e na manhã do terceiro dia a uma outra ilha que era dividida em duas partes por uma muralha de bronze que a atravessava pelo meio. De ambos os lados da muralha havia um rebanho de ovelhas; e de um lado eram todas pretas, e do outro todas brancas. Um homem muito grande (um ciclope, sem dúvida) pastoreava as ovelhas. A ilha seguinte era alta e estava dividida em quatro partes por quatro muralhas que se encontravam no centro. A primeira era de ouro e as outras de prata, cobre e cristal. A “Ilha dos Grandes Ferreiros” é também reminiscente dos ciclopes, e o “Território Sob as Ondas” parece fornecer a última prova necessária para a aceitação da teoria de que toda a saga não é mais do que uma memória popular da tradição atlante[13].
A raça ibérica, que provavelmente sempre esteve em maioria na Irlanda, é, claro, a raça azilense sob uma forma moderna. Eram, na verdade, os formorianos, o povo “Sob o Mar“, perito em magia e nas ciências negras. “A eterna batalha entre os deuses, Filhos de Danu, e os gigantes, filhos de Domnu” diz Squire, “reflecte, no mundo sobrenatural, a perpétua guerra entre os invasores celtas e os resistentes iberos[14].”
É também de assinalar que os Tuatha De Danann, outra raça irlandesa, eram encarados como sendo provenientes “das ilhas no sul do mundo”. Tinham vivido em quatro grandes cidades, nas quais tinham aprendido poesia e magia — Findias, Gorias, Murias e Falias, de onde tinham trazido para a Irlanda a sua estranha cultura e certas relíquias, entre as quais a Lia Fail, ou Pedra do Destino (não a que se encontra em Westminster, como geralmente se pensa, mas a que ainda se ergue em Tara). Parece muito provável que estas cidades tenham existido realmente. Não parece credível que um povo forjasse deliberadamente nomes para regiões onde esteve instalado durante séculos.
É possível encontrar no saber irlandês muitas memórias populares de um lar insular no Atlântico. A lenda de St. Brandan, no «Livro de Lismore», conta como Brandan, fundador do mosteiro de Clonfert, que viveu no Século VII, rezou para que lhe fosse revelada uma “terra escondida”, e uma tradição antiga garante-nos que ele vagueou pela costa de Kerry “à procura de tradições do continente ocidental”. Ora, ele nunca teria sido encorajado a procurá-las, a menos que já possuísse alguma pista da sua presença nesse local. Fez-se ao mar e chegou a uma ilha “a sotavento do Monte Atlas“, onde residiu durante muitos anos.
A lenda da ilha de Hy Breasil assombra a imaginação dos irlandeses há séculos, e foi identificada com a Tir-nan-og da história gaélica.
NOTAS:
[1] Mythology of thi British Druids, p. 142.
[2] History of Walet, p. 25, nota.
[3] Mythology, pp. 146-147.
[4] Ver Davies, Mythology, p. 513 e segs.
[5] No original: “Thrice the number that would have filled Prydwen we entered into the deep; excepting seven, none have returned to Caer Sidi“; “[…] which was four times reviewed in the quandragular enclosure.”; “We went with Arthur in his splendid labours.”; “In the quadrangular enclosure, in the island with the strong door, the twilight and the pitchy darkness were mixed together.” (N. da T.)
[6] No original: “I will not redeem the multitudes with trailing shields. They knew not on what day the stroke would be given, nor what hour in the serene day Cwy would be born, or who prevented his going into the dales of Devwy. They know not the brindled ox with the thick head-band, having seven score knobs in his collar.” (N da T.)
[7] No original, Avallon. (N. da T.)
[8] Vita Merlina. (“Roxburghe Club Edition”, Londres, 1830, II, 908-17 (p. 41).
[9] Ed Williams, págs. 325-6 (tradução p. 649).
[10] No original: “Perfect is my chair in Caer Sidi:/Plague and age hurt him not who’s in it/They know, Manawydan anda Pryderi./Three organs round a fire sing before it,/And about its points are ocean’s streams,/And the abundant well above it,/Sweeter than white wine the drink in it.” (TV. da T.)
[11] Em inglês, “Atlantis“. (N. da T.)
[12] Squire, Mythology of the British Islands, p. 133.
[13] Ver Joyce, Old Celtic Romances, págs. 112 e segs.
[14] Idem, p. 70.