Armas nucleares, robôs militares e guerra

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Drones na Guerra
Drones na Guerra

Resumo: Faz-se uma breve referência, com alguns dados numéricos, ao esforço financeiro que representa hoje a manutenção das despesas militares a níveis iguais ou superiores ao verificado no período da chamada “guerra fria”. Assinala-se a importância crescente da investigação científica e tecnológica com fins militares. Refere-se o surgimento da ciberguerra e as suas motivações. Descreve-se a situação actual no que toca ao desenvolvimento e utilização da arma nuclear. Apresenta-se a evolução no campo da robótica militar, as consequências perversas da sua utilização em teatros de guerra ou para localizar e abater alvos humanos seleccionados. Apontam-se as armas ditas “não-letais” como instrumento de repressão de “acções de perturbação da ordem pública”. O texto é acompanhado de numerosas referências que permitem aprofundar as questões apresentadas.

As despesas militares dos Estados Unidos da América são as mais altas do mundo [1]. Em 2011 terão ultrapassado os 700 mil milhões de dólares [2]. Entre 2001 e 2011 mais do que duplicaram, a preços constantes. Em percentagem do PIB subiram de cerca de 3% para mais de 5%. A China com uma população cerca de quatro vezes maior, apresenta a segunda maior despesa militar mas a grande distância dos EUA (cerca de um sexto) [3]. Os EUA despendem cerca de 12 mil milhões de dólares anuais em ajuda militar a vários países estrangeiros na sua maior parte destinada ao Afeganistão, Iraque, Israel, Paquistão e pelo menos num passado próximo ao Egipto [4]. A despesa militar dos EUA tem mantido uma tendência crescente desde pelo menos 1998 [5]. Mesmo numa economia com a dimensão da norte-americana, pode não ser sustentável no longo prazo a manutenção de um nível tão elevado de gastos militares. [6]

No decurso das duas últimas décadas, assistiu-se a uma evolução e desenvolvimentos muito significativos no campo da investigação científica e tecnológica para fins militares. Quatro domínios merecem particular atenção: as armas nucleares; os robôs militares; as armas de energia dirigida, ditas “não letais”; e a utilização da cibernética [7] para fins de espionagem ou com vista à disrupção ou desactivação de sistemas ou equipamentos informatizados. Neste último domínio, fala-se de “ciberguerra” e entende-se como tal, a intromissão (hacking) dolosa, politicamente motivada, em redes informáticas ou computadores do (suposto) inimigo com o fim de provocar danos ou disfuncionalidades. William Lynn, subsecretário da Defesa dos Estados Unidos, afirma que “como questão de doutrina, o Pentágono reconheceu formalmente o ciberespaço como um novo domínio da arte da guerra” que “se tornou tão crítico do ponto de vista militar como o solo, o mar, o ar ou o espaço (exterior).” [8]

Neste contexto recorda-se a notícia vinda a público do ataque ocorrido em Setembro de 2010 ao parque de ultra-centrifugadoras de Natanz, no Irão, de enriquecimento de urânio com vista à sua utilização como combustível nuclear. Neste caso foi usado o vírus Stuxnet até aí desconhecido. [9] O alvo do Stuxnet são sistemas de controlo usados em centrais eléctricas e outras instalações industriais. A origem do vírus não foi publicamente identificada mas há razões que apontam para um projecto comum americano-israelita. [10]

De acordo com um artigo recente do New York Times, [11] imediatamente antes de terem sido iniciados os raids americanos sobre a Líbia, foi seriamente debatido no seio da administração Obama, a possibilidade de lançar uma ofensiva cibernética com vista a pôr fora de serviço os radares do sistema líbio de alerta precoce (“early warning“) contra ataques aéreos. A possibilidade foi afastada por razões político-militares que não cabe analisar aqui. [12]

Nos EUA foi criada em 2009 uma subunidade do Comando Estratégico das Forças Armadas com a designação de Ciber-Comando (USCYBERCOM) a qual atingiu completa capacidade operacional em fins de 2010. [13]

No que respeita a engenhos nucleares para fins militares pode dizer-se que a ameaça nuclear continua presente e no essencial inalterada quando comparada a situação actual com a que existia há algumas décadas atrás. Quarenta e um anos depois da sua entrada em vigor, em 1990 [14] e após oito Conferências de Revisão, mantém-se o carácter discriminatório do Tratado de não-proliferação relativamente aos estados que não dispõem de armamentos nucleares e o desinteresse por parte das potências nucleares signatárias do Tratado em dar os passos previstos no seu Artigo VI, no sentido do desarmamento nuclear e do desarmamento geral e completo.

Em 1996 foi aprovado o Tratado Geral de Proibição de Ensaios Nucleares (CTBT). [15] A entrada em vigor do tratado depende, entre outros, da ratificação pelo Congresso dos Estados Unidos, o que, 15 anos depois, ainda não aconteceu. [16] No entender de diversos observadores, o conhecimento que se tem das orientações e decisões das administrações norte-americanas no domínio nuclear ao longo dos últimos 20 anos, permite dizer que os EUA não têm qualquer intenção de prescindir da arma nuclear num futuro previsível. [17] No complexo nuclear militar científico e industrial norte-americano prosseguem sem limitação de fundos os trabalhos de manutenção, modernização e desenvolvimento de armas nucleares. A orientação desses trabalhos pode resumir-se assim: desenvolver armas capazes de penetrar no solo e destruir alvos subterrâneos especialmente protegidos (“hardened“); e desenvolver armas cuja utilização seja politicamente exequível, entendendo-se por isto, ogivas nucleares susceptíveis de minimizar os chamados “efeitos colaterais”. [18]

Robôs, designadamente na forma de veículos aéreos sem piloto (VASP) estão a ser usados extensivamente e são alvo de constantes aperfeiçoamentos para utilizações militares quer em teatros de guerra quer na localização e abate de alvos humanos seleccionados, no que é o equivalente de uma execução extrajudicial. [19] Esta utilização, inaceitável e efectivamente perversa, abre a porta a novas formas de fazer a guerra. Robôs militares e VASPs podem ser comandados ou “pilotados” a partir de uma consola de comando situada a milhares de quilómetros de distância, graças às possibilidades criadas pela existência de linhas de comunicação eficientes de alta qualidade. [20]

Frederico Gama Carvalho

Em anos recentes a utilização de robôs militares tem crescido extraordinariamente: aquando da invasão do Iraque em 2003, as forças dos EUA praticamente não possuíam robôs militares; já em 2010 as forças armadas americanas dispunham de um número global de cerca de 12 mil robôs militares dos quais perto de 7000 eram VASPs — os chamados “drones“. Esta evolução levanta questões sérias nos planos ético e legal. No que concerne à classificação do pessoal envolvido na utilização de robôs militares, pode argumentar-se que se esfuma a distinção entre o “soldado” e o não-combatente, em particular no caso daqueles “pilotos” a distância e técnicos civis que tomam decisões à mesa ou consola de comando, se levantam no fim de um “dia de trabalho” e vão para casa jantar com a família. [21]

Os “drones” foram utilizados pelos americanos nos Balcãs, no Iémen (com apoio da CIA), na Somália, no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão (neste caso sob controlo da CIA, por razões que não podem ser examinadas aqui). Israel usou “drones” na faixa de Gaza. [22] No caso da acção da CIA no Paquistão, a taxa dos chamados “danos colaterais” é estimada em 1 militante para 10 civis abatidos. [23] [24]

No que toca ao arsenal de armas de energia dirigida e outras, ditas “não-letais”, que visam sobretudo o controlo de movimentos ou manifestações de massas em países ou regiões política ou socialmente instáveis, mesmo no plano doméstico, muito haveria a dizer mas o tempo disponível não o permite. Ficará assim para outra oportunidade. [25]

Frederico Gama Carvalho,membro da Presidência do Conselho Português para a Paz e Cooperação, Doutor em Física e Engenharia Nucleares pelas Universidades de Karlsruhe e Lisboa, Vice-Presidente do Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos ( www.fmts-wfsw.org ), Presidente da Direcção da Organização dos Trabalhadores Científicos ( www.otc.pt ), Investigador-coordenador aposentado do Instituto Tecnológico e Nuclear. Intervenção realizada no Conselho Português para a Paz e Cooperação, 7 de Dezembro de 2011.

NOTAS:

[1] http://www.globalissues.org/article/75/world-military-spending. Veja também: FinancialTimes.com, “Global military spending slowsJohn O’Doherty, 11 de Abril de 2011.

Na edição do Financial Times do passado dia 6 do corrente mês podia ler-se a afirmação de que, nos Estados Unidos, a degradação de infra-estruturas físicas essenciais — como estradas, pontes, barragens, redes eléctricas, sistemas de abastecimento de água — era tal que o país se aproximava rapidamente de um estatuto (estou a citar) de “segundo mundo”. Acrescentava que os gastos com manutenção e modernização de infra-estruturas básicas se ficava por 2% do PIB, quatro vezes menos do que na China.

[2] Este número inclui o orçamento base da defesa e também a despesa respeitante às operações no Iraque e no Afeganistão mas não inclui as despesas do Departamento de Energia (DoE) com os programas respeitantes a armas nucleares. O valor indicado equivale a cerca de três vezes o valor estimado nesse ano para o PIB português.

[3] Entre 2000 e 2010 a despesa militar da R.P. da China terá passado de cerca de 34 biliões de dólares para cerca de 120 biliões de dólares, isto é, terá crescido cerca de 250%. Em 2010, os gastos militares dos EUA representavam cerca de 43% da despesa militar global do planeta. Os EUA e a R. P. da China em conjunto atingiam 50% da despesa mundial.

[4] http://www.theworld.org/2011/08/defense-budget-tea-party/

[5] Cf. Christopher Hellman, “The Runaway Military Budget: An Analysis“, (Friends Committee on National Legislation, Março de 2006, no. 705, p. 3)

[6] Cf. “World Military Spending“, Global Issues (http://www.globalissues.org/article/75/world-military-spending) (2011)

[7]Ciência que investiga os mecanismos de comunicação e de controlo nos organismos vivos e nas máquinas.” (cf. Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa)

[8] Lynn, William J. III.Defending a New Domain: The Pentagon’s Cyberstrategy“, Foreign Affairs, Setembro/Outubro de 2010, pp. 97–108.

[9] Cf “Stuxnet worm brings cyber warfare out of virtual world“, Pascal Mallet (AFP) – 1 de Outubro de 2010.

[10] Cf. “U.S. Debated Cyberwarfare in Attack Plan on Libya“, Eric Schmitt e Thom Shanker, The New York Times, publicado em 17 de Outubro de 2011. A mesma fonte refere que tanto o Pentágono como empresas com contratos militares são objecto e repelem regularmente, ataques às suas redes de computadores, muitos deles alegadamente provenientes de fontes russas ou chinesas.

[11] Id., ib.; tratava-se de penetrar as barreiras informáticas de protecção contra intromissões (“firewall“) das redes de computadores do governo líbio para cortar as linhas de comunicação com as baterias de mísseis do sistema de defesa antiaérea.

[12] Recentemente (Outubro de 2011) foi descoberto um novo vírus (“malwware“) que recebeu o nome de “Duku“. O Duku partilha grande parte do código informático do Stuxnet mas actua de forma diferente e com objectivos diferentes (cf. Discover Magazine, 19 de Outubro de 2011, artigo de Veronique Greenwood). O novo vírus, provavelmente com a mesma origem do Stuxnet, é um “vírus espião”, destinado à recolha de informação sobre características e organização interna de sistemas de redes e computadores, incluindo chaves de segurança, de modo a permitir futuros ataques destrutivos ou de incapacitação. O vírus não se reproduz e auto-extingue-se em 36 dias, provavelmente para dificultar a detecção.

[13] Além dos EUA, o Reino Unido, a R.P. da China e as duas Coreias, pelo menos, terão posto de pé estruturas de defesa contra riscos associados a ataques cibernéticos. Barack Obama afirmou, em 2009, que tinham ocorrido situações de intrusão cibernética nas redes eléctricas dos EUA com o fim de avaliar as condições de segurança das redes (Cf. “China’s Cyberassault on America“, Richard Clarke no The Wall Street Journal, 15 de Junho de 2011).

[14] O TNPN obriga nesta data 189 estados, incluindo os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança.

[15] Aprovado na Assembleia Geral das Nações Unidas por uma maioria superior a dois terços dos estados membros.

[16] Os outros estados de cuja ratificação está dependente a entrada em vigor do CNTBT são: China, Egipto, Índia, Indonésia, Irão, Israel, Coreia do Norte e Paquistão.

[17] O chefe do Comando Estratégico dos EUA, general Kevin Chilton, declarou recentemente o seguinte à comunicação social: “Quando olhamos para o futuro — e é minha convicção que precisaremos de um dissuasor nuclear neste país para o que resta do século, o Século XXI — penso que aquilo de que necessitamos é de uma arma nuclear modernizada compatível com os nossas também modernizadas plataformas de lançamento”. Cf. A elucidativa Informação de Andrew Lichterman, para a Western States Legal Foundation: “Nuclear Weapons Forever: The U.S. Plan to Modernize its Nuclear Weapons Complex” (2008) (http://www.wslfweb.org/docs/ctbrief.pdf)

[18] Ver nota anterior.

[19] Ver “Resolução sobre a utilização de robôs militares“, Comissão Internacional para o Desarmamento, a Segurança e a Paz (ICD), da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, Paris, Maio de 2011 (http://www.otc.pt/index.php/noticias/fmtc/43-robosmilit)

[20] Há razões para dizer que a utilização de robôs no campo de batalha ou em missões ofensivas de sobrevoo fora dele, representa a mais profunda transformação da arte militar desde o advento da bomba atómica.

[21] No quadro do programa de expansão da automatização de teatro de operações, a força Aérea dos EUA tem neste momento em formação um número de operadores de “drones” superior ao de pilotos de aviões de caça e de bombardeiros tomados em conjunto. A meta para a robotização das forças armadas dos EUA é de 15% para 2015. Cf. “US Air Force prepares drones to end era of fighter pilots“, The Guardian, Edward Helmore, New York, 23 de Agosto de 2009, http://www.guardian.co.uk/world/2009/aug/22/us-air-force-drones-pilots-afghanistan.

[22] A Turquia que pretende adquirir drones aos EUA pôs à disposição dos americanos uma base aérea que é utilizada por uma esquadra de drones das FFAA dos EUA. Os drones armados disparam em regra mísseis Hellfire ou Scorpion, estes de menor poder destrutivo numa tentativa para reduzir os danos colaterais.

[23] Cf, “Do Targeted Killings Work?“, Daniel L. Byman, Senior Fellow, Foreign Policy, Saban Center for Middle East Policy (http://www.brookings.edu/opinions/2009/0714_targeted_killings_byman.aspx?p=1)

[24] O arsenal de robôs militares de reconhecimento e ataque é vasto.

Diversas fontes referem-se aos trabalhos de desenvolvimento tecnológico de robots-espiões com aparência e dimensões semelhantes às de um insecto, capazes de voar como insectos e passar despercebidos. Entretanto decorrem também trabalhos que visam a utilização de insectos reais em que são implantados cirurgicamente dispositivos (“chips“) electrónicos que permitem comandar à distância o seu voo e comportamento. Esses dispositivos enviam também sinais que contêm diversas informações que interessam aos operadores. Os “chips” são implantados nos insectos de preferência durante a fase de desenvolvimento da crisálida antes da metamorfose final do insecto. Trabalhos deste tipo estão em desenvolvimento no departamento das Forças Armadas dos EUA designado por DARPA (Defense Advanced Research Project Agency). Os insectos modificados são usualmente chamados “Cyborgs” ou “Cybugs“.

Os robots já utilizados ou que se encontram em fase de protótipo, têm as mais variadas formas e dimensões, e finalidades múltiplas. Tipicamente desempenham funções de espionagem, vigilância, identificação de alvos e reconhecimento. Os sensores utilizados permitem a recolha de imagens ópticas, que chegam a cobrir um ângulo de 360º, sinais de radar, radiação infravermelha, microondas e radiação ultravioleta. São também usados sensores químicos e biológicos.

Sensores biológicos são sensores que podem detectar a presença no ar de microrganismos e outros agentes biológicos. Os sensores químicos podem detectar a presença e concentração no ar de elementos químicos diversos por meio de espectrometria de laser.

[25] Existe uma considerável diversidade das ditas “armas não-letais”: feixes de energia dirigidos (infravermelhos); geradores de impulsos sonoros de alta intensidade; projecteis que actuam por efeito de impacto, descargas eléctricas, dispersão de agentes químicos ou biológicos; barreiras electromagnéticas (“active denial systems“); indução externa de sons e imagens, por acção de campos electromagnéticos que actuam sobre os circuitos neurológicos do sistema nervoso central, e outros. Um olhar rápido sobre esta parafernália de instrumentos e sistemas ditos “não-letais” pode não deixar entender todos os seus possíveis destinos, as motivações para o seu domínio e suas implicações. Neste contexto é útil citar aqui um documento: Cf. “Crowd Behavior, Crowd Control, and the Use of Non-Lethal Weapons“, Institute for Non-Lethal Defense Technologies, Human Effects Advisory Panel, Report of Findings, Pennsylvania State University, 1 de Janeiro de 2001. O relatório é o resultado de um estudo efectuado sob contrato com o Corpo de Marines dos EUA.

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