Aprovação de Medicamentos: Fase 1 – Ensaios Preliminares

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Aprovação de Medicamentos
Aprovação de Medicamentos

Chegamos então ao momento angustiante de ministrar o medicamento a um ser humano pela primeira vez. Habitualmente dispomos de um grupo de voluntários sãos, talvez uma dúzia, que tomarão o medicamento em doses cada vez maiores, em ambiente médico, enquanto medimos coisas como a função cardíaca, a quantidade de fármaco no sangue, etc.

Em geral, queremos ministrar o medicamento numa dose dez vezes inferior àquela que não provocou efeitos adversos nos animais que se mostraram mais sensíveis a ele. Se os voluntários reagem bem a uma dose única, duplicamo-la e, a seguir, vamos aumentando as doses. Nesta fase, esperamos que o medicamento só cause efeitos adver­sos em doses mais elevadas, se é que causará, e numa dose certamente muito mais elevada do que aquela que fará algo de útil no alvo espe­rado do corpo (os estudos em animais ter-nos-ão dado uma ideia de qual será a dose eficaz). Em todos os Medicamentos que conseguem chegar a estes ensaios de fase 1, só 20% são aprovados e introduzidos no mercado.

Voluntário que foi exposto ao tratamento de TGN1412
Voluntário que foi exposto ao tratamento de TGN1412

Às vezes, felizmente raras, acontecem coisas terríveis nesta fase. O leitor lembrar-se-á da história da TGN1412, em que um grupo de voluntários foi exposto a um tipo de tratamento recentíssimo que in­terferia com as vias de sinalização no sistema imunitário, e acabaram nos cuidados intensivos com os dedos das mãos e dos pés em decomposição. Exemplifica bem porque não devemos ministrar um trata­mento a vários voluntários ao mesmo tempo, se ele é muito imprevi­sível e pertence a uma classe inteiramente nova de Fármacos.

Os novos Medicamentos são, maioritariamente, moléculas muito mais convencionais e, em geral, o único mal-estar que causam pro­vém das náuseas, tonturas, dores de cabeça, etc. Talvez queiramos tam­bém que alguns dos sujeitos do ensaio tomem um comprimido sem qualquer substância activa para tentarmos determinar se esses efeitos são realmente causados pelo medicamento ou se são um mero produto da ansiedade.

Neste momento, é possível que o leitor esteja a pensar: mas que tipo de loucos imprudentes empresta o único corpo que tem para uma experiência como esta? Tendo a concordar consigo. É evidente que existe uma longa e nobre tradição de auto-experimentação em Ciência (tenho um amigo investigador que se cansou de alimentar os seus mosquitos de uma forma complicada, e começou a meter o braço no re­cinto onde eles estavam, alimentando um doutoramento com o seu pró­prio sangue). Mas os riscos podem parecer mais transparentes se se trata da nossa própria experiência. Será que os participantes nos estudos pio­neiros em humanos confiam cegamente na Ciência e nas regulações?

Até à década de 1980, nos Estados Unidos, esses estudos realizavam-se muitas vezes em reclusos. É possível argumentar que, desde então, esse tipo de coacção absoluta terá abrandado, em vez de ter sido totalmente eliminada. Neste momento, ser uma cobaia num ensaio clí­nico é uma fonte de dinheiro fácil para jovens saudáveis com poucas opções: às vezes estudantes, às vezes desempregados, às vezes muito pior. Decorre uma discussão ética sobre a possibilidade de um verdadeiro consentimento por parte de pessoas seriamente necessitadas e sujeitas a incentivos financeiros consideráveis. Uma situação destas cria uma tensão: os pagamentos aos participantes deverão ser baixos para reduzir quaisquer “incentivos indevidos” a experiências arriscadas ou degradantes, o que, em princípio, parece um bom mecanismo de segurança; mas dada a realidade em que vivem muitos participan­tes na fase 1, eu preferiria que fossem bem pagos. Em 1996, descobriu-se que a Eli Lilly andava a recrutar alcoólicos sem abrigo num centro de acolhimento local. O director de farmacologia clínica da Lilly disse: “Estes indivíduos querem ajudar a Sociedade.”

Mulher cobaia em ensaio clínico
Mulher cobaia em ensaio clínico

Trata-se de um caso extremo mas, mesmo na melhor das hipóteses, os voluntários provêm dos grupos mais desfavorecidos da Sociedade, o que cria uma situação em que os Medicamentos que todos nós tomamos são testados — e vou ser directo — nos pobres. Nos Estados Unidos, isto significa pessoas sem seguros médicos, e suscita outra interessante questão: segundo a Declaração de Helsínquia, o código ético que enquadra a actividade médica mais actual, a investigação justifica-se se a população de que provêm os participantes vier a be­neficiar dos resultados. A ideia subjacente é a de que, por exemplo, um novo medicamento para a sida não deve ser testado em pessoas de África que nunca poderiam comprá-lo. Mas, nos Estados Unidos, os desempregados, sem seguros médicos, tão-pouco têm acesso a tratamentos médicos dispendiosos, pelo que não é claro que possam bene­ficiar dessa investigação. Além disso, a maior parte das agências não oferece tratamento gratuito a participantes lesados e nenhuma os compensa do sofrimento ou dos salários perdidos.

É um submundo estranho que tem sido trazido à luz do dia, para a comunidade académica, por Cari Elliot, um eticista, e por Robert Abadie, um antropólogo, que viveu entre participantes de ensaios da fase 1 para fazer o seu doutoramento. A Indústria refere-se a esses par­ticipantes utilizando o oximoro “voluntários pagos”, e existe a pre­tensão universal de que não são pagos pelo seu trabalho, mas mera­mente reembolsados pelo tempo gasto e pelas despesas de deslocação. Os próprios participantes acalentam essas ilusões.

O pagamento ronda amiúde os 200 a 400 dólares por dia, os es­tudos podem durar semanas ou mais, e os indivíduos participarão em vários estudos por ano. O dinheiro é um aspecto central deste processo, e como o pagamento é muitas vezes diferido, a pessoa só o recebe na totalidade se completar o ensaio, a não ser que consiga provar que o abandono se deveu a efeitos secundários graves. Os participantes cos­tumam ter poucas alternativas económicas, sobretudo nos Estados Uni­dos, e é frequente darem-lhes a assinar formulários de consentimento compridos e impenetráveis, difíceis de ler e de compreender.

Uma pessoa pode ganhar mais do que o salário mínimo se for “co­baia” a tempo inteiro, e há muitas que o são: com efeito, para muitas pessoas é um trabalho, embora não regulamentado como deve ser qual­quer trabalho. Talvez seja por isso que nos sentimos incomodados em relação a este tipo de rendimento como profissão, pelo que surgem novos problemas. Os participantes sentem relutância em queixar-se das más condições, porque não querem perder a oportunidade de futu­ros estudos, e não recorrem a advogados pelas mesmas razões. Tam­bém podem não abandonar ensaios desagradáveis ou dolorosos por medo de perder o rendimento. Um participante descreveu isto como “uma espécie de tortura paga”: “Não somos pagos para fazer um tra­balho… somos pagos para aguentar.”

Se o leitor quer realmente vasculhar este mundo subterrâneo, recomendo-lhe uma pequena revista fotocopiada intitulada Guinea Pig Zero. É um despertar brutal para as pessoas que gostam de pensar na investi­gação médica como uma actividade de batas brancas, orientada por pro­tocolos claros e realizada em edifícios imaculados, de vidro e metal.

“As drogas estão a afectar mais os rapazes do que as raparigas. A efedrina não é assim tão má, é como… speed, vendido às claras. A se­guir, aumentaram a dosagem e as coisas aqueceram. Foi então que os rapazes se prepararam para a Guerra… Nós, mulheres, achámos que tínhamos mais resistência… O n.° 2 sentia-se tão mal que escondeu os comprimidos debaixo do casaco durante a dosagem. O coordenador até procurou na boca dele, mas ainda assim o n.° 2 safou-se… e foi isso que o fez ainda mais doente depois da dosagem seguinte — deixou de conseguir fingir até ao fim do estudo.”

A revista Guinea Pig Zero publicou investigações de mortes ocorridas durante ensaios da fase 1, conselhos aos participantes, e declarações longas e profundas sobre a actividade de cobaia (ou, como os próprios participantes lhe chamam, o “nosso trabalho de dar sangue e mijo”). As ilustrações mostram roedores deitados, com termómetros no ânus ou oferecendo jovialmente a barriga aos bisturis. Não se tratava apenas de má-língua ou de conselhos sobre como dar a volta ao sistema. Os voluntários aperfeiçoaram “cadernetas de unidade de investigação” e discutiram a possibilidade de se sindicalizarem: “Existe a necessidade de estabelecer um conjunto de expectativas padrão num fórum autónomo e controlado por cobaias, para que nós, voluntários, possamos reinar nas unidades de uma maneira que não nos cause dano.”

Estas “cadernetas” eram informativas, sinceras e divertidas, mas não foram bem recebidas pela Indústria, como era de esperar. Quando três delas foram publicadas na revista Harper, houve ameaças de pro­cessos judiciais e pedidos de desculpas. De modo semelhante, após um artigo divulgado pela Bloomberg em 2005, em que mais de uma dúzia de médicos, funcionários públicos e cientistas afirmava que a Indústria não protegera adequadamente os participantes, três imigrantes ilegais da América Latina declararam ter sido ameaçados com deportação pela clínica quando levantaram problemas.

Experiências nos campos de concentração
Experiências nos campos de concentração

Como é evidente, não podemos depender exclusivamente do altruísmo para ter gente para esses estudos. E mesmo quando era o altruísmo que fornecia participantes, fê-lo, historicamente, em circunstâncias extremas ou estranhas. Antes dos reclusos, por exemplo, os Medicamentos eram testados em objectores de consciência, que também vestiram cuecas infestadas por piolhos para se infectarem a si próprios com tifo, e que participaram na “Grande Experiência de Inanição” para ajudar os médicos dos Aliados a compreenderem como deveriam lidar com as vítimas dos campos de concentração (alguns dos participantes dessa experiência cometeram actos violentos de auto-mutilação).

A questão não reside apenas em saber se os incentivos e a regu­lação nos tranquilizam o suficiente; também importa saber se esta informação é absolutamente inédita para nós ou se foi varrida para baixo do tapete. Talvez o leitor pense que toda a investigação se realiza em universidades, e, se fosse há vinte anos, a sua ideia era cor­recta. Mas recentemente, e muito rapidamente, quase toda a actividade de investigação está a ser extemalizada, muitas vezes para muito longe das universidades, para pequenas organizações privadas de investiga­ção médica, que são subcontratadas por empresas da Indústria Farma­cêutica, e realizam os seus ensaios por todo o mundo. Estas organi­zações são atomizadas e difusas, mas ainda são monitorizadas por enquadramentos concebidos para lidar com problemas éticos e de pro­cedimentos que surgem nos grandes estudos institucionais, em vez de nos pequenos empreendimentos. Nos Estados Unidos, em particular, é possível andar à cata de aprovação de um “Institutional Review Board“, ou conselho institucional de avaliação, e se uma dessas co­missões de ética da investigação recusar, basta ir bater à porta de outra.

É um recanto interessante da medicina. Acresce que os ensaios das fases 2 e 3 também estão a ser extemalizados. Em primeiro lugar temos de compreender o que são.

Fonte: LIVRO: «Farmacêuticas da Treta» de Ben Goldacre

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