A vida é bela quando os aplausos rugem pelo estádio como um furacão. 11 de Julho de 2010 é um desses dias: o mundo em ordem e Joseph S. Blatter na tribuna de honra, no seu elemento. Apertos de mão, abraços e medalhas de ouro que brilham sob a luz dos holofotes e câmaras. Rodeado pelos seus executivos, o presidente da FIFA observa o desfile dos jogadores da selecção espanhola, que acaba de se tornar campeã mundial. «E agora…», ouve-se através do altifalante: «a entrega do troféu!» Flashes de luz circulam pela Arena de Joanesburgo, os monótonos instrumentos de sopro e as vuvuzelas rugem mais alto do que nunca. E Sepp Blater prossegue a descida dos degraus do estádio, com um cachecol sacerdotalmente branco e comprido até ao chão, que adorna o seu fato azul-escuro. Segura com a sua mão esquerda o troféu de ouro. Não poderá isto continuar assim para sempre, com uma volta ao estádio a seguir à outra? De repente, depara-se com Iker Casillas, o capitão da selecção espanhola. Solenemente, Joseph S. Blatter entrega o troféu ao novo campeão do mundo de futebol.
Isto é o pico da felicidade. Não só para um jogador profissional, mas também para um dirigente do ramo do desporto, que pode quebrar a rotina diária mundialmente. Um público composto por milhares de pessoas olha para ele; o mundo inteiro assiste ao momento, tudo vibra, estão todos em êxtase. Nenhum chefe de Estado consegue chamar as atenções sobre si desta forma; nem nenhum herói nem nenhuma estrela da música conseguem algo assim. Este é um momento para a eternidade.
Mas há também o papel do vilão. Sepp Blatter conhece-o igualmente bem, experienciando-o nos campeonatos do mundo de futebol de 2002, na Ásia e de 2006, na Alemanha. Uma experiência muito dolorosa para um homem como ele e que lhe invoca um outro sentimento desagradável, que tão bem conhece: impotência. Quando os fãs o vaiam, o assobiam e lhe mostram cartazes com insultos; quando ondas de protesto percorrem o estádio assim que o seu rosto aparece no ecrã; ou quando o chefe da FIFA tenta dizer alguma coisa — tudo momentos que ninguém quer vivenciar. Para Blatter, é o momento da verdade.
No Mundial de Futebol de 2006, o público vaiava-o cada vez com mais força a cada jogo, de tal forma que, depois da final, em Berlim, Blatter não se atreveu de todo a pisar o relvado para a entrega dos prémios aos campeões. A forma como estavam todos ali em baixo, de pé em torno da taça, sem saber o que fazer, foi uma imagem grotesca. O presidente da República Federal, Horst Kõhler, os executivos da FIFA, o presidente da organização do Mundial, Franz Beckenbauer, e todos os altos representantes da família do futebol estavam à espera do chefe. Mas Blatter não foi. Tinha-se entrincheirado. Com medo das pessoas nas bancadas? Dos fãs, daquela gente que não extrai nenhum lucro do jogo, tendo-lhe um amor que o tornou no maior acontecimento do planeta?
As pessoas humilham Blatter, assobiando-o a ele e ao seu gabinete. Elas representam a parte da Sociedade à qual é permitido fazê-lo: o público. Pessoas que, quando pensam no futebol, não o associam de imediato ao dinheiro, ao poder ou ao engrandecimento, mas sim à alegria, ao prazer e à diversão. E, para isso, pagam. Cada vez mais.
O resto joga em abnegação, quando Blatter viaja à volta do mundo e se deixa servir por hilotas e seguranças, espiões e secretários. Em classe executiva, cinco estrelas. Luzes intermitentes azuis e escoltas formam a decoração indispensável para o incansável homem de idade da cidadezinha de Visp, nos Alpes Suíços, e para os seus seguidores. Blatter tem no armário títulos honoríficos, a Cruz Federal Alemã de Mérito, a ordem olímpica e, até mesmo, o prémio Bambi, juntamente com mais um monte de outros. Designá-lo como presidente de uma federação desportiva é quase uma blasfémia. Ele não será, antes, o patrono de uma comunidade global de fé, que deixa as dimensões da Igreja Católica muito para trás? Os dirigentes do futebol acreditam fielmente nisso. E, de certa forma, até é verdade.
Basta um estalar de dedos e abrem-se portas de palácios reais e presidenciais, da Casa Branca, do Kremlin e do Vaticano, de presidentes e de ministros. Nenhum político com ambição se pode permitir uma atitude neutra em relação ao futebol. Há muito que este desporto não é um terreno imparcial. Quem quer ser popular tem de prestar homenagem ao futebol. Quando o chanceler Helmut Kohl, na cerimónia de entrega dos prémios do Mundial de Futebol de 1986, apertou os jogadores contra o seu peito largo, fez com que as pessoas se emocionassem. Hoje, até num jogo de qualificação, a filha do pastor de Brandenburg, Angela Merkel, faz a sua aparição nos balneários da selecção nacional alemã, posando para um grupo selecto de fotógrafos com os heróis suados, que apenas têm uma toalha em volta dos quadris. E, depois, durante dias a fio, a Chancelaria Federal e a presidência da Liga Alemã de Futebol discutem se este passeio ao sentimentalismo nacional estava combinado ou não — se era um número de circo para o público do futebol. Mas, lentamente, por baixo de toda a intoxicação futebolística, a Política não expõe só a sua dignidade, mas também algo que é ainda mais importante: o direito de criticar e controlar.
Podemos, então, censurar Sepp Blatter e os seus por se verem como seres superiores? Vislumbram-se, hoje em dia, nos estádios, formas de adoração que até há bem pouco tempo atrás apenas se encontravam na Basílica de São Pedro. Aos jogos assistem claques, dirigentes e multidões entusiastas, com uma luzinha na mão — isqueiros em vez de velas —, irradiando o sentimento que aqui e agora estão a viver, o pináculo das suas vidas. Gradualmente, cai um sentimento de imortalidade sobre a multidão, que sai para fora deste mundo, entrando num mundo espiritual de heroísmo e emoção — é uma combinação entre o desporto e a Religião que tem futuro.
Mas existem também razões profanas para se fazer amizade com Blatter e companhia. Todos os países gostariam de, pelo menos uma vez que seja, organizar o Mundial de Futebol, mesmo que tenham metade do tamanho de Hessen ou, por exemplo, sejam tão pequenos como o Catar. Por isso, também os interesses estatais exigem uma boa relação com Blatter, o potentado do futebol que já está no poder há dezenas de anos. Sorrir, acenar com a cabeça e ceder. E, por fim, pagar a factura com o dinheiro dos contribuintes.
Os deuses do futebol têm ainda menos a temer por parte dos patrocinadores do que por parte da política. A falange fechada de corporações globais, pelas quais em tempos de crise — que é uma constante na FIFA infestada pela corrupção — é dito: cuidado, atenção, se os patrocinadores ficarem mesmo zangados, a FIFA tem problemas graves. A forma como este conto de fadas veio ao mundo é um mistério. Porque, na verdade, as empresas e os patrocinadores ajoelham-se em veneração aos pés do produto «Mundial de Futebol» e, com isso, aos pés dos donos — de Blatter e dos seus camaradas. Porque o seu produto é, em toda a galáxia, um meio de publicidade por excelência. Quem não se adequa pode ser substituído a qualquer momento. Nomeadamente, por concorrentes directos no mercado; os rivais estão na fila.
Mas atenção! Não existem os meios de comunicação? Sim, existem. Só que os jornalistas desportivos são, muitas vezes, fãs que souberam pular a cerca, mas que raramente tratam o tema como profissionais sérios. Entusiasticamente, e com grandes simpatias pessoais, cumprem fielmente o seu serviço jornalístico pelo jogo apaixonado de Blatter, impulsionando assim o evento para grandes altitudes. A FIFA viveu momentos felizes com uma doação exuberante de 50 000 francos suíços, com a qual honrou a Associação Internacional de Jornalismo Desportivo, se os dados não mentem. [1] O fruto desta exaltação jornalística é, provavelmente, a mais original percepção de perda da capacidade de observação da nossa Sociedade moderna: uma empresa de milhões, marcada por uma crescente agressividade e pelo nacionalismo, alegadamente penetrada por pessoas sem escrúpulos e pelo crime organizado, à qual são atribuídos valores e ideais nos quais até a crescente multidão de fãs, de intelectuais e cientistas acredita piamente.
Infelizmente é assim: representantes importantes do mundo intelectual raramente dispõem de uma biografia desportiva própria, uma que vá além da iniciação no andar ou no pedalar. Com impulsos entusiásticos progridem no acesso ao desporto, com a ajuda dos meios de comunicação, em particular no futebol. Aquele que não compete pode amadurecer emocionalmente a aproximação ao mundo físico e vigoroso, adquirindo uma masculinidade a posteriori. Isto é um efeito agradável, mas negoceia apenas a perspectiva e não a entrada no significativo mundo corporal e socialmente ideal para si próprio, para os problemas e os perigos — apenas o é para o desporto.
O excesso da demanda do futebol através dos meios de comunicação tornou-se tão grande, que nenhuma formação é suficiente para contrabalançar isso. O treino é insuficiente e há uma sobrecarga. Tanto mais que os meios de comunicação e os serviços públicos ocupam-se cada vez menos com temas de fundo. Nenhuma pergunta. É mais fácil e mais rentável para todos converter o espectador em adepto. O conhecimento jornalístico vem em segundo plano. A tónica é desviada lentamente do sistema da dupla liderança, do losango no meio–campo e dos quatro cantos, para o círculo de questões que envolvem Schweini-Poldi e Lõw-Jogi, bandeirinhas e cores nacionais. Trata-se de um grande sentimento. E o futebol é, de facto, o maior gerador de emoções. Os meios de comunicação ainda conseguem espremer uma última lágrima e, na maior partes das vezes, esta é mesmo real. O trabalho em volta do consumidor prossegue. Problemas sociais como a doença de Alzheimer ou até a síndrome de Burnout apenas se tornam comercialmente interessantes quando estão relacionados com heróis do futebol. Relações-públicas e jornalistas trabalham juntos sob o lema da protecção, cujo objectivo é quebrar tabus incrivelmente importantes. Ainda há muito a mediar sob a cúpula solar no desporto da bola. A adoração é enorme.
Controlar esta mania global desgovernada não é nada mau para uma organização isenta de impostos, que, na verdade, tem como único objectivo «melhorar continuamente o futebol». Escusamos de chegar ao pé de Blatter para lhe falar de tamanha banalidade: o quê? Somente melhorar o jogo da bola? Não o fará ao abrigo de uma mensagem quase religiosa de salvação. Quando fala, e isso acontece quase todos os dias, despeja sobre a sua audiência um chorrilho de palavras sobre respeito, paz, um mundo melhor, educação, integração, transparência, esperança, um mundo ainda melhor, solidariedade, carácter escolar, escola da vida, escola para a vida, respeito e mais respeito. Já faz isso há uns doze, quinze anos, como um coelhinho Duracell que funciona a ecstasy. Ele não pode ser diferente; tem de sair tudo. Se é crónico? O futebol de Blatter liberta o mundo.
Deve haver pessoas que começam a acreditar verdadeiramente nisso.
Não aquelas com bom senso; essas não participam. Há anos que reparam que se passa algo com o seu desporto. Que o futebol é prejudicado quando fica demasiado tempo nas mãos das pessoas erradas e que já estão há dezenas de anos no poder. E danos há muitos. O Mundial de Futebol perdeu o seu símbolo, o logotipo com ambos os hemisférios… e ninguém deu conta disso. A própria instituição é suspeita de corrupção numa investigação criminal. Note-se que a própria FIFA teve de comparecer em tribunal, por haver resultados de investigação que poderiam levar a uma acusação. A própria federação reconheceu-os e pagou uma quantia elevada de indemnização. Só desta maneira é que pôde evitar um processo penal aos olhos do mundo inteiro. Mas porque pendia um processo sobre a cabeça da FIFA? Poderá uma organização, na realidade, ser acusada de algo? Com certeza que sim, se o oficial de justiça não dispuser de provas suficientes contra um ou mais elementos que sejam susceptíveis de acusação. Nesse caso, a própria FIFA é levada ao banco dos réus — em vez das pessoas que estão por trás da mesma.
Estas e outras coisas foram mantidas em segredo. Como é possível uma coisa destas? Não é difícil que tal aconteça, tratando-se de um ambiente protegido e sujeito a poucas leis. É com esta constituição que um país de negócios como a Suíça atrai instituições desportivas há anos. Para o mundo do desporto, estas são condições atraentes. Não é a toa que a FIFA e outras 50 instituições se radicaram nos Alpes. Isto é possível devido a um aparelho enorme que oculta, à luz do dia, muitos negócios obscuros e, sobretudo, graças ao dinheiro que um gigantesco aparelho de segurança destes deglute. E, para a FIFA, o dinheiro não é um problema. Com o ciclo actual dos mundiais, a organização ganha à volta de 4 mil milhões de euros. Portanto, 1 bilião por ano. Com este dinheiro pode ser erguido um bastião cada vez mais firme. São precisos muros grossos em volta dos próprios líderes e da sua moralidade perante os negócios, porque na era de Blatter o termo FIFA tornou-se sinónimo de corrupção. Os próprios habitantes da Suíça escolheram a expressão «comissão ética da FIFA» como a mais descabida de 2010. Simplesmente já não podiam ouvir a conversa absurda sobre a miraculosa «autopurificação». A expressão «família FIFA» já está há muito tempo para a variante siciliana como: lixo mafioso, máfia da construção, máfia da FIFA. Entretanto, é de senso comum que a organização do futebol sob o comando de Sepp Blatter acabou no seu todo como uma máfia, como uma rede de dependência mútua, na qual o futebol mundial é comandado segundo uma combinação de lealdade, corrupção e conspiração. Por todo o mundo, investigadores trabalham cuidadosamente no suporte jurídico. Com o FBI à cabeça.
A própria FIFA teve de tratar de alguns casos. Desde o final de 2010 foram despedidos, devido à corrupção, 4 dos 24 membros que, em conjunto com o presidente, formavam o Comité Executivo. O Ministério Público está a investigar uns quantos outros. Mas a investigação do FBI e dos aparelhos policiais nacionais europeus alimentam a suspeita de que isto é só a ponta do icebergue. As actividades da Polícia Federal Americana em questão estão localizadas no departamento de «O crime organizado na Eurásia». Isto é notável. Porque, na verdade, são as autoridades da Europa de Leste que se erguem, cada vez mais, com novo vigor no mundo internacional do futebol, não obstante o facto de, nestes países, a modalidade ter grandes problemas com a corrupção, com as estruturas financeiras e até mesmo com os direitos humanos. Ao mesmo tempo, os agentes deste hemisfério têm, com Michel Platini, um homem à cabeça da União das Federações Europeias de Futebol — UEFA. Que não só é a esperança deles no futuro, como também o de muitas outras federações de futebol. Este Platini será a última grande jogada de Sepp Blater: o seu sucessor. O francês trabalhou para Blatter desde o início como auxiliar nas eleições presidenciais, como seu assistente e aluno no que diz respeito à política desportiva.
Os flancos da FIFA estão a descoberto: como é que o Mundial de Futebol de 2022 foi parar ao forno do deserto do estado do Catar? Como conseguiram os russos de Vladimir Putin convencer o conselho da FIFA a conceder-lhes o Mundial de 2018? Estas são as perguntas mais frequentes. No dia 2 de Dezembro de 2010, em Zurique, os assuntos referentes a essa dupla atribuição dos mundiais de futebol de 2018 e 2022 são, para as partes interessadas, tema de estudo nos bastidores. O FBI participa também com uma investigação em dois continentes. São contratadas muitas empresas de investigação e de segurança privada. Umas investigam em nome dos candidatos ao Mundial enganados e querem desfazer as últimas atribuições, desde que consigam provar que houve suborno; outras trabalham para clientes que querem, por outro lado, apagar todas as pistas. A própria FIFA coloca constantemente as suas tropas no terreno.
Aqui está um novo perigo à vista. O desporto, confinado às suas próprias leis, liberta-se da constituição e constrói serviços noticiosos e de segurança próprios ligando-se estreitamente ao mundo real dos investigadores e serviços secretos. Esbatem-se assim os limites entre federações com líderes bastante obscuros e as autoridades, que, por vezes, os perseguem. A FIFA teve durante dois anos um chefe de segurança, na pessoa de Chris Eaton. Como antigo director da Interpol, dispõe de uma boa abertura junto das instituições governamentais, que continuam a tratar este supercop, mesmo depois da sua mudança, com aparente colegialidade. Isto não é bom; poderá tornar-se até perigoso — não irá surgir inevitavelmente uma zona informal sombreada? Uma zona que certamente não deveria existir e que tem de ser mantida sob vigilância apertada. Mas quem poderá fazê-lo, quando antigos funcionários da polícia continuam a manter contactos com os seus antigos empregadores, embora sejam entretanto considerados, de forma completamente diferente, como funcionários do sector privado?
O antigo homem da Interpol, Eaton, já não trabalha desde Março de 2010 para o Estado no combate ao crime, mas sim para uma organização de futebol acometida por uma corrupção crónica. Aí, ele teve de encobrir pessoas de topo, que frequentemente estavam na mira dessa mesma autoridade. Estranhamente, após algum tempo, surgiram até mesmo as primeiras formas de simbiose. Isto culminou numa memorável cooperação de dez anos, mediada rapidamente entre a FIFA e a Interpol, através da qual esta pôde encaixar a maior oferta da história da Federação Internacional de Futebol: 20 milhões de euros. Havia, e ainda há, muitas críticas feitas pelo sector policial, sobretudo porque após um ano ainda nada tinha sido feito. Em vez disso, as relações pessoais foram ampliadas: na primavera de 2012, Eaton foi substituído pelo alemão Ralf Mutschke como chefe de segurança da FIFA. Também o sucessor é um antigo diretor da Interpol, mudando-se agora da Polícia Criminal Federal para a federação que gere o futebol.
Não deve uma Sociedade democrática questionar se este tipo de relações não formam um risco para as políticas de segurança, sobretudo porque estão baseadas em relações pessoais? De qualquer modo, o tema fornece, até ao momento, material de conversação suficiente na justiça europeia e nos círculos de segurança. E, embora o veterano da Interpol, Eaton, tenha saído da FIFA, tal não significa, de modo algum, que ele não continue a fazer parte do novo e discreto circuito de segurança do desporto. Pelo contrário: mudou-se para o Centro Internacional para a Segurança no Desporto (ICSS), uma organização, com sede no Catar, que tem vindo, progressivamente, a evidenciar bastantes esforços no que diz respeito a questões relacionadas com a segurança no desporto. Isto sob o comando de pessoas que anteriormente trabalharam para os serviços de inteligência militares e para os assuntos internos do Catar.
Tais ligações com peritos policiais bem relacionados e bem remunerados são preocupantes, e até absurdas, quando se constatam os problemas de integridade dramáticos que envolvem muitos dos principais representantes da Federação Internacional de Futebol.
Como é que um funcionário não remunerado do futebol chega a uma fortuna de milhões com três dígitos? Terá a FIFA, tal como o chefe da máfia Don Corleone, no cinema, distribuído as suas actividades comerciais por membros da família em vez de negociar livremente no mercado e de, assim, tentar obter os maiores lucros possíveis para o futebol? A resposta é: sim, a FIFA comporta-se como uma dessas famílias. Um exemplo: a cedência de direitos televisivos a um preço de amigo, durante décadas, a um membro do próprio conselho administrativo.
A corrupção tem uma longa história na FIFA: quão corrupta é uma organização que conta com um presidente honorário como João Havelange, que, após meio século, renunciou à sua filiação no Comité Olímpico Internacional, antes mesmo de ser expulso por corrupção? Este homem esteve durante 25 anos à cabeça da FIFA.
O que sabia o seu aluno e sucessor Sepp Blater, que se assegurava sempre habilmente de que a FIFA faria permanentemente negócios com a mesma agência de marketing? Esta agência, a ISL, esteve por trás de uma das maiores falências da história económica da Suíça. Com isso veio à tona que a ISL, a título de suborno, teria pago a quantia impensável de 141 milhões de francos suíços a altos funcionários do mundo do futebol e de outros desportos.
Existem centenas de quilos de material jurídico referente a este suborno relacionado com a agência de marketing. Mas também há um documento penal do Ministério Público que põe a descoberto a sistemática que está por trás do sistema de suborno em relação aos destinatários e que explica o conluio entre o topo da FIFA e a ISL. Este despacho de não pronúncia em relação à questão FIFA/ISL forma o falhanço moral da Federação Internacional de Futebol e dos seus líderes nas últimas décadas. O documento já existia desde o início do verão de 2010, mas a FIFA e os funcionários envolvidos souberam barrar a sua divulgação durante anos, com a ajuda de advogados suíços bem pagos. Estes são remunerados com o dinheiro de uma federação mundial que, consequentemente, por má administração dos próprios funcionários, se encontra no banco dos réus como organização.
E a pergunta mais delicada de todas? Também essa gira em torno do patrono desta família. Curiosamente, o presidente protege o seu escritório e oculta os gastos correntes, até mesmo dos membros do seu Comité Executivo. O que não augura nada de bom, porque Sepp Blater tem poder para assinar sozinho pela FIFA. Este homem não necessita do consentimento de outros para assinar transacções financeiras em nome deste grande grupo. E isto já acontece desde 1998. Nessa altura, conquistou o trono após uma batalha eleitoral que é classificada, até mesmo pelos seus apoiantes da altura, como altamente corrupta.
Tudo isto tem colocado a FIFA numa situação tão incómoda, que no verão de 2011 teve de prometer que procederia a melhoramentos. Como de costume. Inicialmente, Blatter acreditava sinceramente na possibilidade de virar o jogo a seu favor, usando simpáticas personalidades. E quis pessoas como o cantor de ópera Plácido Domingo a puxar o seu carrinho. Como isso não foi popular, disse à sua plateia que queria introduzir os princípios de good governance nos negócios. A sua FIFA investiu imediatamente somas enormes de dinheiro — o dinheiro é irrelevante — e atraiu rapidamente o pessoal adequado. Bisbilhoteiros menos críticos, como os da Transparency International. Estes peritos em anticorrupção estavam inicialmente envolvidos no caso, mas não queriam apenas desenvolver regras de compliance; queriam também clarificar o passado da federação de Blatter. Imperativo. Inegociável. Enfatizavam sem parar, e em público, que nada de bom podia ser feito dentro de um ambiente errado, e que por isso não podia haver good governance sob a tutela de pessoas que já há décadas enchem os próprios bolsos. Mas… e o passado, com os seus indícios de suborno que duram até ao presente? Por amor de Deus! Blatter e os seus amigos preferem deixar isso como está: bem escondido.
Portanto, tinham de contratar artesãos de conformidade, instaladores de uma boa consciência nos negócios. Pragmatistas, para os quais, no final, são irrelevantes as mãos nas quais colocam o bom trabalho. Blatter nomeou Mark Pieth como chefe reformador. Um criminalista suíço, com uma excelente reputação. A equipa de Pieth dedica-se a uma missão impossível: a renovação da ética na FIFA — sob a liderança de pessoas que gostariam de enganar o Ministério Público. E assim que o homem que fora muito meritório na investigação sobre a corrupção na campanha «petróleo por comida» se vê rapidamente exposto à crítica. E quem observar melhor vê que a compliance e a good governance formam também elas uma indústria próspera e que, além disso, neste ramo muitas vezes circulam as mesmas pessoas que estão envolvidas no novo sistema de segurança no mundo do futebol.
Uma situação bizarra. O chefe reformador de Blatter, Pieth, tentou pelo menos verbalmente dar a impressão de se opor genuinamente a uma monopolização. Por essa razão, dispomos agora de uma série de gratificantes declarações esclarecedoras, que, do ponto de vista especializado, lançam uma luz sobre as práticas em torno do patrão da FIFA.
O público está muito indignado, «e com razão», diz o especialista em corrupção, Pieth. «Como criminologista entendo isso muito bem. Existem acusações fortes que nunca foram esclarecidas. Isso é frustrante e insuportável». E disse ainda ter ouvido o seguinte: «Funcionários vendem as atribuições dos mundiais de futebol e/ou as decisões de marketing, e desapareceram os fundos para o desenvolvimento. Nós próprios preparámos uma lista dos pecados, e ela irá ficar ainda maior». Pieth não «iria recuar caso fosse necessário informar o Ministério Público sobre casos criminais relevantes que surgissem e que tivessem de ser esclarecidos». Sim, ele parte desse princípio. «A FIFA encontra-se no limite da lei — como em tudo. Acima da FIFA existe apenas o céu.» [2]
Quando o professor criminal de Basileia pediu rapidez para o seu projecto de reforma, voltou novamente a falar na página da FIFA sobre os verdadeiros criminosos: «Percebe-se aqui e ali a resistência à estrutura do poder. Temos de conseguir ver o bandido e não o deixar escapar às críticas da reforma». No entanto, como podemos prevenir no futuro que os «bandidos» se escapem das reformas orientadas? E indiferente. Pieth vê, de qualquer maneira, gatunos em todos os lados: «Eu olho para o passado, quero saber quais são os riscos. Por isso, não devo transferir o bandido, não devo denunciar Havelange.
Não adianta; ele já tirou milhões». [3] Ao mesmo tempo, sabe que nada vai mudar na FIFA. Tem consciência de que, com Michel Platini, aluno de Blatter, está pronto um novo representante do regime antigo. Platini é o alvo provável do reformado crítico Pieth, que denuncia publicamente, tentando pará-lo: «Talvez haja pessoas que prometem fazer algo pelo futuro da FIFA, mas não querem mudar as coisas básicas, como, por exemplo, as limitações no mandato» [4]
Platini e a ligação francesa que existe por trás de Blatter, liderada pelo secretário-geral Jérôme Valcke, preparavam já a FIFA para a era após o pequeno ditador, com ajuda deste. Enquanto os especialistas em conformidade trabalham regras criteriosas, o antigo sistema abre caminho para o futuro. Pois Platini é um homem do passado. Outrora, ajudou Blatter a chegar ao poder, e representa a garantia de que as portas blindadas do escritório do presidente permanecerão encerradas após a sua saída. Assim como este garantiu, desde 1998, que o processo Havelange permanecesse encerrado.
É e será uma luta implacável, esta que é travada nos bastidores. Quem desistir está longe de estar fora de jogo. Trata-se de biliões e de reputações. Trata-se de campeonatos mundiais e de especulações sobre o futuro. Trata-se de dinheiro e existência.
Em 2010, na África do Sul, foi a última vez que o mundo de Blatter esteve em ordem. As pessoas do Cabo não conheciam muito bem a sua FIFA. Quem é que ali estava interessado em acórdãos e processos nos quais a FIFA é estigmatizada como uma organização fraudulenta? Não, o tio Sepp e os seus grandes nomes do futebol eram simplesmente os sugardaddy’s que espalhavam ingressos gratuitos para estudantes e trabalhadores do estádio e fingiam que era somente graças a eles que se podia realizar algures no mundo um campeonato mundial.
«Nada resta da beleza do futebol desde que o campo de jogo se transformou num teatro de guerra», escreveu Tyrone August, chefe de redacção do Cape Times, isto porque, depois dos jogos de apuramento para o Campeonato Mundial, tiveram lugar uns motins atrás dos outros. E tal não sucedeu apenas em países como a Nigéria, onde o chefe de Estado, Goodluck Jonathan, ficou cheio de raiva pelo desempenho da equipa das super-águias, dissolvendo-a e retirando-a de todos os jogos de qualificação; ou na Coreia do Norte, onde, após uma eliminação prematura, muitos dos jogadores e delegados foram parar a um campo de trabalho — e alguns deles, segundo consta, até desapareceram completamente de cena. Não, não aconteceu apenas nesses locais: até mesmo em França, Itália e Inglaterra foram libertadas enormes energias patrióticas; os políticos portavam-se como adolescentes quando os heróis do futebol não se empenhavam de acordo com as expectativas patrióticas. Jogadores arrependidos e ministros a espumar dominavam durante dias os noticiários do mundo ocidental.
Este Campeonato do Mundo de Futebol fica marcado por nacionalismos, como não tinha acontecido em nenhum anteriormente, e não há nada em vista para impedir esta tendência. Tudo degenera numa disposição humorística, na qual, mais uma vez, se oscila entre a glória e a queda. E, naturalmente, os políticos também assistem ao ponto alto, agora que as suas reflexões se ocupam apenas com a colocação da Política como um produto: onde, quando e com quem são vistos? Os primeiros-ministros e chefes de Estado competem na tribuna de honra no meio dos aplausos exuberantes, com os quais, hoje em dia, se impõem ao eleitorado.
O Campeonato do Mundo de Futebol de 2006 fez da Alemanha o país das maravilhas, onde durante semanas, sob um céu brilhante, se erguia um povo completamente novo acima da rotina do dia a dia. Um dos muitos mitos. O Mundial de Futebol de 2002, no Japão e na Coreia do Sul, foi iluminado de todos os lados por cientistas políticos, como um sinal de amizade e ligação entre povos. A sério. Na realidade, os dois países, num ambiente eleitoral altamente suspeito, lutaram até à medula e foram forçados a trabalhar juntos pela FIFA sem que fosse resolvida qualquer contradição.
Quando a selecção francesa ganhou o Campeonato do Mundo de 1998 com os jogadores de descendência norte-africana Zidane, Henry e Trezeguet, o acontecimento foi vendido como um triunfo de integração. Nas universidades escreveram-se teses de doutoramento sobre o quanto tinha esse triunfo contribuído para a política de integração francesa. Três anos depois, chega a resposta vinda da rua: os subúrbios de Paris ardiam.
Poderá este resultado surpreender quando a Política a sério é substituída por uma política carnavalesca? Como em 2004, quando os gregos comemoraram o seu título europeu como sendo um triunfo do moderno helenismo, como uma vitória para a sua inércia mostrada no relvado — o que não foi enfatizado? No entanto, a euforia durou apenas algumas semanas, porque depois os inflexíveis gregos aperceberam-se, após uma série de fogos florestais devastadores, de que os seus cadastros não dispunham de um registo de propriedade.
Naquele 11 de Julho de 2010, em Joanesburgo, na noite inebriante de Blatter, estava também presente um homem em cadeira de rodas: Nelson Mandela. Esta mítica figura de África submete-se, pela última vez, às demandas dos chefes do futebol. Que honra, que reconhecimento. E um prazer para o séquito do mundo desportivo, para os patrocinadores, funcionários e representantes de algumas pequenas repúblicas, poderem ainda rapidamente acalentar-se no brilho de um dos mais importantes políticos do Século XX.
«A FIFA pressionou-nos muito e exigiu que o meu avô estivesse presente na final», queixou-se o neto de Mandela, Mandla. [5] Pois a família lamentava a morte da bisneta de Mandela, Zenani, já há algumas semanas. A menina de 13 anos estava a regressar a casa após a cerimónia de abertura do Campeonato do Mundo de Futebol, quando sofreu um acidente de carro e morreu. O coração de Mandela estava destroçado, tendo o político cancelado a sua participação na cerimónia de abertura oficial. Porém, na final, a FIFA não o desculpou, queixou-se o neto. «Eles não respeitaram os nossos costumes nem as nossas tradições como seres humanos e como família. Este ícone mundial tinha de estar presente, custasse o que custasse.»
Se as pessoas tivessem conhecimento disso, se calhar também na África do Sul se teria gritado «Blatter, fora!». Uma coisa é certa: gritos destes nunca serão ouvidos dentro da própria FIFA. Nos 38 anos que o suíço leva no poder como director, secretário-geral ou presidente, a FIFA tornou-se numa espécie de instrumento particular. Blatter dita as leis. A sua palavra é lei.
Por essa razão, o futebol tem de ter esperança no FBI e noutros órgãos de investigação. Tem de confiar na independência dos ministérios públicos que iniciaram investigações em diferentes partes do mundo. Tem de ter esperança na divulgação do despacho de não pronúncia em relação ao caso ISL. E que os companheiros de viagem de Blatter intimidados façam finalmente o que anunciaram publicamente: ponham a descoberto o patrono desta família do futebol.
«Sou uma má pessoa?», grita Sepp Blatter na sala de congressos, desta vez em Seul, capital da Coreia do Sul. Estamos a 29 de Maio de 2002 e Blatter acaba de defender o seu trono na FIFA, depois de uma lendária campanha eleitoral suja. Agora, os representantes estão à sua frente, as suas mãos estão quentes de tanto baterem palmas — funcionários que encaixam anualmente centenas de milhares ou milhões de dólares para as suas associações. Muitos estão acompanhados pelas mulheres ou namoradas. A maior parte deles representa ilhas e estados desérticos, principados ou pequenos estados, alguns dos quais pouco maiores do que uns cem campos de futebol. Muitos deles nem sequer dispõem de um campo de futebol decente. Mas o dinheiro flui com grande regularidade para o lado deles. Eles formam a família do futebol, que neste dia de eleições está toda presente e se mostra entusiasmada.
«Sou eu uma má pessoa?», grita Blatter para eles. «Vocês não são assim tão más pessoas para escolherem um mau presidente! Por isso, somos todos bons. Dêem as mãos. Somos todos bons! Dêem, todos, as mãos. Pela união do futebol. Pelo futebol!»
Esta lógica perdura. Até o jogo acabar.
Notas:
[1] KPMG – Management letter sobre o balanço de 2000.
[2] Frankfurter Allgemeine Zeitung, 25 de Janeiro de 2012.
[3] Zurcher Tages-Anzeiger, 10 de Dezembro de 2011.
[4] Frankfurter Allgemeine Zeitung, 25 de Janeiro de 2012.
[5] BBC Radio 5 Live, 11 de Julho de 2010.
Thomnas Kistner
Munique, março de 2012