O pré-requisito absoluto à procura ética sobre os seres humanos – como está codificado em inúmeros Documentos, inclusive na Declaração de Helsínquia [1], da Associação Médica Mundial e no Código de Nuremberga [2] – pressupõe que os recrutados para a pesquisa sejam informados e consintam voluntariamente. A condição de voluntário significa que a pessoa pode entrar ou sair: não pode haver coerção, ainda que subtil — seja sob a forma de um pacote de compensações excessivamente generoso ou do acesso a cuidados médicos de outro modo inatingíveis, para influenciar indevidamente a decisão potencial do voluntário de expor-se a um teste experimental (Quando activistas contra a SIDA pediram que os pesquisadores garantissem tratamento por toda a vida para os voluntários que fossem infectados durante o teste de alguma vacinas, os pesquisadores argumentaram que tal exigência violaria o princípio do consentimento voluntário. O negócio ficaria bom demais: até gente não infectada poderia inscrever-se só para conseguir remédio de graça).
E ainda assim, um crescente conjunto de evidências sugere que os voluntários de países em desenvolvimento não consentem espontaneamente em ser testados. Especialistas em bioética rastreiam o número de pessoas que se recusam a participar ou que desistem dos testes como uma espécie de indicador à posteriori. Nessas duas ocasiões, mostram que entendem que sua participação nos testes é voluntária. As taxas de recusa e desistência nos testes ocidentais podem atingir 40% ou mais. Mas, quando a Comissão Consultiva Nacional de Bioética da França realizou um estudo anónimo com os pesquisadores clínicos actuantes nos países em desenvolvimento, 45% deles disseram que os voluntários nunca se recusavam a participar dos testes.
A grande velocidade de recrutamento nestes testes – três mil voluntários para um teste de vacina, em nove dias, ou mil e trezentas crianças para um teste, em 12 dias – sugere, do mesmo modo, que não há desistências ou recusas. Eram muito poucos, se é que havia, os que diziam “não”. [3]
Num estudo sobre a qualidade do consentimento de voluntários alistados em testes de prevenção contra o HIV, na África do Sul, mais de 80% dos voluntários disseram que não sabiam que podiam desistir do teste se quisessem. Resultados similares foram obtidos num teste no Bangladesh [4]. Essa prova de coerção seria motivo para realizar poucos testes nessa população, mas está sendo usada para realizar mais testes. O fato de que os potenciais recrutados não dizem “não” é um aspecto vendável para as companhias de testes clínicos em actividade nos países em desenvolvimento. De acordo com um artigo no Applied Clinical Trials, os voluntários russos “não faltam às consultas, tomam todas as pílulas necessárias e só muito raramente voltam atrás. Os russos fazem o que os médicos mandam. Que fenómeno!”. Uma história do Centro de Vigilância sobre Testes, na China notou, do mesmo modo, que “os chineses não estão completamente emancipados como nos EUA. Eles têm mais disposição para serem cobaias”.
NOTAS:
[1] A primeira Declaração de Helsínquia, que regula a pesquisa médica com seres humanos, data de 1964 e já foi actualizada em 1975, 1983, 1989 e 1996. A Associação Médica Mundial estabelece o compromisso do médico com as seguintes palavras: “A Saúde do meu paciente será a minha primeira consideração”. Na versão de 1996, a declaração recomenda o respeito ao bem-estar dos animais utilizados e à integridade do meio ambiente. (N.T.)
[2] O Código de Nuremberga, criado em 1947, durante os julgamentos de médicos nazis que fizeram experiências com seres humanos em campos de concentração, impõe o consentimento dos seres humanos para participar em testes e pesquisas médicas (N.T.)
[3] Ver National Bioethics Advisory Commission, Ethical and Policy Issues in International Research: Clinical Trials in Developing Countries, Abril de 2001.
[4] Quarraisha Abdul Karim et al, “Informed consent for HIV testing in a South African hospital: is it truly informed and truly voluntary?” American Journal of Public Health, 1 de Abril de 1998, 637-40; e Niels Lynoe et al, “Obtaining informed consent in Bangladesh,” New England Journal of Medicine, 8 de Fevereiro de 2001, 460-61