As organizações de investigação clínica ou CRO (de Clinical Research Organisation) são um fenómeno muito recente. Há trinta anos, não existiam praticamente; agora são às centenas, com receitas globais de 20 mil milhões de dólares em 2010, representando cerca de um terço da totalidade das despesas de I&D das grandes empresas da Indústria Farmacêutica. As CRO realizam a maior parte dos ensaios clínicos em nome da Indústria e, em 2008, foram responsáveis por mais de 9000 ensaios, com mais de dois milhões de participantes, em 115 países por todo o mundo.
Esta comercialização da investigação suscita diversas preocupações novas. Em primeiro lugar, como já vimos, as empresas pressionam amiúde os académicos que financiam, desencorajando-os de publicar resultados pouco lisonjeiros e encorajando-os a valorizar os métodos e conclusões do seu trabalho. Nos casos em que os académicos se recusaram a aceitar essas pressões, as ameaças concretizaram-se de forma lúgubre. Que funcionário ou chefe executivo de uma CRO se arrisca a enfrentar uma empresa que lhe está a pagar directamente as contas, quando todo o pessoal sabe que a esperança de futuros negócios dessa CRO depende do modo como gere as exigências de cada cliente?
Também é interessante referir que a comercialização crescente da investigação afastou muitos clínicos dos ensaios, mesmo quando os ensaios provêm da extremidade mais independente do espectro. Três académicos britânicos escreveram recentemente sobre as dificuldades que têm tido em convencer médicos a ajudá-los a recrutar doentes para um estudo solicitado pelo regulador europeu dos Medicamentos, mas pago pela Pfizer: “Os protocolos foram redigidos por académicos, os colaboradores são académicos, e os dados do estudo pertencem aos grupos directores (com os quais a Indústria nada tem a ver), que também controlam as análises e publicações. O patrocinador é a universidade. O financiamento provém da Indústria, que não tem qualquer papel na condução do estudo, na recolha dos dados ou na interpretação dos mesmos.” Os médicos e responsáveis pelos cuidados primários no Reino Unido consideraram este estudo comercial, e mostraram-se relutantes em recorrer aos seus doentes. Não estão sozinhos.
O Conselho de Médicos da Dinamarca considera esses tipos de estudos comerciais, o que significa que qualquer consultório que participe neles deve fazer uma declaração de interesses, reduzindo ainda mais o recrutamento. Nos Estados Unidos, entretanto, o recurso à realização de ensaios por médicos comunitários privados expandiu-se enormemente, com incentivos que rondam um milhão de dólares anuais para os profissionais mais empreendedores.
Para compreender melhor a realidade comercial do mundo das CRO, podemos analisar o modo como esses serviços são apresentados quando são promovidos junto das empresas da Indústria Farmacêutica, e ver como essa realidade se afasta das necessidades dos doentes e de qualquer espírito de pesquisa neutral. A Quintiles, a maior CRO, oferece-se para ajudar os seus clientes da Indústria a “identificar, promover e provar melhor o valor de um determinado medicamento junto das principais partes interessadas”. “Gastou centenas de milhões de dólares e de anos a conduzir o seu produto por todo o processo de desenvolvimento de um medicamento”, afirma a Quintiles. “Agora, depara-se com múltiplas oportunidades, e talvez mais exigências, de demonstrar a segurança e eficácia em populações de maior dimensão.” Existem também casos de CRO e empresas da Indústria Farmacêutica com contratos de partilha de riscos de um mau resultado, o que aumenta ainda mais as probabilidades de um conflito de interesses.
Não são provas de crime, mas meras ilustrações da banal realidade comercial destas CRO: descobrem coisas, é evidente, mas o seu principal objectivo é fazer com que o medicamento de uma empresa tenha bom aspecto, para que os reguladores, médicos e doentes o engulam. Isto não é ideal em Ciência. Também não é fraude. Simplesmente não é ideal.
Seria errado imaginar que esta mudança na cultura tenha sido provocada pela esperança de que as CRO poderiam produzir achados mais lisonjeiros que outras opções. As CRO são atraentes porque são rápidas, eficientes, claramente orientadas e baratas. E são especialmente baratas porque, como muitas outras indústrias, executam o seu trabalho em países mais pobres. Como explicava numa entrevista recente o ex-chefe executivo da GSK, realizar um ensaio nos Estados Unidos custa 30.000 dólares por doente, ao passo que uma CRO consegue fazê-lo na Roménia por 3000 dólares. É por isso que a GSK pretende realizar metade dos seus ensaios em países de baixo custo, e trata-se de uma tendência global.
No passado, só 15% dos ensaios clínicos se realizavam fora dos Estados Unidos. Neste momento, são mais de metade. A taxa média de crescimento no número de ensaios na Índia é de 20% por ano, na China de 47%, na Argentina de 27%, e assim sucessivamente, porque são países em melhores condições para atrair as actividades das CRO, a um custo mais baixo. Ao mesmo tempo, os ensaios nos Estados Unidos registam uma quebra anual de 6% (e no Reino Unido de 10%). Como resultado destas tendências, muitos ensaios realizam-se presentemente em países em desenvolvimento, onde a vigilância reguladora é mais deficiente, tal como os padrões normais de cuidados clínicos. Isto suscita um grande número de questões sobre a integridade dos dados, a pertinência dos achados para as populações do mundo desenvolvido e a ética — problemas com que se estão a debater os reguladores de todo o mundo.
Existem muitos relatos pontuais de má conduta relativamente aos dados dos ensaios nos países mais pobres, e é claro que os incentivos à manipulação dos resultados são maiores em países onde os ensaios clínicos pagam aos seus sujeitos muito mais do que os salários locais. Existem também dificuldades no que toca aos requisitos regulamentares aplicáveis a dois países ou duas línguas, bem como problemas de tradução nos relatórios dos doentes, sobretudo no que respeita aos efeitos secundários inesperados. As visitas de monitorização aos locais dos ensaios também podem variar em qualidade, e os países diferem no que toca ao grau habitual de Corrupção na vida pública. Também pode ser menor a familiarização com os requisitos administrativos em matéria de integridade dos dados (um ponto de discórdia entre a Indústria e os reguladores no mundo desenvolvido).
Para que fique claro, apresentamos apenas alguns indícios de problemas relacionados com dados. Tem havido casos de ensaios realizados em países em desenvolvimento que produziram resultados positivos, enquanto outros realizados noutros locais não revelaram qualquer benefício, mas, tanto quanto sabemos, até ao momento tem-se feito muito pouca investigação quantitativa comparando os resultados dos ensaios em países mais pobres com os obtidos nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Isto significa que não podemos tirar conclusões firmes sobre a integridade dos dados; também significa, sugeririamos nós, que se trata de um campo aberto a investigações cuja publicação teria grande interesse para os leitores. No entanto, o obstáculo a esse tipo de investigação seria o acesso às informações mais básicas. Uma revisão de artigos publicados nas revistas médicas mais importantes sobre ensaios multicêntricos descobriu que só menos de 5% deram qualquer tipo de informação sobre os números de recrutamento de cada país.
Existe também a questão do enviesamento (ou viés) de publicação: há ensaios inteiros que desaparecem.
Investigadores europeus e americanos com cargos académicos estáveis têm tido dificuldade em defender o direito de publicar, envolvendo-se às vezes em confrontos acesos com empresas da Indústria Farmacêutica. É difícil imaginar que problemas desses não se exacerbassem em países em desenvolvimento, onde a investigação comercial tem introduzido um investimento sem precedentes para indivíduos, instituições e comunidades. Isto é especialmente problemático porque os registos de ensaios, onde os protocolos devem ser divulgados antes do início do ensaio, são muitas vezes sujeitos a um controlo deficiente em todo o mundo; e é possível que a comunidade internacional só se inteire dos ensaios provenientes do mundo em desenvolvimento, ou dos dados oriundos de novos locais, depois de os ensaios terem chegado ao fim.
No entanto, a realização de ensaios em populações tão diversas suscita um problema mais interessante: as pessoas, e a medicina, não são iguais em todo o mundo. Sabe-se que os ensaios se realizam geralmente em doentes “ideais” muito pouco representativos, que costumam estar menos doentes do que os doentes do mundo real, e que costumam tomar muito menos Medicamentos para outros fins. Em ensaios realizados em países em desenvolvimento, estes problemas podem ser exacerbados. Um doente típico em Berlim ou Seattle, com tensão arterial elevada, pode estar a tomar vários Medicamentos há vários anos. Ora, podemos recolher dados sobre os benefícios de um novo medicamento para baixar a tensão na Roménia ou na Índia, onde os doentes podem não ter estado a tomar outra medicação, porque, nesses países, é muito menos comum o acesso ao que seria considerado um tratamento médico normal no Ocidente. Serão esses achados realmente transferíveis, e pertinentes, para os doentes americanos, com todos os comprimidos que tomam?
Para além das diferenças no tratamento de rotina, teremos ainda um contexto social diferente. Os doentes com diagnóstico de depressão na China serão realmente iguais aos doentes com diagnóstico de depressão na Califórnia? E existem ainda as diferenças genéticas. Talvez o leitor saiba, por beber na companhia de amigos, que muitos orientais metabolizam drogas, sobretudo o álcool, de maneira diferente dos ocidentais: se um medicamento tem poucos efeitos secundários numa determinada dose no Botsuana, será que podemos realmente confiar nesses dados para os nossos doentes em Tóquio?
Existem outras considerações culturais. Os ensaios não são simplesmente uma rua de sentido único: também são uma maneira de criar novos mercados, em países como o Brasil, por exemplo, redefinindo as normas da prática clínica e modificando as expectativas dos doentes. Às vezes isto pode ser bom, mas os ensaios também podem criar expectativas relativamente a Medicamentos que as pessoas não podem comprar. E até podem, ao distorcer os mercados de trabalho locais, afastar bons médicos da prática clínica nas suas comunidades e orientá-los para funções de investigação (à semelhança da Europa que, através da emigração, afastou dos países em desenvolvimento médicos e enfermeiros cuja formação foi dispendiosa).
Acima de tudo, porém, estes ensaios suscitam importantes questões acerca da ética da investigação e do consentimento informado significativo. Os incentivos oferecidos aos participantes nos países em desenvolvimento podem exceder o salário médio anual.
Alguns países têm uma cultura de “o médico é que sabe”, em que os doentes se mostrarão mais dispostos a aceitar tratamentos invulgares ou experimentais simplesmente porque o seu médico lhos propôs (um médico com um interesse financeiro pessoal significativo, há que referir, uma vez que é pago por cada doente que recruta). É possível que os antecedentes e riscos (o medicamento é novo, poderão vir a tomar um placebo) não sejam comunicados aos doentes com clareza, e que o consentimento informado não seja adequadamente controlado. A supervisão dos padrões éticos também pode variar: num inquérito a investigadores em países em desenvolvimento, metade afirmou que a sua investigação não estava a ser controlada por qualquer comissão de ética. Uma revisão de publicações de ensaios chineses descobriu que apenas 11% mencionavam a aprovação de comissões de ética, e só 18% tinham discutido o consentimento informado. Trata-se de um contexto de ética de investigação muito diferente do europeu ou do norte-americano; e, embora os reguladores internacionais tenham tentado estar à altura da situação, ainda não é claro se os passos que deram foram bem sucedidos. Além disso, a supervisão é especialmente problemática pois estes ensaios são muitas vezes usados para apoiar o marketing de um medicamento depois da sua introdução no mercado, e não fazem parte do maço de Documentos apresentados para aprovação pela autoridade reguladora, o que significa que estão menos sujeitos ao controlo regulador praticado no Ocidente.
Os ensaios subcontratados a CRO no mundo em desenvolvimento também suscitam a questão da equidade: os participantes em ensaios deverão ser oriundos de uma população com razoáveis expectativas de vir a beneficiar dos resultados desses ensaios. Em vários casos esmagadores, sobretudo em África, é muito claro que não é o que acontece.
Nalguns casos, ainda mais horríveis, existe a possibilidade de o tratamento eficaz que estava à disposição não ter sido ministrado para que a empresa de Indústria Farmacêutica pudesse realizar um ensaio.
A história mais notória é a do estudo sobre o antibiótico Trovan realizado pela Pfizer em Kano, na Nigéria, durante uma epidemia de meningite. Um novo antibiótico experimental foi comparado, num ensaio aleatório, com uma baixa dose de um antibiótico rival cuja eficácia era conhecida. Onze crianças morreram, mais ou menos o mesmo número em cada grupo. Segundo parece, os participantes não foram informados da natureza experimental dos tratamentos e, além disso, tão-pouco foram informados de que existia um tratamento de eficácia reconhecida, imediatamente disponível nos Médicos sem Fronteiras, nas mesmas instalações, na porta ao lado do local onde decorria o ensaio.
A Pfizer argumentou em tribunal, com êxito, que não existia nenhuma norma internacional que exigisse o consentimento informado para um ensaio sobre Medicamentos experimentais em África, pelo que o processo relacionado com o ensaio só poderia ser julgado na Nigéria. É arrepiante ouvir uma empresa falar em ensaios de Medicamentos experimentais, e o assunto tomou-se conhecido em 2006 quando o Ministério da Saúde da Nigéria divulgou o seu relatório sobre o ensaio, afirmando que a Pfizer tinha violado a legislação nigeriana, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e a Declaração de Helsínquia.
Tudo isto ocorreu em 1996 e serviu de inspiração ao romance de John Le Carré «O Fiel Jardineiro». O leitor pode pensar que foi há muito tempo, mas os factos relativos a assuntos destes estão sempre atrasados, e a verdade pode progredir muito devagar em matérias de contencioso ou de litígio. Com efeito, a Pfizer só resolveu o caso fora do tribunal em 2009, e muitos elementos novos e perturbadores desta saga claramente em curso surgiram nos telegramas diplomáticos da WikiLeaks divulgados em 2010. Um telegrama diplomático americano descreve uma reunião havida em Abril de 2009 entre o director nacional da Pfizer e autoridades americanas na embaixada dos Estados Unidos em Abuja, em que foram discutidos rumores relativos a um funcionário nigeriano envolvido no litígio.
Segundo [o director nacional da Pfizer], a empresa tinha contratado investigadores para descobrirem relações de Corrupção que envolvia o Procurador-Geral Michael Aondoakaa com o objectivo de o exporem e pressionarem no sentido de encerrar o processo.
Disse que os investigadores da Pfizer estavam a passar informações para os Média locais. Em Fevereiro e Março, foi publicada uma série de artigos com pormenores sobre as “alegadas” relações de Corrupção de Aondoakaa. Liggeri afirmou que a Pfizer possuía muito mais informações que prejudicavam Aondoakaa e que os amigalhaços do Procurador o estavam a pressionar no sentido de encerrar o processo por medo de mais artigos negativos.
A Pfizer nega qualquer conduta imprópria nos ensaios do Trovan, e afirma que as declarações contidas no telegrama são falsas. O seu acordo no valor de 75 milhões de dólares estava sujeito a uma cláusula de confidencialidade.
Estes assuntos são perturbadores em si, mas também devem ser encarados no contexto mais amplo dos ensaios que estão a ser realizados no mundo em desenvolvimento sobre Medicamentos que não estão disponíveis para uso clínico normal nesses países. É um dilema ético clássico, mas muito bem integrado na vida real: imaginemos que estamos num país onde as pessoas não podem comprar Medicamentos actuais para a sida. Será correcto realizar um ensaio de um novo medicamento dispendioso para a sida nesse contexto? Mesmo que a sua segurança tenha sido amplamente demonstrada? E se ao grupo de controlo do nosso ensaio só estivessem a ser ministrados placebos, ou seja, literalmente nada? Nos Estados Unidos, não seria ministrado a nenhum doente placebos para a sida. Neste país africano, talvez “nada” seja um tratamento comum.
Trata-se de um campo consideravelmente desconcertante e atravancado, envolto num emaranhado de quadros regulamentares complexos que estão a começar a mudar numa direcção preocupante. Em 2009 três investigadores publicaram um artigo na revista Lancet, chamando à atenção para uma mudança muito importante. Durante anos, explicavam, a FDA insistira em que as empresas que pediam uma autorização de introdução no mercado de um medicamento nos Estados Unidos precisavam de provar que todos os ensaios estrangeiros apresentados como prova tinham de estar conformes com a Declaração de Helsínquia. Em 2008, esta exigência foi alterada, mas só para os ensaios estrangeiros, e a FDA adoptou as directivas para uma Boa Prática Clínica (GCP) da Conferência Nacional sobre Harmonização (ICH). Não são terríveis, mas só foram aprovadas por membros da União Europeia, dos Estados Unidos e do Japão. Também se centram mais em processos, ao passo que a Declaração de Helsínquia expõe com clareza princípios morais. Mas o mais preocupante são as diferenças de pormenor, quando se tem em conta que a GCP é, neste momento, a principal regulamentação ética para os ensaios no mundo em desenvolvimento.
A Declaração de Helsínquia afirma que a investigação deve beneficiar as necessidades de Saúde das populações em que é realizada.
A GCP não. A Declaração de Helsínquia discute a necessidade moral de acesso ao tratamento após a conclusão de um ensaio. A GCP não. A Declaração de Helsínquia restringe o uso de placebos nos ensaios, quando existem Medicamentos eficazes. A GCP não. A Declaração de Helsínquia também encoraja os investigadores a revelar financiamentos e patrocínios, a divulgar publicamente o delineamento do estudo, a publicar os achados negativos e a relatar os resultados com precisão. A GCP não. Por conseguinte, não foi uma alteração regulamentar tranquilizadora, sobretudo para ensaios realizados fora dos Estados Unidos, e especificamente em 2008, época em que os estudos começavam a ser feitos fora dos Estados Unidos e da União Europeia, e essa saída se processava a um ritmo muito rápido.
Também vale a pena mencionar que a Indústria Farmacêutica emprega uma táctica brutal com os países em desenvolvimento, no que toca ao preço dos Medicamentos. À semelhança de muitos dos aspectos que temos estado a discutir, este era digno de um livro só por si, mas limito-me a contar uma história ilustrativa. Em 2007, a Tailândia tentou tomar uma posição contra a Abbott em relação ao medicamento Kaletra. Há mais de meio milhão de pessoas infectadas com o VIH na Tailândia (muitas delas podem agradecê-lo aos turistas sexuais do Ocidente), e 120.000 têm sida. O país pode pagar Medicamentos de primeira linha contra a sida, mas muitos perdem eficácia com o tempo, através da resistência adquirida. A Abbott andava a cobrar 2200 dólares anuais pelo Kaletra na Tailândia, montante aproximadamente equivalente, por mórbida coincidência, ao rendimento bruto per capita.
As empresas da Indústria Farmacêutica têm o direito exclusivo de fabricar os tratamentos que descobriram durante um período de tempo limitado, geralmente dezoito anos, a fim de incentivar a inovação. É improvável que o rendimento decorrente da venda de Medicamentos nos países mais pobres venha alguma vez a incentivar, em grande medida, a inovação de tratamentos (o que é claramente evidenciado pelo modo como a Indústria Farmacêutica negligencia as muitas situações médicas que ocorrem principalmente nos países em desenvolvimento). Por este motivo, existem vários tratados internacionais, como a Declaração de Doha de 2001, ao abrigo dos quais um governo pode declarar uma emergência de Saúde pública e começar a fabricar ou a comprar cópias de um fármaco patenteado. Um exemplo famoso de recurso a essas “licenças obrigatórias” ocorreu quando, depois dos ataques de 11 de Setembro, o governo dos Estados Unidos insistiu em que devia ser autorizado a comprar grandes quantidades de ciprofloxacina barata para tratar o carbúnculo, pois havia a preocupação de que os terroristas estivessem a enviar esporos aos políticos.
Por conseguinte, em Janeiro de 2007, o governo tailandês anunciou que iria copiar o medicamento da Abbott, só para os pobres do país e só para salvar vidas. A reacção da Abbott foi interessante: retaliou, retirando completamente do mercado tailandês a sua nova versão resistente ao calor do Kaletra, e outros seis novos Fármacos, e anunciou que só os traria de volta quando o governo se comprometesse a não recorrer de novo a uma “licença obrigatória” sobre os seus Medicamentos. É difícil pensar em algo menos respeitador da Declaração de Doha. Se o leitor pretende um enquadramento mais ético, a Organização Mundial da Saúde estima que metade da transmissão do VIH na Tailândia ocorre no contacto entre trabalhadores sexuais e clientes. Consta que existem na Tailândia dois milhões de mulheres e 800.000 crianças com menos de dezoito anos cuja actividade é o sexo, maioritariamente ao serviço de homens ocidentais, alguns dos quais o leitor até pode conhecer pessoalmente.
Falamos, portanto, dos ensaios clínicos das fases 1, 2 e 3: tanto dos seus aspectos científicos como, espero eu, de alguns aspectos da realidade subjacente aos protocolos, nas clínicas e nas ruas. Talvez o tenham deixado nervoso. A partir daqui, a história é simples: o regulador dos Medicamentos — a FDA, a EMA ou qualquer outro organismo nacional — analisa os resultados destes ensaios da fase 1, 2 ou 3, decide se o medicamento é eficaz e se os efeitos secundários são aceitáveis, e, a seguir, ou solicita mais ensaios, ou diz à empresa para deitar fora o medicamento, ou autoriza-a a introduzi-lo no mercado para ser receitado por qualquer médico disposto a isso. É o que se passa, pelo menos em teoria.
Na realidade, a situação é muito mais complicada.