No que diz respeito ao tipo de Religião que florescia na Atlântida, o relato platónico fornece-nos alguns detalhes bastante precisos. Por exemplo, somos informados de que havia um rito particular envolvido nas deliberações dos reis que ocorriam de seis em seis anos. Antes do tribunal de justiça que decorria nessa ocasião, eram trazidos dez touros para a zona sagrada, e cada um dos reis atlantes jurava oferecer um destes touros a Poseidon sem o auxílio do ferro. Os animais eram então conduzidos até à coluna de cobre gravada e imolados, após o que os reis passavam os membros de cada touro pelo fogo, fazendo uma oferenda do sangue e ensopando a coluna com ele. Depois os animais sacrificados eram completamente consumidos pelo fogo. O restante sangue era colocado em pequenos recipientes de ouro e salpicado sobre o fogo e parte dele era bebido.
Esta cerimónia é muito semelhante a várias das cerimónias praticadas pelos povos aztecas. Os sacerdotes mexicanos tinham o hábito de conduzir as suas vítimas humanas até uma coluna gravada do mesmo género, fazer oferendas com o seu sangue em vasos de ouro, e até beber algum. O facto de fazerem sacrifícios humanos em vez de animais justifica-se por não serem conhecidos no México animais de grande porte, mas, mais a Norte, as tribos índias das quais os aztecas derivaram sacrificavam o búfalo quase da mesma maneira que os atlantes sacrificavam o touro.
Sabemos também que o touro era o animal sagrado dos aurignacenses, como o prova a sua presença em muitas das grutas-templos, e não pode haver grande dúvida de que eles o sacrificavam. O culto do touro foi talvez a primeira e, certamente, uma das mais disseminadas religiões da Europa Ocidental, e sabe-se naturalmente que penetrou até ao Egipto. Examinemos então brevemente a veneração do touro no Egipto e vejamos se pode lançar alguma luz sobre as circunstâncias do culto atlante.

O facto de o culto do touro ser certamente de origem muito antiga é provado pelas afirmações de Manetho, um sacerdote egípcio, que faz remontar o culto de Ápis a um rei da Segunda Dinastia, por volta de 3.000 a. C. Aeliano, na verdade, recua ainda mais e atribui a origem da prática a Menes, o primeiro rei da Primeira Dinastia egípcia. Isto, claro, implica que o culto seria provavelmente muito mais antigo, uma vez que se considerava que praticamente tudo o que era antigo no Egipto fora introduzido por Menes, o grande herói cultural, ou o introdutor da civilização na região do Nilo. Heródoto descreve o touro Ápis como sendo de cor negra, mas com uma mancha branca quadrada na testa, nas costas a figura de uma águia, com pêlos duplos na cauda e a marca de um escaravelho na língua. Os egípcios acreditavam que a alma de Osíris passara para um touro, depois da morte, e que quando esse touro morresse seria necessário encontrar uma cria de touro que tivesse as mesmas marcas, para que a alma do deus pudesse continuar a viver.
Ora, já observámos que o culto de Osíris, com a concomitante prática da mumificação, era de origem ocidental, e que na verdade não era mais do que uma adopção e amplificação efectuada pelos egípcios da antiga crença aurignacense de que a alma residia nos ossos e que, se queriam que o espírito sobrevivesse, os ossos tinham de ser cuidadosamente preservados. É óbvio que este culto particular deve ter-se amalgamado com o culto aurignacense do touro, portanto não é surpreendente encontrar a religião de Osíris associada ao touro e o próprio Osíris identificado com ele.
Sabemos que o touro, no Egipto, era primariamente encarado como oráculo e que cada movimento seu era interpretado como tendo algum significado especial. Sabemos também que lhe eram sacrificados bois, o que indica claramente que era considerado como pertencendo àquela classe de animais que os povos bárbaros crêem ser o chefe ou “rei” do seu “povo”. As tribos índias da América, por exemplo, costumavam rezar ao Grande Veado para que lhes enviasse os membros do seu “povo” como presas de caça, e tinham de apaziguar esse deus sempre que matavam um veado. De forma semelhante, certas populações de pescadores bárbaros rogavam ao Grande Peixe que enviasse os cardumes dos seus súbditos para as redes. No Peru da antiguidade, venerava-se uma Grande Mãe Batata como protótipo de todas as batatas, uma Mãe do Milho como progenitora da planta do milho, e por aí fora. Parece pois provável que os aurignacenses tivessem o hábito de venerar um Grande Touro que os mantinha abastecidos de carne, e que esta ideia tivesse gradualmente passado para o Egipto, cujo povo provavelmente não compreendia ou já esquecera o seu significado original.

O culto de Osíris está ligado ao do touro pela prática de embalsamar e mumificar o touro Ápis depois de morto, tendo sido descobertos os restos mortais de vários bois Ápis no famoso Serapeion.
Esta veneração de Serapis ou Osíris-Ápis espalhou-se pela Europa a partir do Egipto, foi adoptada em Roma e, por fim, chegou à Grã-Bretanha, onde foi construído, em York, um grande templo ao deus duplo. Mas deve ter-se cruzado em solo britânico com uma fé semelhante, com a qual talvez se tenha fundido, pois a veneração do touro e os sacrifícios já eram indubitavelmente praticados na Grã-Bretanha há vários séculos. O touro era venerado pelos celtas e a sua imolação fazia parte do cerimonial druídico, como mostram as antigas Tríades Galesas. Na Escócia a sua figura está gravada em muitas das antigas pedras pícticas, e estas estão associadas com símbolos religiosos. Já no princípio do Século XVII, vários Presbitérios das Terras Altas condenaram a prática de sacrificar o touro mantida pelos camponeses. Na verdade, há muitas evidências de que o culto do touro teve uma influência mais antiga e duradoura na Grã-Bretanha, como é comprovado não só pelas circunstâncias acima descritas mas também pelo popular desporto de atiçar os touros com cães, que parece ser apenas o rito original de sacrificar o touro num estado de desgaste.
Parece pois claro que o sistema atlante de veneração do touro penetrou em todos os países contíguos à ilha afundada. Estudantes de Religião comparada estão agora a começar a ver que qualquer teoria que não atribua a origem de algum costume, religioso ou não, a uma esfera específica dificilmente será digna de crédito, e se admitirmos este princípio, é óbvio que a origem da veneração do touro deve ser procurada numa área em especial. Isto implicaria que o culto do touro, da Grã-Bretanha à Índia, tem uma génese atlante. Mas, quando vemos que em Espanha está associado aos princípios do ofício do embalsamador, e que no Egipto estava identificado com a mumificação, dificilmente podemos duvidar de que os cultos egípcio e aurignacense devem ter tido uma origem comum. Se acreditarmos que os aurignacenses vieram da Atlântida, restam poucas dúvidas de que trouxeram consigo o culto do touro, e certamente que encontramos corroboração deste facto no relato da Atlântida feito por Platão. Na verdade, as circunstâncias do culto do touro, retiradas do estudo comparativo do seu fenómeno em Espanha, França, Grã-Bretanha, Creta e Egipto, falam eloquentemente da sua origem na Atlântida submersa, onde, segundo os detalhes fornecidos por Platão, retirados por sua vez de fonte egípcia, encontramos também a veneração do touro plenamente enaltecida.

Podemos avaliar, através de um breve estudo da cerimónia báquica, até que ponto o relato feito por Platão do sacrifício do touro na Atlântida foi adulterado pela existência de um sacrifício semelhante na veneração helénica de Baco. Numa das suas fases — uma fase inicial — Baco aparece como um touro. Mesmo no tempo de Eurípedes, Baco ainda era adorado na sua forma taurina na Macedónia (embora já não na Atenas mais civilizada), e nos mistérios Órficos o devoto, antes de se tornar uno com Baco, devorava a carne crua de um touro. “É perfeitamente claro que se efectuava tradicionalmente uma espécie de festival de carne crua como parte do cerimonial báquico”, diz Miss Jane Harrison na sua obra «Prolegomena to the study of Greek Religion». Firminius Maternus, o padre cristão, diz dos cretenses: “Despedaçam um touro vivo com os dentes e, soltando gritos discordantes por entre os locais secretos dos bosques, simulam a loucura de um animal enraivecido.” Se os devoradores de touros não habitavam em Atenas no tempo de Platão, deviam pelo menos ser aí conhecidos, e não parece improvável que Platão tenha colorido o seu relato dos sacrifícios de touros dos atlantes à luz do que acontecia efectivamente nos mistérios Órficos.
A ligação do touro com Poseidon leva-nos à questão dos deuses da Atlântida. O touro era o símbolo especial desta divindade, eram-lhe sacrificados touros, e, quando recordamos que era o deus do terramoto, bem como do mar bravo, a ligação alegórica do touro com este deus parece bastante clara. Era indubitavelmente considerado, desde tempos muito antigos, a incorporação da ira, a besta roncante que pisava violentamente a terra — o agitador da terra, por assim dizer, proporcionando uma excelente imagem animal do terramoto e da tempestade. Talvez o próprio Poseidon fosse originalmente encarado como um touro, precisamente como outros deuses tinham originalmente forma animal, e o seu torso maciço na arte clássica empresta sem dúvida alguma credibilidade a esta hipótese. Seja como for, o touro era o animal de Poseidon par excellence.
Os deuses da Atlântida, embora sejam, em boa consciência, vagos, podem contudo ser reunidos numa espécie de panteão provisório. Os gregos consideravam o próprio Poseidon uma divindade pelasgiana ou asiática, algo semelhante ao Ea ou Dagon assírio, cuja cauda de peixe é tão proeminente na escultura assíria e babilónica.

Este deus era também venerado pelo povo fenício de Cartago, mas parece muito provável que, tal como Osíris era de origem ocidental, o mesmo acontecesse com Poseidon. Em primeiro lugar, ele, como todos os outros titãs, vinha originalmente do Ocidente, e o maior número de lendas relacionadas com ele associam-no a localizações ocidentais. Mais ainda, encontramo-lo no relato de Platão, definitivamente associado à Atlântida, onde nos é dito que o seu templo era o principal local de culto da ilha.
A associação de Atlas, num grupo definido, com outros deuses cujos nomes ainda permanecem ligados a países existentes deixa bem claro que o seu próprio nome não foi associado à Atlântida por um mero capricho da imaginação platónica. Encontramo-lo na mitologia grega agrupado de modo muito concreto com os seus irmãos titãs, Albion e Iberius, os deuses gigantes da Grã-Bretanha e da Irlanda. Estes, podemos assumi-lo, formavam uma espécie de panteão arquipelágico. Os três eram titãs, e, como sabemos, os titãs eram apenas deuses ocidentais. O mito dos titãs, em si mesmo, é significativo para o nosso estudo. Na verdade, parece-me que esta antiga história de deuses gigantes, provenientes do Ocidente e invadindo o Olimpo, é quase certamente uma alegoria da invasão da Europa, ou melhor, da área mediterrânica, pelos deuses de uma Religião estranha, e é evidente que uma ideia do género não só originou o mito como permaneceu muito tempo na consciência popular, uma vez que se trata de um dos temas mais populares da arte clássica. Encontramos estes deuses indissoluvelmente ligados à área atlântica e os nomes de pelo menos dois deles ainda ligados às ilhas britânicas. É absurdo supor que os gregos tenham inventado os nomes de certos deuses ou titãs e os tenham imposto como divindades protectoras sobre a Grã-Bretanha e a Irlanda. Na verdade, sabe-se que os nomes Albion e Iberius são de origem celta e têm referência a deuses protectores. Assim sendo, como explicar Atlas? A ilha dele desapareceu, e contudo o seu nome e o nome da Atlàntida permanecem. Se a Grã-Bretanha, que nos é dito ter “emergido sobre o oceano azul”, se afundasse de novo para o seu local de origem, no leito do Atlântico, os homens daqui a dez mil anos poderiam muito bem duvidar da sua existência, e o nome do seu deus, Albion, podia ser encarado como um mero esforço do engenho clássico para tornar mais provável aquilo que todas as pessoas “sensatas” considerariam ser apenas um mito.
Parece com certeza mais provável, então, que estas indicações muito concretas de um panteão de deuses titânicos com origem na área atlântica, cujos nomes ainda estão ligados a algumas das ilhas sobre as quais presidiam, tenham despertado da memória de uma Religião antiga e poderosa, com uma influência disseminada não só no então existente arquipélago atlântico, mas espalhada também para a área mediterrânica.

Esta teoria não enfraquece quando observamos a grande santidade que os povos do Mediterrâneo conferiam à área oceânica ocidental, pois era aí que colocavam as Ilhas Afortunadas e os Jardins das Hespérides. A mais antiga poesia grega coloca a residência dos espíritos felizes muito para além da entrada do Mediterrâneo, em ilhas no meio do rio Oceano. Pindar, provavelmente sob influência órfica, alude a estas ilhas como destino não só dos favoritos dos deuses mas de todas as pessoas justas. Aí, diz ele, os ventos do oceano sopram sobre as Ilhas dos Afortunados, a terra ri-se com flores douradas, e os bons parecem ocupar-se essencialmente com cavalos e música. A cavalaria, recordemos, era uma ocupação muito favorecida entre os atlantes. No mito grego, as Ilhas Afortunadas são frequentemente confundidas com as Hespérides, ou Ilhas das Maçãs Douradas, situadas no rio Oceano ou, segundo opiniões mais recentes, ao largo das costas norte e oeste de África. Podemos encontrar no «Segundo Livro de Lucian», e no seu «Necyomantia», muitos detalhes adicionados pela superstição popular ao estado de felicidade que os poetas ensinavam existir nas Ilhas Afortunadas.
Podemos, na verdade, adicionar a ideia de que os mortos partiam para Oeste ao número de ideias que, aquilo a que este escritor chama o complexo atlante, mas incluímo-la aqui não só por estarmos a tratar da parte religiosa do nosso tema mas porque é, talvez, mais duvidosa do que as restantes provas que parecem justificar a existência de um tal complexo. Há, contudo, bases para acreditar que toda a ideia da existência continuada no Ocidente de almas depois da morte surge a partir da memória da Atlântida. Na verdade, encontramos esta crença em todas as raças que devem, em algum grau, ter adquirido a civilização atlante. Os celtas, cuja longa associação com os iberos em Espanha os deve ter imbuído dessa ideia, acreditavam piamente que a residência dos mortos ficava no Atlântico, e encontramos a mesma crença nos gregos, romanos e cretenses. O próprio facto de toda a Europa Mediterrânica e Ocidental olhar para Oeste como localização da grandiosa Ilha dos Mortos é com certeza prova suficiente de que o encaravam como o lar ancestral de onde provinha a sua Religião e cultura. O paraíso do homem, o seu solo sagrado, é sempre encarado como o local de onde ele veio originalmente. Vemos que tanto os povos da Palestina como os da América Central se submetiam a grandes sacrifícios e se sujeitavam a grandes perigos para enterrar os seus mortos em solo ancestral. Vemos os peruanos apaixonadamente ligados à sua Paccarisca ou local mítico de origem — muitas vezes uma gruta ou encosta de montanha — e procurando sempre efectuar os funerais dentro dos seus limites. A metade ocidental de Creta, em tempos minóicos, era deixada praticamente desabitada por ser considerada o lar dos mortos, tal como se pensava que as ilhas ocidentais da Grã-Bretanha eram assombradas por espíritos incorpóreos, e tal como a própria Grã- Bretanha era considerada pela Europa primitiva como uma ilha de fantasmas. Os egípcios também consideravam o Ocidente como o lugar dos mortos. Não faz sentido tentar explicar esta ideia dizendo que é natural o homem olhar para o Oeste como local do sono depois da vida, apenas porque é aí que o sol se põe, pois encontramos muitas raças que colocam noutros pontos do compasso a região da mortalidade. Os aztecas, por exemplo, consideravam que o lugar das almas era no Norte. Os chineses olhavam para Leste, e já vimos que Hotu Matua, o herói cultural da Ilha da Páscoa, embora olhasse para Oeste quando chamava os espíritos que pairavam sobre o seu lar submerso, ainda está associado ao mito que diz que existia um grande arquipélago trezentas milhas a leste da ilha. Também Quetzalcoatl, o herói cultural da América Central, olhava para Leste, e podíamos aqui falar de muitos outros mitos de um paraíso oriental.

Vemos então que não só existia uma memória bem fundamentada da anterior existência de uma grande Religião da área atlântica mas que a localização onde esta florescera fora transformada num paraíso pelos povos que aceitaram em parte essa Religião. Em parte, porque consideravam o panteão titânico dessa região, em certa medida, inimigo do seu próprio panteão, e isto aplica-se particularmente aos povos helénicos do Mediterrâneo ocidental, que tinham sido influenciados pela cultura e religião atlantes talvez menos do que quaisquer outros. O nosso conhecimento fragmentado da religião cartaginesa dificilmente nos permite dizer até que ponto este povo asiático, instalado no noroeste de África, aceitara as crenças locais relativas à Atlântida, mas não pode haver muita dúvida de que, tal como muitos autores clássicos admitem, muitas das ideias fundamentais relacionadas com os mistérios religiosos das raças mediterrânicas, como o culto Cabiri, passaram por um crivo cartaginês antes de chegarem à Grécia, e é bastante claro que não tinham qualquer relação com a Palestina de onde os cartagineses vieram.
Temos de considerar o panteão atlante como sendo composto não apenas pelo próprio Atlas, mas também pelos seus nove irmãos, a sua mãe, Clito, e o seu irmão Saturno. Estes estão todos mais ou menos ligados com as constelações. O próprio Atlas é referido como um grande astrónomo, o que pode simplesmente significar que o seu panteão estava intimamente relacionado com as constelações celestiais. Tal como a antiga superstição cristã acreditava que as estrelas eram anjos caídos, e tal como os babilónios associavam os seus deuses a certos planetas, assim possivelmente os atlantes identificavam as suas divindades com este ou aquele astro. Hésper, o filho de Atlas, diz Diodoro, tornou-se a estrela da manhã, as suas filhas, as Atlântidas, tornaram-se a constelação das Plêiades, e Saturno, o seu irmão, o planeta com o mesmo nome. Uma vez que a ideia de personalidade, de divindade, era relacionada com os planetas, estes eram considerados poderosos encantadores ou divindades, que se esforçavam constantemente para dirigir as acções dos homens de modo a colocá-los em harmonia com algum plano mais vasto. A ideia de uma sinfonia cósmica tinha sido estabelecida. O homem devia trabalhar em harmonia com os poderes mais elevados. Esta ideia, claro, se é abordada em algum lugar nos escritos da antiguidade, é nos de Platão. Os seus sucessores escreveram vários comentários sobre as crenças dele a este respeito. Nas próprias obras onde nos conta a história da Atlântida Platão esboça estas crenças.

Isto leva à presunção de que a religião da Atlântida estava intimamente associada com a Astrologia. Tornou-se quase um lugar comum dizer que a antiga ciência da Astrologia teve o seu início nas planícies da Babilónia, e na verdade é hoje em dia uma crença quase popular que os zigurates ou torres-templos de Caldeia foram os primeiros observatórios do mundo. Mas o estudo do conhecimento das estrelas deve anteceder em muito à civilização do Eufrates. O brilho imutável das estrelas fixas deve ter-se gravado nos olhos e na imaginação do Homem quase desde o princípio, deve tê-lo intrigado e confundido, ou ter sido aceite por ele sem emoção, como um fenómeno a ser convenientemente explicado em termos de mito.
É praticamente inexistente algo que se assemelhe a uma prova directa de que a Astrologia é de origem ocidental. Na verdade, todas as provas parecem apontar no sentido oposto. Sabemos, contudo, que os druidas da Grã-Bretanha e da Irlanda estavam familiarizados com essa Ciência, e um sistema de Astrologia ainda praticamente não verificado dá-nos bases para pensar que pode ser proveniente da Atlântida. Referimo-nos à Astrologia dos aztecas do México, que tem pouca ou nenhuma semelhança com a Astrologia do Oriente e que não é de todo improvável que tenha emanado mais ou menos directamente da Atlântida. Em relação à forma como terá chegado ao continente americano, juntamente com outras manifestações da cultura atlante, aconselha-se ao leitor o meu livro «Atlantis in America». Mas, quando vemos que toda a religião azteca era praticamente construída sobre aquilo que é conhecido como Tonalamatl, ou Calendário, e que muitos dos seus deuses eram praticamente meras datas cronológicas, e quando vemos que esta estranha Religião não tinha qualquer ligação cultural com o Ocidente, mas considerava que o seu início ocorrera no Leste, não podemos evitar a importância de a tomar em consideração[1].

A palavra tonalamatl significa “Livro dos Dias Bons e Maus“, e é essencialmente um «Livro do Destino», através do qual era previsto, através de métodos divinatórios semelhantes aos usados por astrólogos em muitas partes do mundo e em todas as épocas, o destino das crianças nascidas em determinado dia. Era, na verdade, um livro de augúrio, e certos deuses presidiam aos seus dias. Estes dias tornavam-se assim significativos, para o bem e para o mal, de acordo com a natureza dos deuses que presidiam sobre eles ou sobre a hora precisa em que uma pessoa nascia ou era desempenhada qualquer acção. Tal como na Astrologia oriental, havia uma espécie de equilíbrio entre o bem e o mal, de tal modo que, se o deus que presidia ao dia em questão fosse aziago, a sua influência podia em certa medida ser contrariada pela da divindade que presidia sobre a hora em que uma criança via pela primeira vez a luz do dia, ou em que determinado evento ocorria.
Ora, os vinte deuses que presidiam sobre os seus vinte dias-signo podem todos ser identificados com certas estrelas ou planetas. Quetzalcoatl, por exemplo, pode ser identificado com o planeta Vénus, e é de assinalar que vários dos deuses deste calendário podem ser equiparados com certos membros do panteão atlante. Quetzalcoatl, por exemplo, pode ser equiparado com Atlas, como já foi demonstrado, e Coatlicue com Clito, enquanto Tlaloc, Tezcatlipoca e Xochiquetzal têm todos um significado atlante, no que diz respeito aos seus mitos e símbolos.
Vemos também que o método pelo qual os aztecas e os Maias da América Central calculavam as revoluções sinódicas do planeta Vénus tem uma distinta ligação atiante, uma vez que esse planeta era particularmente identificado com o deus Quetzalcoatl, que se dizia ter vindo de alguma localização no oceano Atlântico e que, tal como Atlas, suportava o mundo sobre os ombros. Ele era também considerado o inventor do tonalamatl, que era assim encarado o livro ou tabela divinatória sagrado de um herói cultural que viera de alguma região no oceano Atlântico. Isto, por si só, é com certeza prova suficiente de que o sistema astrológico do México era proveniente da Atlântida ou tinha associações atlantes. Os seus métodos são completamente diferentes dos utilizados no Leste e parece bastante evidente que foi introduzido na América, e não é originário de lá. O mito grego garante-nos que as divindades atlantes estavam intimamente associadas às estrelas e que Atlas era um grande astrólogo. Quando o encontramos na América, sob outra forma, mas com os mesmos atributos de Atlas, e encarado como tendo criado o sistema astrológico da América Central (que ele terá levado até às costas do continente) numa localização atlântica, seria preciso uma boa quantidade de provas em contrário para desacreditar a teoria de que a Astrologia centro-americana tem a sua origem em fontes atlantes.

Podemos então imaginar a religião atlante como associada com um panteão de seres titânicos e como tendo uma forte ligação astrológica. Não se trata de conjecturas, mas de factos básicos. É também óbvio que as primeiras religiões helénicas, mediterrânicas e britânicas foram fundadas com uma base semelhante, e só em períodos históricos mais recentes as ideias semelhantes às que devem ter vigorado na Atlântida começaram a ser revestidas de divindades compartimentadas, deuses das virtudes e dos vícios, deuses das profissões e da agricultura. Os deuses mais antigos da Europa, tal como os da Atlântida, eram titânicos e epónimos, relacionados com as regiões sobre as quais governavam. Sabe-se que os deuses celtas da Grã-Bretanha, por exemplo, e em particular da Escócia e da Irlanda, tinham formas gigantescas, e os seus nomes e lendas ainda permanecem em muitos locais. Praticamente todas as montanhas da Escócia têm um gigante familiar. A Cornualha estava repleta deles, e nomes como Scarborough e Giants’ Causeway[2] falam eloquentemente da sua anterior presença. As montanhas escocesas albergavam titãs, que eram grandes atiradores de pedras, como os titãs da América Central, e os formorianos da Irlanda eram de altura monstruosa. Um exame cuidado do folclore europeu sobre gigantes traz indubitavelmente à luz do dia a existência de um antigo e grande panteão titânico, e é notável que a maioria das lendas relacionadas com estes seres gigantescos fale deles como sendo originários dos mares ocidentais. Os fomorianos, como o seu nome implica, são apenas “O Povo Que Veio do Mar“, os titãs gregos tinham a mesma origem, os gigantes do folclore espanhol residem quase invariavelmente em ilhas, e os da Cornualha parecem estar ligados à submersa Lyonesse. A palavra anglo-saxónica Etin, que ainda se encontra nas lendas escocesas, é meramente o mesmo que Jotunn, a forma escandinava, e ambas podem ser filologicamente equiparadas a titã. Todas estas palavras aliadas têm a mesma raiz comum no sânscrito, “tith“, “queimar”, que mostra que a ideia destes seres estava relacionada com conflagração ou terramoto, e sabemos pelos termos do mito que os titãs foram também associados com o forjar de relâmpagos e com perturbações terrestres. Não é só na Grécia que encontramos a história da batalha entre deuses e titãs. Esta está também substancialmente esboçada no mito irlandês, nas guerras dos formorianos com os Tuatha de Danaan, e na Grã-Bretanha nas façanhas de Artur e dos seus cavaleiros (cada um dos quais pode ser remetido a um local no panteão celta) com os gigantes britânicos. Não pode restar dúvida de que é na história da Atlântida que encontramos a origem destas numerosas lendas. Os atlantes, os altos aurignacenses, eram quase certamente esses “gigantes”, e os azilenses, seus sucessores, eram os adoradores de gigantes, que invadiram a Europa em períodos diferentes, e deixaram para trás tantas histórias de homens altos, vestidos de peles e brandindo mocas, que durante gerações travaram uma dura luta contra raças mais recentes, até serem exterminados ou absorvidos.
Um estudo mais exaustivo do folclore europeu relacionado com gigantes, particularmente na Europa Ocidental, lançaria provavelmente muita luz sobre todas as circunstâncias da lenda atlante, especialmente se mantivéssemos em mente a história central da batalha entre deuses e titãs e da sua origem atlante. Talvez tivesse também bons resultados em produzir mais informações específicas sobre as características gerais das divindades titãs, esclarecendo-nos assim sobre o panteão da Atlântida, de onde terá provavelmente brotado toda a ideia. O gigante da tradição europeia reside em grutas, ou numa ilha ou castelo empoleirado nalgum pico escarpado, e a natureza destas habitações indica em alguma medida a origem atlante das histórias relacionadas com eles. As Ilhas Britânicas, só por elas, podem fornecer abundante ilustração a esta tese, e se estes registos fossem cuidadosamente examinados restariam poucas dúvidas de que a pesquisa seria justificada pelos resultados. O mero facto de as divindades epónimas das nossas ilhas gémeas, Albion e Iberius, estarem agrupados no mito clássico ao lado da figura de Atlas, o deus da Atlântida, devia ser suficiente para dar que pensar àqueles que possam duvidar da utilidade deste estudo.
Os ritos relacionados com esta antiga religião titânica não são de modo algum bem conhecidos, pela boa razão de ela só ter sido registada pela História quando era já uma Religião moribunda, mas destaca-se uma circunstância relacionada com ela. Os grandes deuses titânicos são, todos eles, possuidores de um apetite gigantesco. Saturno devora os seus filhos. O Dagda, um dos antigos deuses irlandeses, tem um apetite que nunca é saciado, embora a sua tigela de papas de aveia esteja sempre cheia. Crom Cruach, outra divindade irlandesa, cuja estátua foi derrubada por St. Patrick, só podia ser apaziguado pelo sacrifício de grandes números de crianças. O apetite de Gargântua, o gigante bretão, que é um dos góricos da península francesa, tornou-se clássico através da pena espirituosa de Rabelais, e os gigantes da Grã-Bretanha e o Jotunn da Escandinávia eram ambos famosos por devorarem ovelhas e bois inteiros. É também de assinalar que Moloch, um deus especialmente preferido dos cartagineses — um povo com muitas memórias atlantes —, era um grande devorador de crianças. Desta ideia colectiva nasceu a ideia do ogre — ou seja, o Orcus ou criatura do mundo inferior, do mundo submerso. Na América encontramos um estado de coisas semelhante entre os aztecas, um povo particularmente dado ao canibalismo e aos sacrifícios humanos, uma crença no antigo panteão de gigantes, na verdade, numa nação de ogres. Onde quer que se encontra a tradição atlante, na verdade, encontra-se também a ideia da imolação de seres humanos, e embora não vejamos no relato de Platão nada que justifique que se diga que os atlantes eram uma raça dada a sacrifícios humanos, não é demais presumir, em vista do que é dito sobre a sua excessiva perversidade, que possam ter tido como hábito práticas desse género, especialmente quando vemos os ritos do holocausto, e especialmente de sacrifício de crianças, associados com as crenças religiosas dos povos que parecem ter emanado do continente afundado. Esta ideia não é de modo algum incompatível com um avanço civilizacional considerável, como é evidente por tudo o que sabemos da religião azteca, e há certamente muitas circunstâncias relacionadas com a cultura aurignacense que podem levar-nos a concluir que o canibalismo e o sacrifício de crianças não eram estranhos aos seus criadores.

Um sistema religioso que sobreviveu ao seu período histórico tem certas características que parecem relacioná-lo com a religião atlante. Falamos do druidismo. É bem sabido que o druidismo não era uma Religião de origem celta, mas sim ibérica. César, numa passagem bem conhecida, observa que se julgava que tivesse surgido na Grã-Bretanha, e daí tivesse sido levada para a Gália. Os iberos, que parecem tê-la instituído, eram, como já dissemos antes, descendentes directos dos azilenses, uma das vagas de imigrantes atlantes, pelo que parece mais do que provável que o druidismo fosse a última fase de uma religião atlante importada. Sabemos que também era praticado em Espanha e nas Ilhas Canárias, os últimos vestígios territoriais da Atlântida.
Rice Holmes, ao escrever sobre o druidismo («Ancient Britain», p. 289), diz: “Não é irrazoável acreditar que os celtas o tenham aprendido com algum povo não ariano, pois não há nada que prove que os primeiros gauleses que os romanos encontraram alguma vez tivessem ouvido falar dele.”
A religião druídica, por aquilo que sabemos dela, parece ter uma forte semelhança com a religião atlante. Os primeiros exemplos dela deixam bem claro que no tempo de César assumira influências celtas, mas por trás do panteão celta erguem-se figuras grandiosas, como Merlin e Crom Cruach, o Dadga e Balor, que mostram obviamente que, em tempos, a religião druídica tinha um panteão titânico. Mais ainda, os druidas sacrificavam seres humanos, aprisionando-os em monstruosos ídolos de verga e queimando-os vivos como oferenda aos deuses. Também imolavam cativos com propósitos divinatórios. Uma das suas principais doutrinas era a transmigração das almas, que muitas vezes se crê, erroneamente, ser uma ideia puramente oriental. Pensa-se que os druidas deviam a sua concepção da imortalidade à influência de Pitágoras, como sugerem Diodoro Sículo e Timagenes, e foram encontrados símbolos pitagóricos, ou, mais propriamente, um exemplo desses símbolos, numa moeda de ouro britânica encontrada em Reculver. Mas é estranho que, se os druidas defendiam a doutrina pitagórica, esta não esteja mais representada na literatura sobrevivente, como por exemplo se pode encontrar nas Tríades Galesas. A doutrina druídica de Abred, que alude ao mais interior de três círculos concêntricos que representavam a totalidade do ser na cosmogonia druídica, tem sido entendida por algumas autoridades como uma referência à doutrina pitagórica, mas na realidade é muito diferente dessa doutrina. Os druidas acreditavam que existia um Elísio no Oeste, o que aponta mais uma vez para uma origem atlante, e não grega, da sua fé. Rice Holmes diz, muito sabiamente: “Se os druidas, como César disse, ensinavam que as almas passavam “de uma pessoa para outra”, talvez eles quisessem dizer que depois da morte a alma entrava num novo corpo — o correspondente etéreo daquele que fora deixado para trás.”

Vemos também que os druidas tinham um pilar de oricalco ou bronze, tal como o que se erguia no templo de Poseidon na Atlântida. Este pilar foi descoberto perto do final do século passado em Coligny, na região de Ain. É um calendário gravado com dias de sorte e de azar, de acordo com as revoluções da lua, e a língua em que está redigido é tema de disputa, com algumas autoridades a defender que é celta, enquanto outras acreditam tratar-se de ligúrico. Os ligúricos eram um povo completamente diferente dos celtas, estando ainda relacionados com as populações mais antigas de França. Mais ainda, os druidas, segundo Plínio, sacrificavam touros brancos antes de cortar o misterioso visco branco do carvalho. É também nos vestígios da poesia druídica, como as Tríades Galesas, que descobrimos essas indicações recorrentes que se aplicam manifestamente a certas fases da história atlante. Parece então muito provável, como já dissemos, que o druidismo fosse a última fase da antiga religião da Atlântida.
Este escritor estranhou frequentemente que os teósofos europeus procurassem retirar e deduzir a origem do sistema que defendem de fontes orientais, quando devia ser evidente, como o fundador da teosofia moderna defendeu, que os princípios do sistema emanaram da Atlântida. Sempre pareceu a este escritor uma obra de supererrogação procurar provar que a antiga Religião mundial era originária do Leste, quando abundam as evidências do seu passado no próprio território daqueles que defendem as suas origens orientais. Os teósofos e místicos em geral deviam prestar mais atenção não só às evidências da origem atlante da Religião mundial e da filosofia mas também efectuar um estudo mais aprofundado do que resta do sistema atlante, conforme pode ser observado no druidismo, a antiga Religião da nossa própria ilha. Não há nada a que se pareça aplicar melhor hoje em dia o antigo provérbio “a galinha da vizinha é melhor do que a minha” do que ao misticismo, quando encontramos estudantes do misterioso a efectuar profundas excursões até aos dogmas das religiões védica, budista e egípcia, e negligenciando quase por completo aquilo que está mais perto deles, debaixo dos seus narizes, por assim dizer, e cujos fragmentos se podem vislumbrar no folclore britânico. Pode-se argumentar que o estudante não tem disponível um corpo de literatura como aquele que se encontra nos escritos védicos, por exemplo, ou no «Livro dos Mortos» egípcio. Essa é uma desculpa miserável, pois está disponível uma literatura, embora não tão extensa, mas pelo menos igualmente mística, nas Tríades Galesas, nas lendas irlandesas e no vasto épico do Graal, que contém uma quantidade extraordinária de reminiscências druídicas revestidas com ideias cristãs. Os teósofos e estudantes de Religião mundial deviam dedicar-se à fonte, e não aos seus afluentes. Isto não é dizer que se devia negligenciar as fases índianas e egípcias da questão, mas o facto de se dar preferência ao misticismo oriental mais recente, sobre o misticismo ocidental mais antigo, é algo que sempre pareceu a este escritor uma escolha pervertida. Encontramos os germes de um misticismo na Europa, entre os aurignacenses, há vinte e cinco mil anos. Desse germe nasceu todo o processo da religião egípcia, com os rituais associados da arte do embalsamador. A prova é irrefutável, e não deveria o misticismo começar o estudo do seu alfabeto pelo “A” de Atlântida?
NOTAS:
[1] Ver a obra do autor Gods of Mexico.
[2] Giants’ causeway significa, em português, “Caminho dos Gigantes“. (N. da T.)