Em meados do Século XIX, após a descoberta na antiga cidade de Nínive da biblioteca do imperador assírio Assurbanipal (668-627 a. C.), o mundo redescobriu as antigas grandes civilizações da Mesopotâmia em tábuas de argila contendo escritos em sinais mais tarde denominados cuneiformes. Civilizações estas de que até então, o pouco que se conhecia estava contidas nos livros da «Bíblia», em informações “escassas e pouco reveladoras, uma vez que estavam directamente relacionadas com a história do povo hebreu”.
“O passado das civilizações nada mais é que a história dos empréstimos que elas fizeram umas às outras ao longo dos séculos…” – Fernand Braudel
1. Da “corrida ao ouro bíblico” à nova historicidade das sagradas escrituras
Tais descobertas deram início a uma espécie de “corrida ao ouro bíblico” que propunha evidenciar arqueologicamente as sagradas escrituras. Outras ruínas então, como as de Uruk, Ur (a cidade natal do patriarca bíblico Abraão) e Nipur, começaram a ser escavadas e revelaram mais inscrições sobre o passado do Oriente Próximo.
O trabalho de decifração destas tábuas foi realizado por vários investigadores, mas coube ao arqueólogo britânico George Smith, a primeira tradução que continha um trecho da Epopéia de Gilgamesh: o relato do dilúvio. Em 1872, Smith anuncia a sua descoberta [1] num encontro da Sociedade de Arqueologia Bíblica que causou um “forte impacto na Europa (…) por apresentar um texto pagão aparentemente antecipando a Arca de Noé”.
Estas descobertas abalaram a comunidade científica e religiosa do Século XIX, laicizando muitos dos objectivos iniciais, que modificou os métodos dos investigadores, e abriu precedentes para o questionamento da veracidade dos textos bíblicos. Nas últimas quatro décadas, diferentes estudos estão sendo realizados sobre os temas levantados no Século XIX, tanto pela comunidade científica como em grande parte pela comunidade religiosa, que fazem com que sejam discutidos os elementos mitológicos presentes na confecção dos livros que compoem o Pentateuco [2], que vão desde a formação do mundo à existência histórica dos seus patriarcas.
Há uma tentativa, nos dias actuais, por parte dos arqueólogos e historiadores de remontar a «Bíblia» separando o que é História do que são Mitos & Lendas.
“Apesar das paixões suscitadas por este tema, nós acreditamos que uma reavaliação dos achados das escavações mais antigas e as contínuas descobertas feitas pelas novas escavações deixaram claro que os estudiosos devem agora abordar os problemas das origens bíblicas e da antiga sociedade israelita de uma nova perspectiva, completamente diferente da anterior. (…) A história do antigo Israel e o nascimento das suas escrituras sagradas a partir de uma nova perspectiva, uma perspectiva arqueológica” (Finkelstein; Silberman, 2001, pp. V-VI, p. 1).
2. Da teogonia à teofania.
Paralelamente às discussões bíblicas, as descobertas feitas pelas escavações remontam aos três milénios que antecedem a Cristo, onde a região entre os rio Tigre e Eufrates viu a ascensão e queda de grandes civilizações como os Sumérios, acádios, assírios e babilónicos.
Dos textos traduzidos, vários deles incompletos devido ao estado de conservação dos mesmos, pôde extrair-se muito da filosofia e da mitologia mesopotâmicas, onde podemos observar que “o Oriente antigo, antes da «Bíblia», e mesmo abstraindo-se dela, não desconhecia a reflexão sobre o homem. (…) As questões fundamentais da existência, da felicidade e da infelicidade, da relação com as potências cósmicas e com o domínio misterioso dos deuses, do sentido da vida e das incertezas do destino, já tinham neles um lugar de grande importância” (Grelot, 1980, p. 13).
Neste universo de descobertas, os Sumérios e os acadianos revelam-se fornecedores de costumes, rituais e modelos literários a todos os povos do Oriente Médio [3]. As suas lendas, são consideradas como o primeiro repositório das recordações históricas dos povos do oriente antigo, “transformaram-se, esquematizaram-se, reagruparam-se, mudaram eventualmente de país, ampliaram-se, às vezes, desmedidamente” (Grelot, 1980, p. 13), onde cada cultura apropriou-se de um mito conforme a sua óptica [4].
Não diferente desta regra, os israelitas inovaram ao excluir todo um panteão, centralizando a sua fé num deus único, propondo uma desmitização do universo transformando as forças cósmicas ao que de facto são. A situação do homem diante de Deus modifica-se totalmente, “embora, na prática, a adaptação da mentalidade corrente dos israelitas a essa mudança radical tenha-se processado lentamente e com dificuldade” (Grelot, 1980, p. 15), mantendo grande parte do antigo modo de expressar religioso herdado dos Sumérios e acádios.
Desta forma, Israel começa a escrever a sua própria história, ora compilando factos do seu próprio povo em grandiosas lendas, ora adaptando mitos antigos à sua realidade e aos seus propósitos. As histórias contidas na parte hebraica da «Bíblia», embora difíceis de serem datadas pelos anacronismos que ali apresentam [5], foram compiladas e ordenadas “principalmente, no tempo do rei Josias (640-609 a. C.), para oferecer uma legitimação ideológica para ambições políticas e reformas religiosas específicas” (Finkelstein; Silberman, 2001, p. 14).
3. A Epopéia de Gilgamesh e a sua influência sobre demais literaturas do mundo antigo.
Considerada a mais antiga obra literária da humanidade, a «Epopéia de Gilgamesh» na sua forma “tardia” (Século VII a. C.) como é difundida no Ocidente (Tigay [6] citado por Zilberman (1998, p. 58)), não foge à regra das obras de origens mesopotâmicas: uma compilação de lendas e poemas, cuja origem e veracidade perdem-se na difusão oral, adaptação cultural e textos fragmentados.
As narrativas contidas na epopéia deviam ser muito populares na sua época, pois são encontradas em várias versões escritas por vários povos e línguas diferentes, sendo que as primeiras versões da mesma, datam do Período Babilónico Antigo (2000-1600 a. C.), podendo ter surgido muito antes [7], pois o herói desta epopéia é o lendário rei sumério Gilgamesh, quinto rei da primeira dinastia pós-diluviana de Uruk, que teria vivido no período protodinástico II (2750-2600 a. C.) [8].
Devido à sua antiguidade e originalidade, muito se especula sobre a influência desta sobre textos mais difundidos e conhecidos pela humanidade, como os poemas épicos gregos «Ilíada» e «Odisseia» de Homero, escritos entre VIII e VII a. C.. Mas a polémica é maior quando comparados às narrativas do Pentateuco, a parte mais antiga do «Velho Testamento», datadas do Primeiro Milénio a. C.. No caso desta última, o que legitima-nos a observar as influências, além de semelhanças impressionantes, o próprio contexto histórico e geográfico. Contexto este em que a origem dos hebreus e das grandes civilizações semitas são mescladas com a própria história do povo sumério. Históricos períodos de cativeiro, onde a aculturação era, além de inevitável pelas circunstâncias de sobrevivência, uma forma de dominação ideológica:
“O povo dominado era absorvido pelos nativos ao serem levados, havia a destruição total da nacionalidade, do culto, das instituições, nada ficando que pudesse ser lembrado a fim de que jamais alguém se encorajasse a agir em favor de uma reconstrução. Todo o elemento que representasse qualquer valor moral ou intelectual era desterrado e no seu lugar era posto outro povo trazido de outras regiões” (Lopes, 200-, p. 2).
4. A semelhança entre as narrações.
As semelhanças narrativas encontradas entre a «Epopéia de Gilgamesh» e o Livro do «Génesis» iniciam-se logo nos primeiros versículos da «Bíblia», ou seja, na criação do homem. O povo de Uruk, descontente com a arrogância e luxúria do rei Gilgamesh, exige dos seus deuses a criação de um homem que fosse o reflexo do rei, e tão poderoso quanto ele para que pudesse enfrentá-lo e redimi-lo. O deus Anu, ouvindo o lamento da população, ordenou a Aruru, deusa da criação, que fizesse Enkidu:
“A deusa então concebeu na sua mente uma imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento (rei de Nibiru). Ela mergulhou as mãos na água e agarrou num pedaço de barro; deixou-o cair na selva, e assim foi criado o nobre Enkidu” (Sandars, 1992, p. 94).
“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” («Génesis», cap. 1, ver. 26).
“Então formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente” («Génesis», cap. 2, ver. 7).
Enkidu foi criado inocente, longe da malícia da civilização, vivendo entre as criaturas selvagens e compartilhando a natureza com elas:
“Ele era inocente a respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra. Enkidu comia erva nas colinas junto com as gazelas e rondava os poços de água com os animais da floresta; junto com os rebanhos de animais de caça, ele alegrava-se com a água” (Sandars, 1992, p. 94).
“Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. E a todos os animais da terra e a todas as aves dos céus e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para mantimento”. («Génesis», cap. 1, ver. 29-30).
O rei Gilgamesh, sabendo da existência de Enkidu, incumbe uma missão a uma das prostitutas sagradas do templo da deusa Ishtar (deusa do amor e da fertilidade): seduzir Enkidu e trazê-lo para dentro das muralhas de Uruk. Enkidu deixou-se seduzir pela rameira e perdeu a sua inocência, além do seu poder selvagem, tornando-se conhecedor da malícia do homem. Arrependido, lamenta-se, mas a rameira consola-o enfatizando as vantagens desta nova vida que está por vir:
“Enkidu perdera a sua força pois agora tinha o conhecimento dentro de si, e os pensamentos do homem ocupavam o seu coração” (Sandars, 1992, p. 96).
“Olho para ti e vejo que agora és como um deus. Por que anseias por voltar a correr pelos campos como as feras do mato?” (Sandars, 1992, p. 99).
“Porque Deus sabe que no dia em que comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” («Génesis», cap. 2, ver. 5).
Nesta comparação com a tentação no Éden, não identificamos directamente os factos, mas sim, as ideias. A prostituta sagrada, condenada também em outros livros da «Bíblia», pode ser compilada como o fruto proibido, a serpente e a própria Eva, com o poder de seduzir o homem e tirar a sua inocência com falsas promessas.
Enkidu, já na cidade de Uruk, enfrenta o rei Gilgamesh em combate. Vencendo-o, é reconhecido pelo rei como irmão, pois este jamais havia enfrentado alguém com tamanha força. Formando-se então uma grande amizade que protagoniza grandes aventuras e tragédias ao longo da epopéia. Gilgamesh e Enkidu partiram então para a floresta de cedros (provavelmente, o actual Líbano), onde enfrentaram o monstro Humbaba, o sentinela da floresta.
Este irrita-se com Enkidu, por profanar a floresta sagrada dos cedros inferiorizando-o e humilhando-o com palavras semelhantes às palavras de Deus, ao condenar o homem por comer do fruto proibido. Novamente não vemos relação directa entre os factos, mas uma linha comum de pensamento é verificada entre os textos onde, a profanação e a desobediência são punidas com a servidão:
“… tu, um mercenário, que depende do trabalho para obter teu pão!” (Sandars, 1992, p. 119).
“… maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias da tua vida” («Génesis», cap. 3, ver. 16).
“No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado” («Génesis», cap. 3, ver. 19).
Os heróis, com a ajuda de Shamash (deus sol, protector de Gilgamesh), matam o monstro Humbaba cortando-lhe a cabeça. Facto que irritou o poderoso Enlil (deus da terra, do vento e do ar universal), que exigiu a vida de um dos heróis pelo insulto.
A deusa Ishtar, vendo a força e beleza do herói, apaixona-se por Gilgamesh que a despreza, provocando a cólera da deusa. Então, Ishtar enviou à terra, um monstro com a missão de destruir o herói: o Touro Celeste. Mas a dupla de heróis novamente é vitoriosa. Então, Enkidu zomba da deusa derrotada atirando-lhe pedaços do touro mutilado. Enlil enfurecido com a atitude do mortal decide enfim qual dos dois heróis deverá morrer. Enkidu então adoece e, sucumbindo à doença, impulsiona o rei Gilgamesh à sua missão final: a busca da imortalidade.
A primeira semelhança encontrada pelos tradutores das tábuas em escrita cuneiforme é a mais impressionante. Foi a mola propulsora de toda a discussão sobre a veracidade dos textos bíblicos, pois a descrição do dilúvio não só é a mais bem conservada tábua de toda a epopéia, mas a mais rica em detalhes e semelhanças com a descrição no «Génesis». Além de que, outras narrativas do dilúvio foram encontradas em forma de poemas isolados e com outros personagens, como as tábuas de Atra-Hasis, a Epopéia de Erra, e os textos do rei Ziusudra [9].
Na epopéia, Gilgamesh parte em busca da imortalidade, e para isso, precisa obter este segredo dos deuses com o imortal Utnapishtim (Noé do Génesis). Para encontrar o imortal, Gilgamesh enfrentou uma longa jornada, cheia de perigos e provações. Ao encontrar Utnapishtim, ouve que este não poderá lhe tornar imortal, mas poderá revelar ao herói como se tornara um e conta do dia em que os deuses, desgostosos com a sua criação (a humanidade), resolveram eliminá-la da terra:
“Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: “O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.” Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana” (Sandars, 1992, p. 149).
“Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra, e que era continuamente mau todo o desígnio do seu coração” («Génesis», cap. 6, ver. 5).
“A terra estava corrompida à vista de Deus, e cheia de violência” («Génesis», cap. 6, ver 11).
“Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis, e as aves do céu; porque me arrependo de havê-los feito” («Génesis», cap. 6, ver 7).
Ea/Enki (deus da água doce e da sabedoria, patrono das artes e protector da humanidade), avisa Utnapishtim num sonho das intenções de Enlil e orienta-o de como sobreviver à catástrofe que estaria por vir:
“… põe abaixo a tua casa e constrói um barco. Abandona as tuas posses e busca a tua vida preservar; despreza os bens materiais, busca e salva tua alma. Põe abaixo a tua casa, eu te digo, e constrói um barco. Eis as medidas da embarcação que deverás construir: que a boca extrema da nave tenha o mesmo tamanho que o seu comprimento, que o seu convés seja coberto, tal como a abóbada celeste cobre o abismo; leva então para o barco a semente de todas as criaturas vivas. (…) Eu carreguei o interior da nave com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: a minha família, os meus parentes, os animais do campo – os domesticados e os selvagens – e todos os artesãos” (Sandars, 1992, p. 149-151).
“Faz uma arca de tábuas de cipreste; nela farás compartimentos, e a calafetarás com betume por dentro e por fora. Deste modo a farás: de trezentos côvados será o comprimento, de cinquenta a largura, e a altura de trinta. Farás ao seu redor uma abertura de um côvado de alto; a porta da arca colocarás lateralmente; farás pavimentos na arca: um em baixo, um segundo e um terceiro” («Génesis», cap. 6, ver 14-16).
“… entrarás na arca, tu e os teus filhos, e a tua mulher, e as mulheres dos teus filhos. De tudo o que vive, de toda carne, dois de cada espécie, macho e fêmea, farás entrar na arca, para os conservares contigo” («Génesis», cap. 6, ver. 18).
Enlil então envia uma tempestade de grandiosas proporções, fazendo com que toda a terra desaparecesse sobre as águas:
“Caiu a noite e o cavaleiro da tempestade mandou a chuva.(…) Durante seis dias e seis noites os ventos sopraram; enxurradas, inundações e torrentes assolaram o mundo; a tempestade e o dilúvio explodiam em fúria como dois exércitos em guerra” (Sandars, 1992, p. 151-153).
“… nesse dia romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as portas do céu abriram-se, e houve copiosa chuva sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites” («Génesis», cap. 7, ver. 11-12). E toda a humanidade foi exterminada:
“… agora eles (humanos) flutuam no oceano como ovas de peixe” (Sandars, 1992, p. 152).
“Assim foram exterminados todos os serem que havia sobre a face da terra …” («Génesis», cap. 7, ver. 23).
Com o passar dos dias, a tempestade ameniza-se e o dilúvio começa a serenar:
“Na alvorada do sétimo dia o temporal vindo do sul amainou; os mares se acalmaram, o dilúvio serenou” (Sandars, 1992, p. 153).
“Deus fez soprar um vento sobre a terra e as águas baixaram. Fecharam-se as fontes do abismo e também as comportas dos céus, e a copiosa chuva do céu deteve-se” («Génesis», cap. 8, ver. 1-2).
Após a calmaria do grande oceano que se formara, Utnapishtim solta uma pomba para ver se há terra firme para que então possa desembarcar:
“Na alvorada do sétimo dia eu soltei uma pomba e deixei que se fosse. Ela voou para longe; mas, não encontrando lugar para pousar, retornou. Então soltei uma andorinha, que voou para longe; mas, não encontrando lugar para pousar, retornou. Então soltei um corvo. A ave viu que as águas tinham abaixado; ela comeu, voou de uma lado para outro, grasnou e não mais voltou para o barco” (Sandars, 1992, p. 153).
“Ao cabo de quarenta dias, abriu Noé a janela que fizera na arca, e soltou um corvo, o qual, tendo saído, ia e voltava, até que se secaram as águas sobre a terra. Depois soltou uma pomba para ver se as águas teriam já minguado da superfície da terra; mas a pomba, não achando onde pousar o pé, tornou a ele para a arca; porque as águas cobriam ainda a terra. Noé, estendendo a mão, tomou-a e a recolheu consigo na arca. Esperou ainda outros sete dias, e de novo soltou a pomba fora da arca. À tarde ela voltou; trazia no bico uma folha nova de oliveira; assim entendeu Noé que as águas tinham minguado sobre a terra. Então esperou ainda mais sete dias, e soltou a pomba; ela, porém, já não tornou” («Génesis», cap. 8, ver. 6-12).
Após a bonança, já em terra firme e grato ao deus Ea por ter lhe salvo a vida, Utnapishtim prepara um sacrifício aos deuses:
“Eu então abri todas as portas e janelas, expondo a nave aos quatro ventos. Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses” (Sandars, 1992, p. 153).
“Então Noé removeu a cobertura da arca, e olhou, e eis que o solo estava enxuto”.(«Génesis», cap. 8, ver 13).
“Noé fez um altar ao Senhor, e, ao pegar nos animais limpos e aves limpas, ofereceu holocaustos sobre o altar” («Génesis», cap 9, ver 20).
Enlil, furioso com Ea/Enki por ter permitido que um humano sobrevivesse e conhecendo o segredo dos deuses, viu-se sem alternativa que não a de transformar Utnapishtim num imortal, para que a sua maldição de que nenhum mortal sobrevivesse se completasse. Gilgamesh desapontado por não ter tido sucesso em busca da imortalidade, prepara o seu retorno para Uruk, mas é abordado pela esposa de Utnapishtim que, compadecida com o fracasso do herói, revela-lhe o segredo da imortalidade em que, nas profundezas do mar, havia uma planta maravilhosa, e quem a comesse, seria eternamente jovem. O herói então mergulha no mar profundo, ferindo-se, mas obtendo o tão desejado segredo.
Tomado de rara compaixão, Gilgamesh decide não comer sozinho o maravilhoso fruto, mas sim dividi-lo com os anciãos da cidade de Uruk. No retorno para casa, Gilgamesh é surpreendido por uma serpente marinha que lhe rouba a flor, perdendo para sempre o segredo da imortalidade:
“Se conseguires pegá-la (a planta sagrada), terás então em teu poder aquilo que restaura ao homem a sua juventude perdida. (…) Vem ver esta maravilhosa planta. As suas virtudes podem devolver ao homem toda a sua força perdida. (…) mas nas profundezas do poço havia uma serpente, e a serpente sentiu o doce cheiro que emanava da flor. Ela saiu da água e a arrebatou” (Sandars, 1992, p. 160).
Apesar dos fins da acção de comer o fruto sejam diferentes (a morte e a imortalidade), podemos fazer uma analogia da função da serpente em roubar a imortalidade do homem: tirando-lhe a oportunidade da vida eterna pela sua obtenção, como na «Epopéia de Gilgamesh»; sendo condenado à morte pela cessão do fruto ao homem, como no livro do «Génesis». Gilgamesh então ficou desolado e abatido, pois além de fracassar na sua missão, perdera para sempre o irmão Enkidu, restando-lhe apenas, melancolicamente esperar a chagada do dia da sua morte.
No livro do «Génesis», não encontramos somente semelhanças com a «Epopéia de Gilgamesh», mas com outros textos antigos, como o sumeriano «Mito de Dilmum» onde o deus Enki, o senhor das águas profundas e do abismo que suporta a terra; e Nintu, a virgem pura, deusa que presidia aos partos; habitavam sozinhos num mundo cheio de delícias sem que nada existisse além do par divino, caracterizando uma descrição muito semelhante do que seria e onde seria o jardim do Éden:
“E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, da banda do Oriente, e pôs nele o homem que havia formado. (…) E saía um rio do Éden para regar o jardim, e dali dividia-se, repartindo-se em quatro braços. (…) O nome do terceiro rio é Tigre; é o que corre pelo oriente da Assíria. E o quarto é o Eufrates” («Génesis», cap. 2, ver. 8-14).
5. Considerações finais.
É impossível afirmar a influência directa da «Epopéia de Gilgamesh» sobre a escrita do livro do «Génesis», pois tanto um como o outro poderiam ter sido influenciados por histórias ainda mais antigas e difundidas no Oriente, ao mesmo tempo em que é inegável que o mundo situado entre o Mediterrâneo e os Montes Zagros, onde havia intensa circulação de mercadores de diferentes etnias e religiões variadas, era pequeno demais para descartar qualquer influência cultural entre eles.
Os hebreus, possivelmente muito antes dos seus períodos de cativeiro na Babilónia e Assíria (esse cativeiro foi apenas “uma volta às origens do próprio povo hebreu” pois o primeiro patriarca hebraico, Abraão, era natural de Ur, tendo recebido ordens de “deus” para se mudar para Canaã, a Terra Prometida nos primórdios da história hebraica, que se inicia em 3.760 a. C.), já tiveram contacto com as lendas e mitos sumério-acadianos e que por várias razões, os utilizaram na formulação das suas próprias lendas, o que sugere que o seu deus, Jeová, toma por empréstimo características de deuses como Anu, Enlil e Ea/Enki, seja criando a terra e o homem, seja julgando-os pelos seus actos, seja compadecendo-se do seu povo e os protegendo.
Acreditamos ser impossível obter conclusões definitivas sobre as influências de um texto sobre o outro, ou principalmente, da formação de um pensamento religioso sem a existência do pensamento antecessor, sem que se faça juízo de valores como é recomendado a um historiador, mas ao se estudar o contexto em que o «Génesis» é idealizado e escrito, tomando aqui, palavras de Finkelstein e Silberman, observa-se que “a saga histórica contida na «Bíblia» (…) não foi uma revelação miraculosa, mas um brilhante produto da imaginação humana”. [10]
NOTAS:
[1] Sandars N.K. «A Epopéia de Gilgamesh». São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 11-12.
[2] Os 5 primeiros livros da «Bíblia»: «Génesis», «Êxodo», «Levítico», «Números» e «Deuteronómio».
[3] Grelot, P. «Homem Quem És?» São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 14.
[4] Cartier, Roger. Textos, impressão, leituras. In: Hunt, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 211-238.
[5] Finkerlstein, Israel; Silberman, Neil Asher. «The Bible Unearthed». «Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts». New York: The Free Press, 2001, p. 38.
[6] Tigay, Jeffrey. «On the evolution of the Gilgamesh Epic». Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1982, p. 11.
[7] Zilberman, Regina. «Nos princípios da epopéia: Gilgamesh». In: Bakos, Margaret Marchiori; Pozzer, Katia Maria Paim. «Jornada de Estudos do Oriente Antigo: Línguas Escritas e Imaginárias», 3., 1997, Porto Alegre. Anais … trabalho 4. Porto Alegre: Edipucrs, 1998, p. 58.
[8] Bouzon, Emanuel. «Ensaios Babilônicos: Sociedade, Economia e Cultura na Babilónia Pré-Cristã». Porto Alegre: Edipucrs, 1998, p. 126.
[9] Charpin, Dominique. «El mundo de la Biblia: Mesopotamia y la Biblia». Valencia: Edicep, 1984, p. 9.
[10] Finkelstein; Silberman. «The Bible» … 2001. p. 13
Fonte: Thoth3126.com.br