A primeira solução e a mais simples foi a criação dos registos de ensaios: se as pessoas são obrigadas a publicar o seu protocolo, na íntegra, antes de começarem a trabalhar, temos, pelo menos, a oportunidade de voltar atrás e de controlar se publicaram os ensaios que realizaram. É muito útil, por diversas razões. Um protocolo de ensaio descreve em grandes pormenores técnicos tudo o que os investigadores farão num ensaio: quantos doentes recrutarão, qual a sua proveniência, como serão divididos em grupos, que tratamento será ministrado a cada grupo, e que desfecho será medido para estabelecer se o tratamento foi bem sucedido. Por conseguinte, o protocolo pode ser usado para verificar se o ensaio foi publicado, mas também para apurar se os seus métodos foram distorcidos ao longo do percurso de modo a permitir a sobrevalorização dos resultados.
O primeiro grande artigo a recorrer a um registo de protocolos de ensaios clínicos foi publicado em 1986, seguido por um caudal de outros. Em 1990, Iain Chalmers (ou Sir Iain Chalmers, se preferir) [1] publicou um artigo clássico intitulado “Underreporting Research is Scientific Misconduct“, e seguiu a pista da história acidentada dos registos de ensaios no Reino Unido. Em 1992, quando a Cochrane Collaboration começou a ganhar influência, representantes da Association of the Bristish Pharmaceutical Industry (ABPI), a associação britânica da Indústria Farmacêutica, solicitaram uma reunião com Chalmers. Depois de este lhes ter explicado o trabalho da Cochrane, e a importância vital de sintetizar todos os resultados de ensaios sobre um determinado Fármaco, expôs-lhes com toda a clareza de que modo a sub-divulgação enviesada de resultados prejudica os doentes.
Os representantes da Indústria mostraram-se sensíveis à questão e não tardaram a passar à acção. Mike Wallace, director executivo da Schering e membro dessa delegação da ABPI, concordou com Chalmers que a ocultação de dados era indefensável do ponto de vista ético e científico, e disse que planeava tomar medidas concretas para a impedir, quanto mais não fosse para proteger a indústria de ser atingida, em termos menos benevolentes, por esta questão. Wallace distanciou-se dos colegas e comprometeu-se a registar na Cochrane todos os ensaios realizados pela sua empresa. A sua atitude não foi muito popular, e foi criticado por colegas, sobretudo de outras empresas.

No entanto, a GlaxoWellcome não tardou a segui-lo e, em 1998, o seu director executivo, Richard Sykes, escreveu um editorial na revista BMJ intitulado “Being a modem pharmaceutical company involves making information available on clinicai trial programmes“. “Programas” era a palavra crucial porque, como vimos e veremos com mais pormenor adiante, só podemos atribuir sentido a achados individuais quando os avaliamos no contexto de todo o trabalho realizado sobre um Fármaco.
A GlaxoWellcome criou um registo de ensaios clínicos, e Elizabeth Wager, a responsável da equipa de redactores médicos da empresa, juntou um grupo com elementos provenientes de toda a indústria a fim de desenvolver directivas éticas para a apresentação de investigações. A ABPI, vendo as empresas a assumirem individualmente a liderança, deu-se conta de que estava prestes a acontecer qualquer coisa: decidiu recomendar a política da GlaxoWellcome a toda a Indústria, e lançou essa iniciativa numa conferência de Imprensa onde Chalmers, fortemente crítico, se sentou do mesmo lado da mesa que a Indústria. A AstraZeneca, a Aventis, a MSD, a Novartis, a Roche, a Schering Healthcare e a Wyeth começaram a registar alguns dos seus ensaios — apenas os que envolviam doentes do Reino Unido, e retrospectivamente —, mas, pelo menos, alguma coisa tinha mexido.
Ao mesmo tempo, também mexia nos Estados Unidos. O Modemization Act da FDA, de 1997, criou o clinicaltrials.gov, um registo pela entidade governamental National Institute of Health. Esta legislação exigia que os ensaios fossem registados, mas só se se relacionassem com um pedido de introdução no mercado de um novo Fármaco e, mesmo nesse caso, só para doenças graves ou potencialmente fatais. O registo abriu em 1998, e o site da Internet clinicaltrials.gov em 2000. Os critérios de acesso foram alargados em 2004.
Porém, não tardou que tudo começasse a desmoronar-se. A GlaxoWellcome fundiu com a SmithKline Beecham, dando origem à GlaxoSmith Kline (GSK), e no início o novo logotipo aparecia no velho registo de ensaios. Iain Chalmers escreveu a Jean Pierre Gamier, director executivo da nova empresa, a agradecer-lhe por manter essa valiosa transparência, mas nunca obteve resposta. O Site na Internet foi encerrado, e o conteúdo perdeu-se (embora a GSK tenha sido forçada, poucos anos mais tarde, a abrir um novo registo, na sequência de um acordo com o governo americano sobre os danos causados pela ocultação de dados de novos ensaios clínicos). Elizabeth Wager, autora das directivas da GSK sobre Boas Práticas de Publicação para empresas da Indústria Farmacêutica, ficou sem trabalho, pois foi encerrado o seu departamento na empresa. As suas directivas foram ignoradas.

Desde que estes registos foram sugeridos até serem abertos, partiu-se implicitamente do princípio de que a vergonha de efectuar um registo público e de, depois, não publicar o estudo bastaria para assegurar que as pessoas fariam o que era correcto. Mas o primeiro problema que surgiu nos registos dos Estados Unidos, que teriam podido ser usados universalmente, foi as pessoas terem optado simplesmente por não o usar. As regulações só exigiam a inscrição de uma gama estreitíssima de ensaios, e ninguém estava interessado em registar ensaios se não fosse obrigado a fazê-lo.
Em 2004, o International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE), um grupo de editores das mais influentes revistas médicas do mundo, divulgou uma declaração Política, anunciando que nenhum deles publicaria qualquer ensaio clínico posterior a 2005 que não tivesse sido adequadamente registado antes do seu início. Fizeram-no, essencialmente, para forçar a Indústria e os investigadores: se um ensaio tivesse resultados positivos, as pessoas tentavam desesperadamente publicá-lo na revista mais prestigiada que conseguissem descobrir. Embora não dispusessem de poderes legais, os editores das revistas tinham o que as empresas e os investigadores mais desejavam: a possibilidade de publicação numa revista prestigiada. Ao insistirem no registo prévio, estavam a fazer o que podiam para forçar os investigadores e os patrocinadores da Indústria a registar todos os ensaios. Toda a gente rejubilou: o problema tinha sido resolvido.
Se achar estranho, e talvez irrealista, que a solução desta falha crucial na arquitectura da informação de uma Indústria que movimenta 600 mil milhões de dólares tivesse cabido a uma reunião informal de um punhado de editores académicos, sem poder legislativo, tem toda a razão. Embora toda a gente começasse a falar como se o enviesamento de publicação fosse uma coisa do passado, na realidade tudo continuava como dantes, porque os editores das revistas se limitaram a ignorar as suas próprias ameaças e promessas. Veremos mais adiante as fenomenais recompensas financeiras oferecidas a editores a troco da publicação de artigos positivos da Indústria, que podem atingir milhões de dólares no caso das reimpressões e dos rendimentos da publicidade. Mas primeiro devemos analisar o que fizeram realmente depois da sua solene promessa de 2005.
Em 2008, um grupo de investigadores analisou cada um dos ensaios publicados nas dez mais importantes revistas médicas, todas membros do ICMJE, segundo o prazo para o registo prévio. Dos 323 ensaios publicados em 2008 nessas revistas académicas de grande impacto, só metade estava adequadamente registada (antes do ensaio, com a medida do desfecho principal adequadamente especificada), não havendo qualquer tipo de registo em mais de um quarto. Os editores do ICMJE limitaram-se simplesmente a faltar à sua palavra.
Entretanto, na Europa, ocorreram uns avanços estranhíssimos. Com enorme ostentação, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) criou um registo de ensaios chamado EudraCT. A legislação europeia exige o registo de todos os ensaios que envolvam quaisquer doentes na Europa, e muitas empresas da Indústria Farmacêutica afirmarão que cumpriram as suas responsabilidades de transparência ao fazê-lo. Mas o conteúdo desse registo comunitário tem-se mantido completamente secreto. Podemos dizer-lhe que contém cerca de 30.000 ensaios, porque esse número é do domínio público, mas literalmente é tudo o que sabemos, e que qualquer pessoa pode saber. Embora a legislação comunitária exija que o público tenha acesso ao conteúdo desse registo, a verdade é que permanece fechado. Isto cria um paradoxo quase risível: o registo dos ensaios clínicos da União Europeia é um instrumento de transparência, conservado em segredo total. Desde Março de 2011, na sequência de fortes críticas nos Média (nossas, pelo menos), um site na Internet chamado EudraPharm começou lentamente a tomar público um subconjunto de ensaios.
Embora a agência afirme neste momento que o seu registo está acessível a toda a gente, no Verão de 2012 ainda faltavam pelo menos 10.000 ensaios, e o motor de busca não funciona adequadamente. E uma das situações mais estranhas a que assistimos, e ninguém, excepto a União Europeia, considera este dispositivo peculiar como um registo de ensaios: nós decerto que não, o leitor, duvido que o faça, e tanto o ICMJE como a Organização Mundial de Saúde declararam expressamente que a base de dados EudraCT não é um registo significativo.
Nos Estados Unidos, porém, tinha havido novidades, aparentemente sensatas. Em 2007, foi aprovada nova legislação da FDA, o FDA Amendment Act, muito mais severa: exige o registo de todos os ensaios de qualquer Fármaco ou dispositivo, em qualquer estado de desenvolvimento que não os ensaios pioneiros em humanos, se possuem qualquer instalação nos Estados Unidos ou envolvem qualquer tipo de pedido de introdução no mercado de um novo Fármaco. Impõe igualmente um novo requisito surpreendente: todos os resultados de todos os ensaios devem ser inseridos no site clinicaltArials.gov, em quadros abreviados, no espaço de um ano após a conclusão, para qualquer ensaio sobre qualquer Fármaco comercializado com data de conclusão posterior a 2007.
Mais uma vez, com grande ostentação, toda a gente acreditou que o problema estava resolvido. Mas não estava, por duas importantíssimas razões.

Em primeiro lugar, infelizmente, não obstante a boa vontade indubitável, a exigência de publicação de todos os ensaios a partir de “agora” não significa absolutamente nada para a medicina actual. Não existe nenhum gabinete médico, em parte alguma do mundo, onde se pratique medicina só com base em ensaios completados nos últimos três anos, usando apenas Medicamentos introduzidos no mercado a partir de 2008. Com efeito, o oposto é que é verdadeiro: a vasta maioria dos Fármacos actualmente utilizados chegou ao mercado nos últimos dez, vinte ou trinta anos, e, neste momento, um dos grandes desafios da Indústria Farmacêutica é criar Medicamentos que se assemelhem de algum modo aos Fármacos inovadores que surgiram na época que se tornou conhecida como a “idade de ouro” da investigação farmacêutica, no decurso da qual se desenvolveram todos os Medicamentos mais amplamente utilizados para todas as doenças mais comuns. Talvez fossem os frutos mais fáceis de colher na árvore da investigação, mas são os comprimidos que usamos.
E, crucialmente, é sobre esses Medicamentos, os que utilizamos neste momento, que necessitamos de provas: as dos ensaios completados em 2005 ou 1995. São esses os Fármacos que receitamos completamente às cegas, induzidos em erro por uma amostra enviesada de ensaios, selectivamente publicados, com os dados negativos enterrados em arquivos subterrâneos seguros (que, no Reino Unido, se situarão algures nas colinas de Cheshire, como nos disseram).
Porém, existe uma segunda razão, mais perturbadora, para estas regulações não serem tomadas a sério: é que foram amplamente ignoradas. Um estudo publicado em Janeiro de 2012 analisou a primeira fatia de ensaios sujeitos a registo obrigatório e descobriu que só um em cada cinco cumprira as suas obrigações de divulgação de resultados. Este facto não nos deve surpreender: a multa por incumprimento é de 10.000 dólares por dia, montante que nos parece espectacular até nos darmos conta de que totaliza apenas 3,5 milhões de dólares anuais, uma ninharia para um medicamento que rende 4 mil milhões de dólares por ano. Acresce ainda que nenhuma multa desse tipo foi aplicada ao longo de toda a História desta legislação.
É por isso que encaramos como “falsas soluções” as pretensões de solucionar este problema apresentadas pelo ICMJE, a FDA e a União Europeia. Com efeito, fizeram pior do que fracassar: deram-nos uma falsa segurança de que o problema tinha sido resolvido, de que o problema tinha desaparecido e, à conta disso, desviámos os olhos da bola. Há mais de meia década que, nos meios médicos e académicos, se fala do enviesamento de publicação como um problema do passado, descoberto na década de 1990 e no início da década de 2000, e rapidamente resolvido.
Porém, o problema dos dados em falta não desapareceu, e não tardaremos a ver exactamente quão desavergonhadas podem ser algumas empresas e reguladores no momento presente.
NOTAS:
[1] Iain Chalmers recebeu o título de Sir pela criação da Cochrane Collaboration. Como são indivíduos muito práticos, os investigadores da Cochrane quiseram saber se essa honra teria algum valor real, tendo realizado um ensaio aleatório para o efeito. Demonstrariam os destinatários de cartas assinadas por “Iain Chalmers” maior ou menor tendência a responder se ele assinasse “Sir Iain Chalmers“? Estabeleceu-se um sistema simples e, imediatamente antes de serem postas no correio, as cartas eram assinadas ao acaso por “Sir Iain Chalmers” ou simplesmente “Iain Chalmers“. Os investigadores compararam depois o número de respostas a cada assinatura: o “Sir” não fez nenhuma diferença. Este estudo está publicado na íntegra, apesar de relatar um resultado negativo, em Journal of the Royal Society of Medicine, e o tema da investigação não é irreverente. Em medicina, há muitos Sirs; há coisas perturbadoras que uma pessoa pode fazer para aumentar as probabilidades de vir a receber esse título; e há muita gente que pensa: “Se eu fosse Sir, as pessoas levariam as minhas boas ideias mais a sério.” O título do artigo é “Yes Sir, No Sir, not much difference Sir“. Depois de o ler, o leitor pode moderar as suas ambições.