Um artigo publicado pela revista de divulgação cientifica Super Interessante, no seu número 147, de Julho de 2010, vem trazer-nos detalhes de como a medicina foi patrocinando, ao longo dos tempos, várias terapias e métodos que se revelaram ineficazes, sendo que muitas vezes provocaram dores e um mal estar atroz, roçando mesmo, não raras vezes, a bárbara carnificina.Muitos desses métodos parecem-nos actualmente algo risíveis, se optarmos por nos esquecermos do sofrimento e incómodo que podem ter causado.
O artigo também nos dá conta da arrogância e do recurso à falácia do apelo à autoridade muitas vezes usados pelos médicos para perpetuarem as suas ideias e terapias.
Fica-se, com tudo isto, com a tentação de cogitar se actualmente, a nossa medicina, apesar de poder estar mais evoluída do que aquilo que era nos tempos referidos no artigo, após todo este tempo de pesquisa e de tentativas baseadas no erro e no sucesso, não deixar de ainda ser primitiva, comparada com o conhecimento que poderemos vir a ter no futuro, sobre o corpo humano e a sua Saúde no geral.
A verdade é que a medicina actual é ainda, em muitos casos, bastante agressiva e invasiva, e as suas terapias muito baseadas e dependentes de químicos que maltratam o organismo, como sacrifício sine qua none para a obtenção de uma cura.
O artigo:
Apoiados numa suposta autoridade intelectual, os médicos aplicaram, durante centenas de anos, todo o género de tratamentos dolorosos ou ineficazes, sem nunca se questionarem
Como gosta de dizer o jornalista Jorg Blech, especialista em questões de Saúde, “para justificar os seus métodos, a medicina nunca teve falta de explicações com ares de plausibilidade”. Apenas assim se compreende como foi possível, ao longo da história, os médicos defenderem as suas práticas pelo princípio da autoridade. Para citar a revista British Medical Journal (2004), uma das regras de ouro que permitem a um clínico agarrar-se teimosamente a terapias tradicionais e ineficazes é fazer prevalecer a sua condição através de frases batidas: “E desde quando é que o senhor é médico?”
Até ao Século XIX, as sangrias eram a marca por excelência da cirurgia: os médicos comprimiam o braço e, com uma lanceta, picavam o vaso sanguíneo para que jorrasse o fluído vital, qualquer que fosse a doença. Em 1828, o francês Pierre Charles Alexandre Louis publicou uma série de artigos sob epígrafe Estudos do Efeito do Sangramento nas Doenças Inflamatórias, nos quais demonstrava que a prática não exercia qualquer efeito no tratamento da pneumonia e de outras febres, independentemente da ocasião em que se efectuava e da quantidade de sangue extraído. Por fim, a sua posição prevaleceu, mas os médicos recorreram à lei do pêndulo e passaram para o outro extremo: introduzir sangue no corpo. “Era injectado de forma rotineira até que, passados alguns anos, o estudo veio demonstrar a ineficácia desse método”, explica Blech.
De facto, no passado, qualquer ideia presumivelmente inovadora, por mais pateta que fosse, era posta em prática sem serem feitos quaisquer ensaios experimentais. Vejamos, por exemplo, os médicos belgas que participaram no cerco a Ostende, em 1602, que retiravam a gordura dos cadáveres que jaziam no campo de batalha, por pensarem que servia para curar feridas. A Pharmacopeia publicada em Londres, em 1764, aconselhava a utilização de teias de aranhas, bichos-de-conta e víboras como remédios. Nos primeiros anos do Século XX, generalizou-se a crença de que as doenças constituíam uma consequência de uma auto-intoxicação, pelo que o melhor era os pacientes esvaziarem o intestino grosso. Por outro lado, em 1917, o mundo escutou a proposta de um estranho médico chamado Joseph Roy, que decidiu que a verdadeira causa de todas as doenças, da gonorreia ao cancro, era um microorganismo que ele (e apenas ele) observara ao microscópio: o oscilococo. Para além do mais, descobriu igualmente que não havia nada melhor para extermina-lo do que uma solução muito diluída de fígado de Pato. Hoje, esta cura de eficácia nula é vendida como remédio homeopático contra a gripe.
Na década de 1940, esteve muito em voga a chamada “teoria focal”, que defendia que uma infecção numa pequena zona do corpo podia também alastrar a outras partes do organismo. O que se podia fazer para evita-lo? Simples: extirpar tudo o que fosse passível de ser extraído, desde que não desempenhasse uma função vital: dentes molares, amígdalas, vesícula, apêndice… Foi assim que se abriu a porta à situação que o escritor George Bernard Shaw descreveu em 1906: “Os cirurgiões descobriram que o corpo de uma pessoa está cheio de pedaços e resíduos de orgãos antigos que já não são usados. Graças ao clorofórmio, é possível extirpar meia dúzia sem prejudicar o paciente, excepto no que se refere ao mal-estar e ao dinheiro que a brincadeira custa.”
Solução radical e versátil
Esta prática segue a tendência inaugurada, no último quartel do Século XIX, pelo ginecologista norte-americano Robert Battey. Após extrair de um ovário um quisto com 7kg, Battey começou a congeminar uma estratégia para extirpar os próprios ovários como terapia polivalente. Em 1872, uma jovem procurou-o com queixas de que, durante a menstruação, sofria convulsões que quase a faziam entrar num estado comatoso. Além disso, tinha hemorragias em diversas partes do corpo e sentia tais dores que, na ânsia de procurar alguma espécie de alívio se viciara em morfina. Battey extraiu-lhe ambos os ovários e os sintomas desapareceram.
O êxito foi de tal ordem que a intervenção passou a ser conhecida como “operação de Battey“, e muitos médicos começaram a utiliza-la para combater todo o género de problemas. Pouco a pouco, generalizou-se ao ponto de ser usada para tratar a epilepsia, os distúrbios nervosos, a ninfomania… De facto, não demorou muito a passar para o campo da psiquiatria, onde se transformou num misto de tratamento contra as doenças psíquicas e de exercício de eugenia para impedir que a mulher transmitisse presumíveis problemas mentais à descendência.
Algo de semelhante ocorre com a moderna auto-hemoterapia, que consiste em extrair sangue do paciente para o submeter a uma série de operações, como enriquece-lo com oxigénio, expô-lo à luz ultravioleta ou, simplesmente, mistura-lo com ar, antes de voltar a injecta-lo. Isso permitiria, presumivelmente, curar qualquer doença relacionada com a circulação. A inutilidade é manifesta, mas continua-se a cobrar preços exorbitantes pelo tratamento.