A ilusão da objectividade é tanto mais forte quanto mais as suas vítimas se convencem de que estão livres dela. A par de um louvável sentido da honra, há uma propensão para a hipocrisia que acompanha desde sempre a Ciência experimental.
No caso de Galileu, o desejo de fazer vingar as suas ideias tê-lo-á levado a relatar experiências que não era possível fazer exactamente como ele as descrevia. Daí que sempre tenha havido, desde os primórdios da Ciência experimental ocidental, uma atitude ambígua em relação aos dados. Por um lado, conferia-se aos dados experimentais o papel de árbitro definitivo da verdade, pelo outro subordinavam-se os factos às teorias sempre que necessário e, se uma coisa não encaixasse na outra, distorciam-se os factos.
Idêntico vício flagelou outros gigantes da história da Ciência, com destaque para Sir Isaac Newton, que esmagava os críticos com uma exactidão de resultados que não deixava margem para discussão. O seu biógrafo Richard Westfall recolheu documentos relativos à forma como ele manipulou os cálculos sobre a velocidade do som e a precessão dos equinócios, e alterou a correlação de uma variável da sua teoria da gravidade para simular uma exactidão superior a 1/1000.
Uma parte não desprezível do poder de persuasão dos Principia residia na sua deliberada pretensão de exibir um grau de precisão que está muito para além do que legitimamente pode reivindicar. Se a obra Principia definiu o padrão quantitativo da Ciência moderna, também sugeriu uma verdade menos sublime – que ninguém como o próprio mestre matemático pode manipular tão bem o factor aleatório.
A mais vulgar forma de mistificação – do próximo e do próprio – é provavelmente a que tem a ver com a utilização selectiva de dados. Por exemplo, entre 1910 e 1913, o físico americano Robert Millikan envolveu-se numa polémica com um rival austríaco, Felix Ehrenfeld, sobre a carga do electrão. Tanto os primeiros dados obtidos por Millikan como por Ehrenfeld eram bastante variáveis. Eram obtidos pela introdução de gotas de óleo num campo eléctrico e consequente medição da força que o campo tinha de exercer para as manter em suspenso. Ehrenfeld afirmava que os dados demonstravam a existência de subelectrões com fracções da unidade de carga de um electrão. Millikan sustentava que só havia uma carga. Para refutar o seu rival, publicou em 1913 uma comunicação cheia de resultados novos e exactos que reforçavam a sua posição, salientando em itálico que “não se trata aqui de um grupo seleccionado de gotas, antes representa todas as gotas com as quais se fizeram experiências durante sessenta dias consecutivos”.

Recentemente, um historiador da Ciência examinou os cadernos de apontamentos do laboratório de Millikan, que revelam um quadro muito diferente: Os dados brutos estavam individualmente anotados com comentários como “muito baixo, algo está errado” e “lindo, publicar isto”. As 58 observações publicadas no seu artigo tinham sido seleccionadas de um total de 140. Enquanto isso, Ehrenfeld continuava a publicar todas as suas observações, que continuavam a mostrar uma variação muito maior do que os dados seleccionados de Millikan. Ehrenfeld foi desautorizado, enquanto Millikan ganhava o Prémio Nobel.
Não há dúvida de que Millikan estava convencido de que tinha a razão do seu lado, e não queria ver as suas convicções teóricas perturbadas por uns dados confusos. O mesmo se poderia provavelmente dizer de Gregor Mendel, que nas suas famosas experiências de germinação de ervilhas obteve resultados que, de acordo com a moderna análise estatística, eram bons de mais para serem verdadeiros.
A tendência para só publicar os “melhores” resultados e para maquilhar resultados não é, evidentemente, prática exclusiva de figuras famosas da história da Ciência. Em quase todas, se não em todas, as áreas da Ciência há resultados que podem contribuir para o progresso da carreira de quem os produz. E, num ambiente profissional altamente competitivo e hierarquizado, utilizam-se variadas formas de melhorar os resultados, quanto mais não seja pela omissão dos desfavoráveis. Trata-se de uma prática perfeitamente normal. Até porque as revistas da especialidade têm muito pouca apetência pela publicação dos resultados de experiências problemáticas ou negativas. Dados pouco claros ou resultados aparentemente desprovidos de significado não produzem créditos profissionais.
Não conheço qualquer estudo formal sobre a percentagem de dados de investigação que são de facto publicados. Nos campos que conheço melhor por experiência pessoal – bioquímica, biologia do desenvolvimento, fisiologia das plantas e agricultura – calculo que não mais de 5-20% dos dados experimentais sejam seleccionados para publicação. Tenho perguntado a colegas de outras áreas de investigação, como o da Psicologia experimental, química, radioastronomia e medicina, e chego a resultados idênticos. Quando a grande maioria dos dados – por vezes mais de 90% – são postos de parte em processos de selecção individuais, resta, como é óbvio, uma ampla margem para a intervenção consciente ou inconsciente do preconceito pessoal e do pressuposto teórico.

A publicação selectiva de dados gera um clima em que a mistificação, do próximo e do próprio, se torna uma mera questão de grau. Acresce que, por via de regra, os cientistas consideram os seus blocos de apontamentos e ficheiros de dados como matéria privada e tendem a resistir a quaisquer tentativas de consulta dos mesmos por parte de críticos e rivais. E certo que, normalmente, parte-se do princípio de que um investigador estará disponível, para, dentro dos limites do razoável, permitir o acesso aos seus dados de qualquer colega que exprima o desejo de os consultar. Mas diz-me a experiência que se trata de uma situação ideal, que está muito longe da realidade. Nas diversas vezes em que pedi a investigadores que me mostrassem os seus dados brutos, recebi a negativa como resposta. Talvez isto diga mais sobre mim do que sobre as normas científicas em vigor. Mas um dos pouquíssimos estudos sistemáticos deste estimável princípio de abertura dá poucas razões para nos sentirmos confiantes. O método seguido foi simples. A pessoa que o fez, um psicólogo da universidade do estado de Iowa, escreveu a trinta e seis autores de trabalhos publicados em revistas de Psicologia e pediu-lhes os dados em que se tinham baseado para escrever os artigos. Cinco não responderam. Vinte e um responderam que, infelizmente, os dados se tinham extraviado ou tinham sido inadvertidamente destruídos. Dois autorizaram o acesso mas em condições muito restritivas. Só nove enviaram os dados de base; e quando os seus trabalhos foram analisados, mais de metade tinham erros grosseiros logo nas estatísticas.
Pode ser que as pessoas que se recusam a permitir o acesso aos seus dados brutos não tenham nada a esconder; talvez achem apenas uma maçada explicar as suas notas a outra pessoa ou desconfiem das motivações do pedido, ou vejam neste uma ofensa implícita à sua honra. Não é minha intenção, com esta análise, sugerir que os cientistas são particularmente propensos à fraude e à mistificação deliberadas. Pelo contrário, na sua maioria são provavelmente tão honestos como a maioria dos membros de outros grupos profissionais, como os advogados, os padres, os banqueiros e os administradores de empresas. Mas os cientistas têm maiores pretensões de objectividade, e ao mesmo tempo uma cultura que fomenta a publicação selectiva de resultados. São condições que favorecem a mistificação deliberada dos outros, mas não me parece que seja essa a maior ameaça ao ideal da objectividade. O maior perigo de todos é a automistificação, em especial a mistificação colectiva estimulada pelos pressupostos dominantes acerca da realidade objectiva.
Muitos cientistas conseguem detectar nos outros o potencial de confundir a ilusão com a realidade e são lestos a desvalorizar os resultados de investigação feita em campos heterodoxos como a Parapsicologia e a medicina holística como frutos de automistificação, quando não de fraude deliberada. E, de facto, muitos dos que questionam as ideias ortodoxas podem muito bem enganar-se. Mas não fazem grande mal ao progresso da Ciência porque os resultados a que chegam são sujeitos a um exame extremamente crítico, quando não são pura e simplesmente ignorados. Grupos organizados de Cépticos, como o CSICOP, o Comité para a Investigação Científica das Reivindicações do Paranormal, estão sempre prontos para questionar resultados que não se coadunem com a cosmovisão mecanicista e fazem todos os possíveis por desacreditá-los. O facto de os parapsicólogos estarem muito habituados a estas reacções críticas torna-os particularmente atentos aos possíveis alçapões dos métodos experimentais e outras fontes de parcialidade. Mas a Ciência convencional não está sujeita ao mesmo grau de escrutínio céptico.
Fonte: LIVRO: «7 Experiências que podem mudar o Mundo» de Rupert Sheldrake