A pressão realizada pelos credores europeus para que a Grécia aceitasse o acordo para um resgate financeiro foi, na verdade, uma tentativa de impedir que se conheçam as origens “ilegais e ilegítimas” da dívida, uma vez que isso provocaria “uma revolução no sistema financeiro mundial”. É o que defende Maria Lucia Fattorelli, auditora reformada da Receita Federal. Fattorelli fez parte das primeiras atividades da comissão internacional que realizou a auditoria da dívida grega, a convite da presidente do parlamento grego, Zoe Konstantopoulou.
As conclusões iniciais a que a comissão chegou nas primeiras sete semanas de investigação revelam que “os mecanismos inseridos nesses acordos eram para beneficiar os bancos e não a Grécia. A questão é: “por que eles o Fundo Monetário Internacional (FMI) têm que jogar tão pesado?”. Fattorelli responde: “Porque a Grécia podia revelar o que está por trás. A tragédia da Grécia esconde o segredo dos bancos privados. A Grécia poderia colocar a nu as estratégias utilizadas para salvar bancos e colocar em risco toda zona do euro, toda a Europa“, aponta a também fundadora do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida” no Brasil.

Fattorelli explica que no mesmo dia em que foi criado, em 2010, o plano de suporte à Grécia, a Comissão Europeia criou uma empresa privada no Luxemburgo e os países europeus tornaram-se sócios da mesma, colocando garantias na ordem de 440 biliões de euros e que um ano depois chegaram à soma de 800 biliões. A empresa, explica Fattorelli, serviu para “efectuar o repasse de papéis “podres” dos bancos para os países, utilizando o sistema da dívida”. Paralelamente, também no mesmo dia, o Banco Central Europeu (BCE) anuncia um programa de compra de papéis no mercado para ajudar bancos privados: “Isso é um escândalo. É ilegal, mas é colocado como se isso tivesse sido efectuado para salvar a Grécia“, aponta a economista.
“Eles poderiam vir a público denunciando o que já foi descoberto, as regularidades que já foram apuradas. Todos nós gostaríamos que a Grécia reagisse diante dessa “camisa de força” do euro, desse poder dado ao Banco Central Europeu, das instituições acima dos países e toda essa situação financeira de dependência”, comenta a auditora, referindo o facto de que o sistema do euro impede que os países-membros exerçam uma política monetária independente.
Questionada sobre a possibilidade dos termos do acordo com a Grécia serem uma “punição política” ao primeiro ministro grego e também um recado aos demais países em dificuldades na Europa, como Portugal, Irlanda, Itália e Espanha, Fattorelli observa que essa é a estratégia que vem sendo adotada desde 2010. “A Grécia foi colocada sob os holofotes da imprensa no mundo inteiro como se fosse a responsável pela crise europeia. Isso é ridículo, porque quando se olha para o tamanho da economia grega, em comparação com a europeia, o PIB da Grécia é cerca de 2% do europeu. Então, como 2% podem agitar 98%? Essa é uma criação e é absurdo que ninguém questione isso”, afirma a economista.
Reestruturação da dívida

Apontada por Tsipras como uma vitória nas negociações com os credores, a reestruturação da dívida foi na opinião da auditora, contra indicada caso não tenha sido concluída a auditoria da dívida.
Fattorelli explica que a auditoria for efectuada o país “vai reestruturar grande parte de uma dívida que deveria ser anulada. Antes de reestruturar, deveria ser concluída a auditoria para que se analise o que realmente deve ser reestruturado. Agora, como está, vão “empacotar” tudo junto: a parte ilegal e a ilegítima da divida”, esclarece.
Entre a dívida ilegal, ela aponta os quase 50 biliões de euros utilizados para salvar os bancos nos últimos anos. “Isso não é dívida pública, isso é outra coisa. Deveria ser considerado um empréstimo aos bancos privados, não uma dívida pública do país”, destaca.
Perda da soberania
Após a assinatura do acordo por Tsipras, analistas e mesmo sectores da esquerda grega avaliaram que a adoção das medidas caracteriza uma perda da soberania do país. Fattorelli discorda, para ela, Atenas perdeu a soberania em Maio de 2010, quando foi assinado o primeiro pacote de resgate e o conjunto de credores gregos formado por: FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia “passou a mandar no país”.
“Inclusive, a lei vigente sobre esses acordos é a lei inglesa, não é a grega. Além disso, se a Grécia tiver que ir a algum tribunal, ficará submetida ou ao tribunal do Luxemburgo ou ao de Londres“, acrescenta Fattorelli, que considera essa situação jurídica “um abuso”.
Fattorelli avalia, no entanto, que a oportunidade que os gregos tinham agora de retomar as rédeas sobre os rumo do país foi perdida. “O país está à venda desde que foram criados o fundo de estabilização para salvar os bancos e o fundo de privatização. Ambos determinados pelo FMI em 2010“.

Sistema é inviável
A crise grega abre a possibilidade de que se discuta a fundo a questão do sistema da dívida, defende Fattorelli. No país helênico, os “bancos privados criaram derivativos em cima de derivativos, que tornaram pantanosos os seus balanços económicos. Ou seja, eles estavam partidos, mas foram considerados grandes demais para partir e continuaram com os seus patrimónios intocáveis” Mas, quem assumiu esse ônus são os países “e é um ônus que não tem fim”, aponta.
“O último dado conhecido do volume de derivativos tóxicos divulgado pelo BIS (Banco Central dos Bancos Centrais), em 2011, informava que o montante chegava a 11 PIBs mundiais. Então eu questiono: esse resgate vai resolver alguma coisa? Não! Será somente o adiamento até uma nova crise. E aí o que vai ser efectuado depois?”, questiona a economista.
Na verdade, esse sistema “além de não ter lógica está a comprometer o emprego real, está comprometer a indústria, o comércio. Ou seja, toda a economia real está comprometida, assim como a vida das pessoas”. Ela ressalta, no entanto, que isso não ocorre somente na Grécia: “no Brasil, o que aconteceu, com o ajuste fiscal, levado efectuado pelo ministro da fazenda, Joaquim Levy. É o mesmo esquema, o mesmo sistema da dívida a actuar”.
Argentina e Equador
Para um melhor entendimento da crise grega, Fattorelli comparou-a à que foi vivenciada pela Argentina no ano 2000: “depois de cumprir todas as privatizações que o FMI queria, o fundo deu as costas ao país e deixou espaço aberto para os bancos privados oferecerem o acordo. Eles colocaram juros equivalentes ao crescimento do PIB e como consequência, hoje a dívida argentina já é um problema novamente e não trouxe nenhum benefício. Além disso, o país também não efectuou auditoria”.

Em 2008, o presidente equatoriano, Rafael Correa, anunciou que não pagaria parte da dívida externa do país, após a realização de uma auditoria, da qual Fattorelli participou. A diferença do pequeno país sul-americano para a Grécia, Argentina ou mesmo o Brasil é explicada pela economista: “Correa conseguiu enfrentar o sistema porque, como o Syriza, chegou ao poder sem financiamento privado, não chegou lá atrelado aos interesses dos financiadores.
Fattorelli informa que o processo completo no Equador durou um ano e quatro meses. Além disso, o relatório foi submetido a um crivo jurídico nacional e internacional para garantir a sua legitimidade.
O Equador, que diminuiu em 70% o valor devido aos credores, tinha, segundo Fattorelli, dinheiro para recomprar a dívida: “Efectuou a proposta e honrou”.
“O problema da Argentina, no ano 2000 é que não efectuou auditoria, chegou ao fundo do poço e “partiu-se”. Já a Grécia, quando o Syriza chegou ao poder, já estava “partida” e dentro da “camisa de força” da estrutura da zona do euro, em que não tem moeda própria. Nesse aspecto, a situação grega é pior do que a vivida pela Argentina, que tinha moeda própria”, acrescenta a economista.
Solução possível
Apesar das conclusões de Fattorelli, ela não considera que o acordo feito por Tsipras era o único possível: “Eles poderiam criar uma moeda paralela temporária, solução também apontada por economistas famosos, até resolver a situação”.