A Idade da Pedra na Atlântida

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Migração de Cro-Magnon's da Atlântida para a Europa
Migração de Cro-Magnon's da Atlântida para a Europa

O método mais fidedigno para compreender o início da vida na Atlântida consiste em efectuar uma consideração sobre as raças da Antiga idade da Pedra que chegaram à Europa em diferentes períodos. Em as «Raças da Atlântida» examinámo-las no seu aspecto europeu, e temos agora de tentar efectuar uma reconstrução das suas condições na própria Atlântida.

Sabemos que os aurignacenses que “apareceram subita­mente, vindos do desconhecido”, como diz Macalister, e que penetraram em Espanha e França, possuíam uma cultura da pedra relativamente elevada e uma arte avançada. Devemos, portanto, considerar que esta raça viveu no continente atlante durante muitos séculos. Muito provavelmente foi nele que teve origem, embora seja praticamente impossível falar com certeza desta questão, tal como de muitas outras com ela relacionadas, devido à impraticabilidade da aplicação ao leito do Atlântico dos processos arqueológicos de exame que são possíveis noutros locais. Sobre a ascensão e desenvolvimento da raça aurignacense, não podemos propor nada. Somos forçados a traçar paralelos entre as suas condições na Atlântida e nas regiões para onde emigrou.

Se o fizermos, temos de pensar na Atlântida, na remota era de há vinte e seis mil anos, como uma região insular com uma população nem demasiado densa nem demasiado dispersa. Se aceitarmos que tinha uma área pouco inferior ao tamanho da Austrália, ou seja, 6.850.000 quilómetros quadrados de extensão, possuímos dados suficientes para nos permitirem fazer um cálculo aproximado do seu número de habitantes. Está provado que uma população que depende da caça para a sua subsistência consegue suportar apenas uma família por cada cem quilómetros quadrados. A família primitiva, por várias razões, não pode ser estimada em mais de seis pessoas, em média, pelo que isto nos daria, aproximadamente, uma população de cerca de 350.000 habitantes para a Atlântida na época aurignacense. Mas esta estimativa não leva em linha de conta o facto de os aurignacenses serem essencialmente um povo que alcançara condições de vida social bastante elevadas. A sua arte pressupõe a associação de pessoas, não tanto em pequenos grupos tribais, de famílias que subsistem pela caça, mas sim em comunidades relativamente grandes de vida comunitária. Tinham as suas grutas-templos e o seu comércio, os seus governantes e classes sociais.

Pintura Rupestre
Pintura Rupestre

Osborn diz: “Restam poucas dúvidas de que as diversidades de temperamento, de talento e de predisposição que vigoram hoje em dia também vigoravam na altura, e que havia uma tendência para diferenciar a Sociedade em chefes, padres e curandeiros, caçadores de caça grossa e pescadores, artesãos de sílex e curtidores de peles, fabricantes de vestuário e de calçado, fabricantes de ornamentos, gravadores, escultores de madeira, osso, marfim e pedra, e artistas com a cor e o pincel. Pelo menos no seu trabalho artístico estas pessoas eram animadas por um forte sentimento de verdade, e não lhes podemos negar uma profunda apreciação da beleza[1].” Um povo como este não podia viver em pequenas e insignificantes tribos na floresta ou na montanha, devendo antes estar agrupado em comunidades de tamanho considerável. A vida devia ter uma natureza estável, para que eles pudessem dar rédea livre ao amor pela beleza artística que, tão nitidamente, evidenciavam.

É também evidente que, tal como noutros lados, a natureza das suas crenças religiosas ajudava ao carácter associativo do povo. Os locais especialmente sagrados para eles eram o núcleo da vida social. A gruta-templo era, na verdade, o centro das coisas. O Dr. Heinrich Wenkel, ao falar da gruta aurignacense em Bóèískála, na Morávia, descreve-a como “a grande gruta onde em tempos viveram os homens rena, cuja antecâmara era cenário de um culto dos mortos, onde se ofereciam sacrifícios humanos no túmulo de um chefe […] Exprime bem os sentimentos que estas cavernas antigas despertam, naturalmente, mesmo naqueles que vivem na atmosfera céptica da Ciência moderna.” Mais tarde, o Dr. Marett, no seu ensaio sobre a gruta de Niaux, não hesita em chamar-lhe “santuário” e em tratá-la como tal. A existência de belas pinturas nas extremidades mais profundas destas grandes e complicadas cavernas; a presença de duas esplêndidas estatuetas de bisonte nos recessos mais remotos de Tuc d’Audoubert, são factos que sugerem certamente a existência de deuses animais nas suas “câmaras de imagística”.

Podemos falar com alguma certeza do vestuário e ornamentos destes primeiros atlantes, a partir das descobertas efectuadas nos túmulos dos seus descendentes na Europa. Não há, claro, quaisquer restos das peles com as quais indubitavelmente se vestiam. Mas como sabemos que criavam cavalos e vacas, e caçavam renas, lobos e raposas, não pode haver dúvidas de que utilizavam as peles destes animais para se cobrirem. Na verdade, o exame microscópico das imediações dos cadáveres revelou vestígios de pêlo animal, sugerindo que os corpos estariam envoltos em peles. No que diz respeito aos seus ornamentos, estamos mais bem informados. Estes consistiam de couraças e mantos de pequenas conchas (Nassa neritea) e faixas ou fitas para a cabeça feitas das mesmas conchas, colares de dentes de veado e vértebras de peixe perfuradas, e ornamentos de osso ou chifre de rena, moldados em forma de ovo. Em Barma Grande foi encontrado o esqueleto de um rapaz com uma elaborada coroa de vértebras de peixe e um colar de conchas de Nassa, divididas em grupos por dentes de veado. Estas “couraças”, coroas e colares foram encontrados tão frequentemente em grutas aurignacenses que podem ser considerados os ornamentos típicos usados pela raça.

As ferramentas dos aurignacenses eram diferentes em forma e em uso das utilizadas pelas populações europeias mais antigas que eles vieram substituir, e temos de pensar nestes primeiros colonos atiantes como utilizando armas e utensílios que eram provavelmente de sua própria invenção, noutra esfera geográfica. Talvez o mais destacado entre estes seja uma espécie de faca de sílex, com um dos lados cinzelado e o lado oposto intacto, para que permanecesse direita e afiada. Um raspador para preparar peles, e um gravador, com uma aresta em ângulo recto relati­vamente ao plano da lâmina, para trabalhar osso, chifre e marfim e fazer utensílios, e por vezes fornecido com um bico ou ponta cortante na extremidade da lâmina, deve ter sido também o cinzel primitivo com o qual o escultor aurignacense colocava os últimos retoques nas suas imagens. É um facto significativo que, enquanto as raças que o precederam utilizavam pedra ou madeira, o homem aurignacense utilizava osso. Era, de facto, um trabalhador do osso parexcellence, e isto prepara-nos para a crença de que na Atlântida existiam provavelmente grandes depósitos de marfim de mamute. O marfim, diz Platão, era um dos principais componentes do grande templo de Poseidon, e ele comenta também que os elefantes abundavam na ilha-continente.

Utensílios em Silex
Utensílios em Silex

Utilizavam-se também gravadores mais pequenos, ou buril, alguns dos quais de natureza o mais delicada imaginável, e, pela primeira vez na Arqueologia europeia, encontramos agulhas de osso com buraco. Estas eram, claro, utilizadas para coser peles. Uma raça que utilizava o buril e a agulha estava certamente no caminho da civilização.

A última fase da cultura solutrense, que pressupõe uma segunda onda de imigrantes proveniente de uma Atlântida que se desintegrava lentamente, é diferente, nas suas manifestações, da cultura aurignacense propriamente dita, mas é certo que emanou da mesma região. Surge em Espanha e França, há cerca de dezasseis mil anos, e tem um padrão distintamente superior ao aurignacense, pelo que temos de supor que, nos anos intermédios, terá ocorrido um considerável avanço cultural na Atlântida. O sílex era agora trabalhado em massa, de tal modo que parece que os atlantes tinham chegado à fase de produção de artefactos em massa, uma condição que implica não só um grande avanço social mas que revela também que o trabalho na Atlântida estava em vias de se tornar compartimentado. O enorme estrato de ossos de cavalo encontrado em alguns depósitos solutrenses mostra claramente que este povo se alimentava de carne de cavalo, e uma vez que uma raça, regra geral, não adopta de um momento para o outro uma dieta à qual não está acostumada originalmente, podemos tirar a conclusão de que a Atlântida era habitada por elevado número de cavalos selvagens, que galopavam pelas suas pradarias ou tundras em grandes manadas.

Encontramos também numerosos sepulcros domésticos nesta fase, a partir dos quais é justificado assumir que os mortos eram sepultados nas casas que tinham ocupado em vida. Isto implica que as pessoas tinham começado a viver em pequenas casas de pedra, e que as grutas eram agora utilizadas principalmente para fins religiosos, ou como templos. Mas a inovação mais assinalável é a aparição de um tipo de ferramenta de sílex muito mais avançado do que as usadas até então. Os utensílios deste período, de facto, revelam uma beleza de linhas e de cinzelamento incomparável. São vulgarmente descritos como padrões “folha de salgueiro” e “folha de loureiro”, e consistem de dardos ou pontas de lança, raspadores e furadores. Assim, uma nova arte em pedra tinha surgido ao longo dos séculos na Atlântida. O trabalho com osso fora, em grande medida, abandonado. Isto pode significar que os depósitos de marfim de mamute tinham começado a esgotar-se e que a raça, forçada a reverter ao uso do sílex, se dedicara ao aperfeiçoamento de uma técnica de o trabalhar. Somos forçados a tirar esta conclusão porque na Europa não havia falta de osso, se os trabalhadores solutrenses desejassem utilizá-lo.

“Os solutrenses” diz Macalister, que acredita numa origem africana para a raça Cro-Magnon, “deslocaram-se para Oeste e submergiram temporariamente os aurignacenses, empurrando-os, talvez, para Itália, onde se mantiveram, para reaparecer depois de a tirania solutrense ser dominada, tal como os magdalenenses. Os magdalenenses parecem ter sido essencialmente semelhantes aos aurignacenses em termos de raça, tendo no entanto perdido a elevada estatura e a capacidade craniana excessiva — talvez em resultado da deterioração do clima, e parece possível relacionar a cultura magdalenense com a cultura aurignacense.”

Com o regresso das condições glaciares, na fase magdale­nense, temos de supor a ocorrência de condições semelhantes na Atlântida. Não é necessário partilhar a suposição de Macalister, de que os magdalenenses eram aurignacenses segregados em Itália durante um longo período de tempo. Na verdade, ele observa noutro local que não se encontram nesse local quaisquer restos magdalenenses, e parece muito mais provável que eles representem mais uma vaga de imigrantes atlantes, cujos costumes se tinham alterado devido às condições climáticas que, nessa altura, estariam a tornar-se mais rigorosas na ilha-continente, tal como na Europa. Uma das armas mais notáveis deste período é o arpão, feito de chifre ou osso de rena e usado para caçar focas ou peixe. Outra é o bâtort de commandement, uma secção de chifre de rena perfurado por um ou mais orifícios. Estes não eram decididamente ceptros, como o nome que precipitadamente lhes foi atribuído pode dar a entender, mas sim objectos semelhantes às varas usadas pelos lapões, que estes amarram às rédeas das renas, aos freios dos cavalos, a maquinismos de endireitar eixos, e a instrumentos de feitiçaria. São frequentemente ornamentados com gravações de animais. Acredito que fossem utensílios mágicos, semelhantes aos “paus de apontar” dos selvagens do Bornéu e da Austrália, que eles apontam na direcção das pessoas ou animais sobre os quais desejam “pôr o agoiro”, segundo a frase utilizada na índia Ocidental, e os orifícios que ostentam eram apenas uma questão de conveniência, para permitir que fossem atados ao cinto do feiticeiro. Se esta teoria satisfizer, temos então de presumir a existência de uma forma primitiva de magia na Atlântida. Sabemos também que foram introduzidos um propulsor de dardos semelhante ao utilizado pelos antigos mexicanos, bem como pelos esquimós e australianos dos nossos dias, a primeira máquina inventada pelo homem, e o punhal ou adaga.

Mas, acima de tudo o resto, temos de considerar a Atlântida como o berço da escultura e da pintura. A arte do homem aurignacense na Europa, que surge de um momento para o outro, como se estivesse totalmente madura, não deixa qualquer dúvida de que deve ter sido aperfeiçoada noutra esfera geográfica e após séculos de esforço. Temos, na verdade, de presumir o nascimento na Atlântida de uma escola de arte incomensuravelmente superior em técnica à escola egípcia, mais livre, embora não mais nobre, mais realista, mais inspirada, mais humana em todos os aspectos. Somos obrigados a concluir que deve ter existido, na ilha-continente, algum grande centro onde se terá desenvolvido uma arte tão notável e admirável. Há vinte mil anos, ou mais, a Atlântida deve ter sido cenário de poderosos impulsos artísticos, equipa­ráveis a quaisquer outros que se vieram a manifestar na História da humanidade, e isto pressupõe a existência de uma grande civilização na ilha, da qual, talvez, a arte dos aurignacenses tenha sido apenas a última fase degenerada.

O facto de uma raça trabalhar em pedra e osso e ignorar os metais não significa que não possua civilização. Durante séculos os antigos egípcios e babilónios, tal como os mexicanos e peruanos na América, não possuíram ferramentas de metal e, contudo, nas cidades por eles habitadas, alcançou-se um elevado padrão de civilização, equiparável em todos os aspectos ao da China de há alguns séculos, ou à cultura da Índia, ambos países que utilizam o metal. Suponhamos que os egípcios e os mexicanos, devido a algum vasto Cataclismo natural, se viam forçados a abandonar os seus locais de origem e a colonizar a África Central ou a América do Sul. Não passariam as suas circunstâncias de vida gerais por uma assinalável degeneração? A História diz-nos que eles lançaram, de facto, ramos coloniais em ambas essas áreas, com resultados degenerados. Que nos impede então de ver em funcionamento na colonização atlante da Europa um processo degenerativo semelhante? Durante gerações, a América e a Austrália foram na sua maioria, após a colonização pelos europeus, uma barafunda, habitadas por um povo rude e quase bárbaro, que ostentava poucas semelhanças com as classes civilizadas da pátria-mãe. O facto de o homem atlante ter tido algum sucesso no transplante da sua arte para solo europeu foi provavelmente resultado de factores irresistíveis, que forçaram a fuga dos mais educados juntamente com o povo comum. Mas é evidente que todo o aparelho da civilização atlante teria inevitavelmente de sofrer uma degeneração, pelas meras circunstâncias que acompanharam a sua transferência parcial para a Europa. A civilização dos “aurignacenses” pereceu por fim, e esteve completamente esquecida e enterrada no solo durante dez mil anos. A sua redescoberta foi apenas um acaso feliz.

Estas considerações voltam a despertar a velha controvérsia relativamente à existência de uma civilização anterior às do Egipto e da Babilónia, não apenas um percursor bárbaro, mas uma cultura antiga de estatuto superior, a partir da qual elas tenham derivado. O mundo antigo estava cheio de mitos e memórias de uma civilização desse género. As lendas dos antediluvianos, de construtores ciclópicos, de percursores gigantes, os mil indícios e sugestões de uma raça mais antiga, implantados não só na litera­tura bíblica hebraica como também nas crónicas de praticamente todos os povos civilizados da Europa, Ásia e América, apontam universalmente para uma crença estabelecida na existência prévia de uma cultura de indubitável antiguidade e excelência. As Escri­turas consideram-na histórica, e tomam-na como certa. O poema babilónico «Gilgamesh» não só faz referência, como amplia, as crónicas bíblicas do Dilúvio. Os mitógrafos helénicos da Idade do Ouro fazem- lhe alusão. Os livros sagrados da Índia reflectem todo um mundo de informação relativa a um grande passado pré-histórico. Os poemas e lendas irlandeses e galeses contêm abundantes referências ao mesmo. O «Popul Vuh», as crónicas lendárias dos índios quiché da América Central, contém no seu primeiro livro inúmeras histórias relacionadas com os titãs pré-históricos da Guatemala. Praticamente todas as crónicas tribais das “nações” índias americanas se referem a uma civilização com essas características. Na maioria dos casos crê-se que este regime do mundo antigo acabou em ruína e Cataclismo, causados pela perversidade dos seus governantes, e diz-se invariavelmente que existiu numa época tão remota que ao seu escritor só estavam disponíveis os contornos gerais da sua História, através da tradição oral.

Será possível que esta grande massa de material tradicional, que surge nos escritos sagrados e profanos das nações mais antigas, não tenha por trás nada de realidade? A lei, hoje bem reconhecida, de que todas as tradições desta variedade se baseiam num substrato de factos é por si só suficiente para afastar tal hipótese.

Escola “Difusionista” reconheceria provavelmente numa crença tão disseminada apenas a passagem, de tribo para tribo e de país para país, de um mito originário num núcleo específico, digamos, por exemplo, na Babilónia, pois no Egipto, o centro preferido dos difusionistas, esta tradição, tanto quanto sei, não se encontra, a menos que aceitemos que o sacerdote de Sólon falava verdade ao dizer que lá existiam registos desta história. Mas recordemos que, enquanto os gregos consideravam que os deuses e titãs eram originários do Ocidente, as raças americanas falavam deles como provenientes das costas do Oriente[2].

Em certa medida, a Arqueologia corrobora estas veneráveis tradições. Prova a existência de uma arte altamente desenvolvida, na verdade, quase na sua fase de decadência, nos níveis do Paleolítico Superior de França e Espanha, uma arte que não tem nesses locais nem as suas raízes nem quaisquer elos evolucio­nários. As mais antigas localizações da raça que produziu essa arte encontram-se quase exclusivamente nas costas ocidentais da península franco-espanhola, ou nas suas imediações. A arte em si mesma foi referida como “uma invasão técnica da Europa“. É óbvio que teve as suas raízes noutro local, e não há o mais pequeno indício de que tenha vindo da Ásia. Ligando os resultados da Arqueologia com as tradições que falam de uma civilização venerável desaparecida no seu apogeu, e com as que insistem num milieu ocidental para esta civilização, parece certo que os restos aurignacenses são as relíquias transplantadas de uma antiga cultura que se desenvolvera numa localização oceânica ocidental e que, antes da sua transferência para a Europa, manifestara um ideal ainda mais elevado do que na sua nova condição colonial.

A arte na pedra
A arte na pedra

Toda a Arqueologia, de facto se esforça inconscientemente para encontrar uma explicação da questão aurignacense. A raça aurignacense, admite-se, era fisiologicamente muito superior a qualquer tipo humano existente na época. Esse mero facto exige uma explicação, bem como a posição muito exaltada ocupada pela arte aurignacense.

Mas todas as condições humanas e culturais da Atlântida devem ter passado por enormes alterações depois da emigração do homem aurignacense para a Europa. Parece provável que o grosso dos seus habitantes tenham abandonado a ilha-continente, e isto parece ser confirmado pela natureza da raça que a Atlântida lançou uma vez mais sobre solo europeu, numa nova vaga humana na época azilense, pois a civilização azilense revela, em certos aspectos, uma notável inferioridade em relação à aurignacense. As suas formas de arte são distintamente mais grosseiras e os seus vestígios culturais mais primitivos, de um modo geral.

Parece, na verdade, a partir das relíquias humanas do período azilense, que a Atlântida deve, no intervalo de tempo entre as imigrações aurignacense e azilense, ter sido ela própria invadida ou colonizada, e o carácter osteológico geral dos vestígios azilenses leva à conclusão que esta raça invasora poderia ser de origem africana. Talvez seja contudo mais fácil admitir uma migração directa dos azilenses de África para Espanha e França, mas não parece haver qualquer relação próxima entre as fases azilenses encontradas em África e Espanha com qualquer outra forma mais antiga. A relação entre os azilenses africanos e iberos é evidentemente feita pelos capsenses, uma civilização africana que parece ter herdado ou absorvido características azilenses, e na verdade não existe qualquer cultura azilense pura desse período visível em África. Mas parece provável que esta raça tivesse uma origem africana muito mais remota, e parece também provável que tenha penetrado na Atlântida através da ponte de terra que ligava a “plataforma” africana com a ilha-continente.

Seja como for, as características norte-africanas impõem-se na osteologia e na arte azilenses. Este povo, os antepassados da raça ibérica, estava carimbado com o selo do norte de África e, embora se encontrem aí poucos ou nenhuns vestígios deles, pois não são de forma alguma os mesmos que os capsenses, isso não depõe contra o facto de terem em tempos ocupado o território. Temos então de imaginar a Atlântida, num período entre dezasseis e onze mil anos atrás, como tendo sido invadida por uma raça com uma forte semelhança com os berberes do norte de África, ou seja, não “negróide” ou “árabe”, mas ibérica, um povo alto, esguio, de feições nobres, com cabelo escuro ou castanho, olhos azuis ou cinzentos, que utilizava o arco e a seta e se assemelhava fortemente com os índios guanches das ilhas Canárias, que, de facto, são em parte seus descendentes. Estes, compelidos por alguma razão a cruzar a ponte terrestre que ligava a Atlântida ao continente africano, devem ter caído em hordas sobre a ilha enfraquecida, vencendo os habitantes aurignacenses e aí permanecendo durante séculos, até à altura em que o último Cataclismo os forçou a regressar à Europa e ao solo africano de onde tinham vindo originalmente e onde, recordemos, Diodoro afirma expressamente que tinham extensas colónias.

Arte Cro-Magnon
Arte Cro-Magnon

Esta teoria justifica não só a assinalável alteração no carácter dos imigrantes da Atlântida em tempos azilenses como sugere também uma reconstrução racial quase radical na própria Atlântida. Recordemos que Platão alude à mistura da raça divina atlante, a linhagem original dos deuses, com os filhos da terra, com os vulgares mortais. Quem eram estes “mortais”, que empobreceram a estirpe divina? Só podiam ser os azilenses, cujos vestígios se misturaram com os da cepa aurignacense ou “divina”, e que ainda se encontram nas Ilhas Canárias, elas próprias os últimos vestígios da Atlântida. Muitos escritores falam da relação berbere ou ibérica da população indígena das Canárias. Na verdade, Sergi é o expoente máximo desta teoria. Ele chama aos iberos a “Raça Mediterrânica” e afirma que, não só se estenderam à área mediterrânica, como penetraram também na Grã-Bretanha e na Irlanda, em França, e noutros locais[3].

A era azilense ou proto-ibérica na Atlântida deve então ter coincidido com a fase de degeneração moral e cultural de que Platão fala, e os seus invasores atlantes serão idênticos aos azilenses ou proto-iberos. Este povo, tal como o aurignacense, vivia em grutas ou, mais propriamente, empregava como templos cavernas profundas e isoladas de grande tamanho, e isto parece mostrar que os invasores azilenses da Atlântida se tinham convertido à antiga religião do território. De facto, tanto quanto é possível avaliar os hábitos religiosos de povos tão remotos, parece haver poucas ou nenhumas diferenças entre as ideias religiosas dos aurignacenses e dos azilenses, salvo que os últimos pratica­vam uma espécie de fé mais rude, sugerindo magia. A veneração do touro mantinha-se, contudo, e o ritual era provavelmente semelhante ao descrito por Platão.

Temos então de pensar na Atlântida da última fase, a Atlântida da catástrofe final, como uma cultura algo degenerada em termos de pensamento, mesmo que não culturais. Dizemos “a catástrofe final”, mas não possuímos absolutamente qualquer evidência que nos permita afirmar com alguma exactidão quando, precisamente, a Atlântida foi por fim submersa. Na verdade, ela nunca foi totalmente submersa, pois as Ilhas Canárias e os Açores, os seus picos mais elevados, ainda permanecem acima das águas como testemunhos da sua existência. Sabemos que passaram apenas três mil anos desde que a ligação terrestre entre a Grã-Bretanha e o continente da Europa foi finalmente destruída, e que o canal da Mancha corre sobre o local de florestas ainda tão recentemente mergulhadas no leito do oceano. Haverá então alguma boa razão para negar à Atlântida uma existência ainda mais longa do que Platão presume? Debruçar-nos-emos sobre essa questão mais tarde. Mas, nesta fase, podemos dizer que esta teoria tornaria muito mais fácil de aceitar o relato que Platão faz da Atlântida como uma grande e florescente comunidade civilizada. Se avaliarmos a sua condição a partir das raças que enviou para a Europa, como imigrantes, temos nesse caso de avaliar a sua cultura como tratando-se dos restos em decomposição de uma condição humana muito superior (aurignacense) ou, por aquilo que conhecemos da raça azilense, uma cultura típica do Paleolítico ou da Antiga Idade da Pedra Superior.

Expansão dos Cro-Magnon pela Europa e Norte de África
Expansão dos Cro-Magnon pela Europa e Norte de África

É para mim impossível acreditar — e não me deixo demover desta crença pelas conclusões de arqueólogos que não sejam também estudantes da tradição — que as manifestações da arte aurignacense não tenham por trás delas muitos séculos de ascendência cultural. Encará-las como o resultado espontâneo de uma mentalidade selvagem é, na minha maneira de pensar, um absurdo sem limites. Nenhum selvagem dos dias de hoje pratica uma arte tão acabada na sua técnica; na verdade, os recentes desenvolvimentos na arte europeia moderna surgem como muito mais semelhantes ao bárbaro do que as delicadas produções do homem aurignacense e magdalenense. Que mente verdadeira­mente artística pode deixar de aplaudir a cabeça de cavalo de Les Espélungues, os bisontes de argila nas paredes de Tuc d’Audoubert, ou o touro em carga de Altamira? Comparem-nas, em termos de acção e de movimento, com a imobilidade grosseira das antigas pinturas egípcias, ou com a crueza dos primeiros velhos mestres italianos, e verão uma arte que transborda de vida e deriva, obviamente, de mentes em sintonia com um verdadeiro realismo, mentes que, ao mesmo tempo, estão conscientes do valor da inspiração, que se apoderaram do real e o retrataram com o espírito do ideal. Selvagens! Tenhamos cuidado com a forma como descrevemos estes antigos escultores e iluminadores, pois a posteridade, com um sentido estético mais justo, pode vir a conceder-lhes uma eminência que talvez não atribua a nós próprios!

E, se esta arte antiga ascende a posição tão elevada, como todos os estudantes de estética esclarecidos admitem, poderemos negar à Atlântida de onde ela emanou o resto da maravilhosa cultura que Platão, obviamente o porta-voz de uma tradição muito mais venerável, reclamou para ela? Que sabemos nós, afinal de contas, do mundo antigo que nos permita adoptar uma atitude de negação das afirmações tradicionais, profundamente enraizadas e tão frequentemente repetidas nas mais veneráveis crónicas, de que num período que quase transcende a imaginação houve uma civilização de ordem elevada, da qual derivaram todas as culturas deste planeta, que brilhou, tremeluziu e, como um Sol despedaçado, lançou a sua luz quebrada sobre os locais mais escuros da nossa estrela? Se não conseguimos descobrir provas materiais dessa civilização, não será porque os seus restos dormem sob o Atlântico? Mas podemos certamente deduzir, com confiança, a partir dos seus últimos fragmentos na Europa, na África e na América, fragmentos esses que surgiram subitamente e sem quaisquer raízes nesses locais, bem como pela sua tradição bem autenticada, que ela existiu, garantidamente.

NOTAS:

[1]  «Men of the Old Stone Age», p. 358.

[2] Ver «The Problem of Atlantis», capítulo XVIII, («O Dilúvio»), p. 211, para mais informações sobre este tema.

[3] Ver «The Probtem of Atlantis», pp. 76 e segs., para provas alargadas desta afirmação.

Fonte: LIVRO: «A História da Atlântida» de Lewis Spence

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