Já explorei tantas vezes o tema das tradições relacionadas com a Atlântida na Europa, na África e na América, que um mero resumo deve aqui ser suficiente. Este resumo, contudo, é essencial em qualquer história da Atlântida, que estaria incompleta sem uma referência às evidências da existência da ilha-continente, tanto no Velho como no Novo Mundo.
A Espanha tem a sua lenda da Antilha, ou Ilha das Sete Cidades, uma ilha rectangular que aparece uma e outra vez nos mapas de cartógrafos dos Séculos XIV, XV e até mesmo XVI, e que Toscanelli aconselhou Colombo a considerar como um ponto de passagem no caminho para as Índias.[1] Pensava-se que Roderick, o último dos reis góticos de Espanha, aí encontrara refúgio dos conquistadores mouros, ficando, tal como Artur, na sua ilha paradisíaca até a Espanha necessitar novamente dele. Alguns escritores sugeriram mesmo que a Antilha era a própria Atlântida, e que a sua forma quadrilateral se assemelhava à da Atlântida conforme descrita por Platão. Mas Humboldt indicou que Platão atribuiu esta forma apenas a uma parte em particular da Atlântida, e não a toda a ilha.
O historiador romano Timagenes, que viveu no Século I d.C., preservou tradições dos gauleses que falavam de invasores provenientes de uma ilha afundada. Os celtas da Bretanha, tal como os da Grã-Bretanha, preservaram a sua própria versão da história da Atlântida na lenda da cidade afundada de Ys, ou Ker-is, governada por um príncipe chamado Gradlon que, avisado da aproximação do mar, defendeu a capital das suas incursões construindo uma bacia imensa para receber o excesso de água na maré alta. Esta bacia tinha um escoadouro secreto, do qual apenas Gradlon possuía a chave, mas a sua malévola filha, a Princesa Dahut, enquanto festejava com o seu amante e saltava de frivolidade em frivolidade, roubou a chave e abriu a comporta, e a maré, ao entrar, submergiu a cidade. Ys, que era rica em comércio e artes, ficava onde hoje um corpo de água, o Etang de Lavai, banha as costas desoladas da Baía de Tréspassés, embora alguns pensem que se encontrava onde é agora a baía de Douarnenez, e sob uma ou outra desta planícies de água repousa o palácio de Gradlon, com os seus pilares de mármore, paredes de cedro e tectos de ouro, para sempre escondidos dos olhares humanos.
Um estranho rito preservou a lenda de Gradlon na cidade de Quimper. Entre as torres da Catedral encontra-se uma figura do rei montado no cavalo de batalha que o salvou da inundação. Durante a Revolução Francesa esta estátua foi danificada, mas posteriormente restaurada. A vinha, diz-se, foi introduzida na Bretanha por Gradlon, e em cada Dia de Cecília cantavam-se hinos em seu louvor, e uma taça dourada com vinho era oferecida à estátua. Esta era erguida até aos seus lábios e depois bebida pela pessoa que a oferecia. A taça era então atirada para a multidão que aguardava em baixo, e quem a apanhasse recebia um prémio de duzentas coroas.
Por trás destes actos cerimoniais parecia haver uma base de antigas práticas religiosas. Gradlon é conhecido como Gradlon Meur, ou o Grande, uma designação reservada apenas para os deuses na mitologia celta. Na verdade, parece que ele era Poseidon. Poseidon foi o primeiro domador de cavalos, que ensinou os homens a montar, e era quase invariavelmente representado, tal como Gradlon, a cavalo ou numa carruagem. O seu palácio assemelhava-se fortemente ao da Atlântida. “Uma forte represa protegia-o do oceano.” Havia portões que se abriam e fechavam no canal, tal como na Atlântida, e o seu palácio estava decorado de forma semelhante. O povo da sua cidade foi igualmente punido pela sua perversidade com a submersão do seu território. Parece-me haver pouca ou nenhuma diferença entre a lenda de Ys e a da Atlântida. Na verdade, o próprio nome Ys ou Is, como surge frequentemente escrito, parece apenas uma abreviação de Atlântida[2].

Terá alguma vez existido um território ao largo da costa de França suficientemente extenso para dar origem a lendas como a da cidade de Ys? No Verão de 1925, o mundo ficou estupefacto ao saber da provável existência de terra directamente ao largo desta costa. Transcrevo aqui o melhor relato que encontrei desta descoberta, publicado no The New York Times:
“A França pode, dentro de poucos anos, ver o seu território consideravelmente alargado, se as investigações oficiais vierem a confirmar os relatos de uma tremenda elevação no leito do oceano, feito por um oficial francês no comando do navio de transporte do exército, Loiret.
No seu relatório, o tenente Cornet diz que, enquanto o Loiret viajava entre o Cabo Ortegal e Rochefort, reparou em ondas peculiares, como as que quebram sobre bancos de areia, num ponto cem milhas ao largo, no centro do golfo da Gasconha.
Consultando os seus mapas, e verificando a posição do navio pelo sextante, o tenente descobriu que a profundidade registada nesta área era de quatro mil a cinco mil metros. Decidiu efectuar sondagens e, ao longo de uma distância de cinquenta milhas, descobriu que a profundidade era apenas entre trinta e quatro e setenta metros. O piloto do navio também verificou as sondagens, e os espécimes recolhidos no fundo do oceano revelaram areia, seixos e gravilha.
Os oficiais da marinha acreditam, segundo consta, que esta ascensão, se é que se trata de facto de uma ascensão, tenha ocorrido por altura do terramoto japonês em 1923 e de uma onda de maré em Penmarch, Bretanha, no passado dia 23 de Maio. M. Fichot, director dos Serviços Hidrográficos do Ministério da Marinha Francês, é mais conservador nas suas afirmações, e diz que as observações do tenente são merecedoras de um estudo cauteloso, apesar de a navegação no golfo não ser afectada por uma profundidade menor do que se julgava anteriormente. Ele diz que será enviada assim que possível para o golfo da Gasconha uma comissão naval para confirmar estes dados e determinar o tamanho e localização do planalto submarino.
Não crê no entanto que venham a surgir novas terras, mas sim que se trata de um banco submerso, do qual o efeito das ondas observado é uma indicação habitual. Diz ainda que é difícil saber a extensão exacta das modificações ocorridas, uma vez que as cartas de navegação desta área são muito antigas e podiam estar incorrectas. No entanto, considera estranha a existência no Atlântico de um planalto com estas características.
A localização dada pelo tenente Cornet tem o seu centro a cerca de quarenta e cinco graus e sete minutos Norte e três graus e cinquenta e sete minutos Oeste — aproximadamente a mesma latitude que Bordéus e a mesma longitude que Brest. Este local fica a cento e sessenta quilómetros do ponto mais próximo da costa francesa.”
As minhas investigações posteriores não conseguiram descobrir os resultados das pesquisas efectuadas pela Comissão enviada para o Golfo da Gasconha, se é que essa comissão alguma vez chegou a ser enviada.
A lenda de Dárdano, que o Dilúvio apanhou na Samotrácia, assemelha-se fortemente, em algumas das suas passagens, à história da Atlântida. Os nativos da Samotrácia, segundo Diodoro Sículo, asseguram que o mar se ergueu e cobriu grande parte do território plano da sua ilha e que os sobreviventes fugiram para os elevados territórios montanhosos. Em memória da sua salvação do Dilúvio ergueram marcos por toda a ilha e construíram altares, nos quais continuaram a fazer sacrifícios aos deuses durante muitas gerações. Séculos mais tarde, os pescadores recolheram nas suas redes, capitéis de pilares de pedra, testemunhos eloquentes de cidades profundamente sepultadas no mar circundante.

O mito de Deucalião e do Dilúvio é interessante para os estudantes da Atlântida, não só porque é um mito de inundação, mas também porque tem duplicados na tradição americana. Segundo Lucian, Deucalião era o Noé do mundo grego. “Ouvi na Grécia“, diz Lucian, “o que os gregos dizem de Deucalião. A actual raça de homens, alegam eles, não é a primeira, pois essa pereceu completamente, mas sim uma segunda geração que, sendo descendente de Deucalião, aumentou até se tornar numa grande multidão. Eis o que eles dizem desses primeiros homens — eram insolentes e dados a acções injustas; não respeitavam juramentos, não eram hospitaleiros com estranhos nem davam ouvidos aos suplicantes; e esta perversidade complicada foi a causa da sua destruição. De repente a terra vomitou uma grande quantidade de água, caíram fortes chuvas, os rios transbordaram, e o mar ergueu-se a alturas prodigiosas. Todas as coisas se tornaram água e todos os homens foram destruídos. Apenas Deucalião foi poupado, para gerar uma segunda raça de homens, devido à sua sensatez e devoção. E foi salvo da seguinte maneira: entrou numa grande arca ou cofre e, quando lá estava dentro, nela entraram também porcos, cavalos, leões, serpentes e todas as outras criaturas que vivem na terra, aos pares. Ele recebeu-as a todas e elas não lhe fizeram mal, pois os deuses criaram uma amizade entre eles, de modo a que todos pudessem navegar numa única arca enquanto as águas permanecessem.”
Deucalião foi salvo num pequeno barco, juntamente com a sua mulher, Pirra. Quando consultaram o oráculo, foi-lhes dito que “atirassem para trás das costas os ossos da vossa mãe poderosa” (ou seja, as pedras da terra). Obedecendo a essa ordem, descobriram que as pedras se transformavam em homens e mulheres.
Chegamos agora às evidências da tradição americana. Na verdade, esta é tão rica que é quase embaraçoso, e a sua riqueza deve-se provavelmente a uma origem consideravelmente mais recente.
Os índios Muskogee preservaram um mito que diz que, do deserto de águas primevo, se ergueu uma grande colina, Nunne Chaha, na qual residia Esaugetuh Emisee, “Mestre da Respiração“, que fez os homens a partir de barro e construiu uma grande muralha, onde os pôs a secar. Depois orientou as águas para os canais adequados. A colina mencionada neste mito parece ser a mesma em que Poseidon ergueu a sua morada, na Atlântida, e a disposição das águas ostenta uma semelhança suspeita com a disposição de mar e terra em zonas ordenadas efectuada pelo deus. De Manebozho ou Michabo, o grande deus dos Algonquinos, conta-se que “esculpiu a terra e o mar ao seu gosto” e de Tawiscara, um deus dos Hurons, que “guiou as torrentes em mares e lagos tranquilos”.

Mas ainda mais admiráveis são as lendas análogas de certas tribos de índios da América do Sul. Os índios Antis, da Bolívia e do Noroeste do Brasil, dizem que o mundo foi visitado por uma grande inundação, na qual os homens foram obrigados a refugiar-se em grutas. Seguiram-se erupções vulcânicas e a humanidade foi, por fim, destruída. A tribo Macusi, de Arawaks, conta que as únicas pessoas que sobreviveram ao dilúvio repovoaram a terra transformando pedras em seres humanos, como fizeram Deucalião e Pirra no mito grego. Os Tamanacs têm um mito semelhante, no qual se diz que os sobreviventes atiraram sobre a cabeça os frutos da palmeira das Maurícias, e destes brotaram homens e mulheres.
Talvez um dos mitos americanos mais “atlantes” seja o de Mundruku, que relata que o deus Raimi criou o mundo colocando-o sobre a cabeça de outra divindade na forma de uma pedra achatada. Isto, claro, é apenas outra versão do mito grego em que Atlas tentou livrar-se do eterno fardo de suportar o globo sobre os ombros, pedindo a Hércules que o segurasse durante algum tempo. Os caribes acreditam que o seu antepassado sobrenatural semeou o solo com pedras, que cresceram e se tornaram homens e mulheres, outra variante do mito de Deucalião. Uma lenda dos Okanguas afirma que uma grande feiticeira governava uma “ilha perdida”, e os índios Delaware têm lendas que falam de uma poderosa inundação e de uma precipitada migração popular em consequência da mesma.
Os aztecas do México possuíam muitas tradições que parecem preservar a memória de antigos eventos cataclísmicos. De acordo com diferentes autoridades, estes terão sido em número de quatro ou cinco. O Codex Vaticanus afirma que, “na primeira era ou sol, a água reinou até destruir o mundo”. Esta era durou quatro mil e oito anos, e os homens foram transformados em peixes. A segunda era durou quatro mil e dez anos e terminou com a destruição do mundo por ventos violentos e a transformação dos homens em macacos. A terceira terminou pelo fogo e a quarta pela fome.

O deus peruano Pariacaca chegou, tal como Poseidon, a um território montanhoso. Mas o povo insultou-o e ele lançou sobre eles uma grande inundação que destruiu a aldeia. Ao conhecer uma bela donzela, Choque Suso, que chorava copiosamente, perguntou-lhe qual era a causa da sua dor e ela informou-o de que a colheita de milho estava a morrer por falta de água. Ele garantiu-lhe que reviveria o milho se ela lhe concedesse a sua afeição e, quando a donzela consentiu à sua corte, irrigou a terra através de canais. Eventualmente, transformou a sua esposa numa estátua.
Outro mito peruano conta que o deus Thonapa, irado com o povo de Yamquisapa, na província de Alla-suyu, por ser demasiado dedicado ao prazer, submergiu a cidade sob um grande lago. O povo desta região venerava uma estátua em forma de mulher, que se erguia no cimo da colina Cachapucara. Thonapa destruiu a colina e a imagem e desapareceu no mar.
Estes mitos peruanos têm uma forte semelhança, em termos de detalhes, com a parte do relato de Platão em que ele fala da corte a Clito, do recinto na colina e da criação de uma zona de irrigação. A estátua da mulher do deus também é mencionada, e o próprio deus é descrito como tendo desaparecido no mar, tal como pode muito bem ter sucedido com Poseidon. Vemos que também a inundação foi causada pela perversidade ou pelo amor excessivo da raça humana pelo prazer.
As lendas dos tupi-guarani do Brasil conservam uma tradição semelhante à de Platão, no que diz respeito à parte da catástrofe:
“Monan, o Criador, o Procriador, o que não tem princípio nem fim, autor de tudo o que existe, ao ver a ingratidão dos homens e o seu desprezo por ele, que os criara assim alegres, afastou-se e lançou sobre eles tata, o fogo divino, que queimou tudo o que havia à face da terra. Espalhou o fogo de tal forma que em certos locais ergueu montanhas e noutros criou vales profundos. De todos os homens, apenas um, Irin Magé (Aquele Que Vê) se salvou, e Monan levou-o para o céu. Este, ao ver todas as coisas destruídas, disse assim a Monan: “Irás destruir também os céus e os seus adornos? E doravante onde será o nosso lar? Por que hei-de eu viver, se não existe mais nenhum da minha espécie?” Então Monan teve tanta pena dele que derramou sobre a terra uma chuva torrencial que apagou o fogo e, fluindo de todos os lados, formou o oceano ao qual chamamos partana, as grandes águas.”
Brinton, no seu livro «Myths of the New World», diz em relação à tradição diluviaria americana:
“Há evidências abundantes que provam como estas especulações eram familiares para os aborígenes da América. As antigas lendas dos Algonquinos não falam de uma raça antediluviana, nem de qualquer família que tenha escapado às águas […] Nem os seus vizinhos, os Dakotas, embora firmes na crença de que o globo foi em tempos destruído pela água, supõem que alguém tenha escapado. Os Nicaraguas e os Botocudos do Brasil tinham a mesma visão… Os Aschochimi da Califórnia falavam de uma inundação do mundo à qual não escapara qualquer “homem… No entanto, a opinião geral era de que uns poucos tinham escapado ao elemento causador de desolação […] ou subindo a uma montanha, ou numa jangada ou canoa, ou numa gruta ou mesmo trepando a uma árvore. Não há dúvida de que algumas destas lendas foram modificadas pelos ensinamentos cristãos, mas muitas delas estão tão ligadas a peculiaridades locais e a antigas cerimónias religiosas que nenhum estudante imparcial pode atribuir unicamente a essa fonte cristã […] Não há mais heranças comuns no saber tradicional da raça vermelha. Quase todos os antigos autores citam uma ou mais. Apresentam uma grande uniformidade de contornos e, em lugar de cairmos em repetições de pouco interesse, seria mais proveitoso que as estudássemos como um todo e não em detalhe. O maior número delas, de longe, representa a última destruição do mundo pela água. No entanto, algumas atribuem-na a uma conflagração geral que varreu a terra, consumindo todos os seres vivos, excepto alguns que se terão refugiado numa gruta profunda […] Há, de facto, alguns pontos de semelhança assinaláveis entre os mitos diluvianos da Ásia e da América. Em relação a estes últimos, tem-se considerado uma peculiaridade própria o facto de a pessoa salva ser sempre o primeiro homem. Esta é sem dúvida a regra geral, embora haja excepções. Mas estes primeiros homens eram geralmente as mais elevadas divindades conhecidas nas suas cidades, os únicos criadores do mundo e os guardiães da raça.”
Um mito dos Mixtecas, uma raça altamente civilizada do sudoeste do México, parece ter também uma forte relação com a Atlântida. Diz que: “Nos tempos de obscuridade e escuridão, quando ainda não havia dias nem anos, o mundo era um caos mergulhado na escuridão, enquanto a terra estava coberta de água na qual flutuavam limos e espuma. Um dia apareceram o deus e a deusa-veado. Tinham forma humana e, com a sua magia, ergueram uma grande montanha no meio das águas e nela construíram belos palácios para sua própria morada. Estes edifícios erguiam-se sobre Mixteca Superior, perto de Apoala (Acumulação de Água) e da montanha que se chamava “Lugar Onde Estavam os Céus“. Estas divindades tiveram filhos gémeos e eram os quatro peritos em magia. “Os deuses-veados tiveram mais filhos e filhas, mas ocorreu uma inundação na qual pereceram muitos deles. Depois de a catástrofe terminar, o deus a quem se chama criador de todas as coisas formou os céus e a terra e restaurou a raça humana.”

Aqui encontramos mais uma vez a montanha, os gémeos, a “acumulação de água” ou canais, e as divindades masculina e feminina, residentes num recinto fechado numa paz imperturbável, tal como Poseidon e Clito.
Outro mito mexicano conta como o deus Tlaloc, a divindade da água, ergueu a terra das águas do dilúvio. No festival de Quaitleloa eram-lhe sacrificadas crianças por afogamento. A sua mulher, Chálchihuitlicue, é representada numa imagem, no Manuscrito Aubin, de pé numa torrente na qual são arrastados um homem, uma mulher e uma arca de tesouro, o que pretende retratar otocoa, ou “perda de propriedade”, sendo o significado verbal do símbolo “tudo será levado pela água”. O desenho pode ser entendido como simbolizando uma inundação cataclísmica ocorrida numa região civilizada. No Codex Telleriano-Remensis alude-se a ela como “a mulher que se salvou do dilúvio”, “a mulher que permaneceu depois do dilúvio”. O Professor Seler vê nela a deusa da mudança nas questões humanas, da ruína acelerada. Tlaloc e Chalchihuitlicue parecem comparáveis a Poseidon e à sua esposa atlante, Clito. Tlaloc, como Poseidon, é o Deus do Mar, e o seu rosto, ornado de grandes presas, parece o de uma morsa ou outro animal marítimo semelhante. A sua túnica é a “veste de nuvens” e as suas sandálias simbolizam a espuma das águas. Para o seu paraíso regressavam depois da morte os afogados e hidrópicos, na verdade, todos os que pereciam por acção da água.
Os mitos mexicanos relacionados com o deus Quetzalcoatl e o seu povo, os Toltecas, são eloquentes em reminiscências atlantes. Torquemada, na sua «Monarquia Indiana», descreve os Toltecas como uma raça vestida com roupas de linho preto, que entrou no México por Panuco e que se instalou em Tollan e Cholula. O seu chefe era um tal Quetzalcoatl, um homem de barba longa e tez avermelhada. Eram artesãos, arquitectos e agricultores hábeis.

Um historiador nativo mexicano, Ixtlilxochitl, faz um relato dos Toltecas que revela uma semelhança surpreendente com a história da Atlântida platónica. Ele diz-nos que a cidade de Tollan era um lugar de palácios e templos magníficos, cujos reis foram inicialmente sábios e políticos, mas cederam mais tarde a hábitos licenciosos e dissolutos. As províncias ergueram-se em revolta e os deuses ficaram irados, tanto com o rei como com o povo, devido ao seu egoísmo e amor do prazer. A cidade foi visitada por geadas e calores de grande severidade, alternadamente, de tal modo que as colheitas morreram e as rochas derreteram e a peste completou a ruína. É óbvio que estes eventos nunca poderiam ter ocorrido em solo mexicano, onde raramente se vê geada, e parece provável que a História seja uma reminiscência de cataclismos ocorridos noutra esfera mais distante, e que as rochas derretidas se refiram a erupções vulcânicas ou sísmicas. Esta antiga lenda, revivida na memória popular dos mexicanos, parece ter sido adaptada para explicar a decadência Política do poder dos Toltecas.
Outros mitos criados em torno da personalidade do deus ou herói cultural Quetzalcoatl têm também um aspecto atlante. Esta personagem era encarada tanto como chefe dos imigrantes Toltecas do México como dos Maias da América Central. O relato mais completo de Quetzalcoatl é o de Sahagun, que descreve a prosperidade de Tollan no tempo de Quetzalcoatl. Ele era um grande portador de cultura, os seus palácios eram magníficos e, no seu tempo, as colheitas de milho eram imensas. Mas os feiticeiros nativos deram-lhe uma bebida que despertou nele um desejo muito forte de regressar ao lar no Atlântico de onde viera. Os mágicos informaram-no de que tinha de regressar a Tollan-Tlapallan, para além do mar, e ele assim fez, numa jangada de serpentes.
O Codex Telleriano-Remensis diz de Quetzalcoatl: “Quetzalcoatl, dizem, foi quem criou o mundo. E concederam-lhe a designação de Senhor do Vento, porque dizem que Tonacatecutli, quando lhe pareceu bem, respirou e gerou Quetzalcoatl […] Celebravam um festival em honra do destruidor, para assinalar os quatro terramotos, com referência ao destino que aguardava de novo o mundo: pois dizem que já passou por quatro destruições e voltará a ser destruído. Apenas Quetzalcoatl tinha um corpo humano como o dos outros homens. Os outros deuses eram de natureza incorpórea. Depois do dilúvio teve início o costume dos sacrifícios […] Chamam-lhe “One Cane“, que é a estrela Vénus, da qual contam a fábula acreditada entre eles. Tlauizcalpan Tecutli é a estrela Vénus, a primeira luz criada antes do dilúvio. Esta estrela é Quetzalcoatl.”

O intérprete do Codex Vaticanus A., um documento semelhante, diz: “Aquele que, como dizem, causava furacões, na minha opinião era o deus chamado Citaladuali, e foi ele que destruiu o mundo pelo vento […] O filho da virgem, Quetzalcoatl, sabendo que os vícios dos homens eram necessariamente a causa dos problemas do mundo, decidiu pedir à deusa Chalchihuitlicue, aquela que permaneceu depois do dilúvio com o homem na árvore (arca) e é mãe do deus Tlaloc, a quem fizeram deusa da água, para poderem ter chuva sempre que precisassem dela […] De Quetzalcoatl contam que, durante a sua viagem, chegou ao mar Vermelho, que está aqui representado, ao qual chamavam Tlapallan, e que ao entrar nele nunca mais o viram nem souberam nada dele […] Dizem que foi ele que realizou a reforma do mundo por penitência, uma vez que, de acordo com o que contou, o seu pai criara o mundo e os homens tinham-se entregue ao vício, e por isso fora o mundo frequentemente destruído, e Citinatonali enviara o seu filho para o mundo para o reformar […] Celebravam um grande festival para o assinalar, como para assinalar os quatro terramotos, porque temiam que o mundo fosse destruído nessa altura (ou data) como ele previra e lhes dissera ao desaparecer no mar Vermelho, evento que ocorreu na mesma altura.”
Estas passagens são eloquentes no que diz respeito à ligação de Quetzalcoatl com a tradição da Atlântida. Ele está ligado a uma região oceânica a leste do México, com cataclismos ou terramotos, com a história do Dilúvio, e com a lenda arcaica de que o mundo fora destruído devido à perversidade da humanidade. As lendas maias apresentam associações ainda mais notáveis com a tradição atlante.
Um livro antigo na língua maia, destruído por Nunez de la Vega mas citado por ele, conta como Votan (o nome quiché de Quetzalcoatl) recebeu ordens para se dirigir ao México e civilizar esse território. Com esta intenção, ele deixou as terras de Valum Chivim e, ao chegar à América Central, fundou a cidade de Palenque. Fez várias visitas ao seu lar ancestral e deixou um registo das suas viagens num templo perto do rio Huehuetan, conhecido como “A Casa da Escuridão“, que Nunez de la Vega afirma ter descoberto quando visitou Huehuetan em 1691[3].

É indubitável que uma raça civilizada como a mencionada nestas lendas chegou de facto à América Central. Os maias apareceram nessa região por volta de 200 a. C., na posse de uma civilização completamente desenvolvida, que deve ter demorado séculos a evoluir. Não há sinais do seu crescimento em solo americano, pelo que temos de presumir que amadureceu noutro lugar. Basta isto para tornar provável a tradição do estabelecimento de Quetzalcoatl na América Central. Além do mais, o significado atlante do mito de Quetzalcoatl é claro, como já demonstrámos. A arquitectura de Tollan, tal como é descrita por Ixtlilxochitl e outros, ostenta uma notável semelhança com a da Atlântida descrita por Platão, as circunstâncias cataclísmicas ou sísmicas estão presentes em ambos os relatos e a natureza pecaminosa dos habitantes de ambas as regiões é uma circunstância significativa.
O pai de Quetzalcoatl era Citallatonali, a quem o seu filho dedicou um culto especial. É representado pelo sinal cipactli, o dragão ou baleia a partir de quem a terra foi feita e que se ergueu do mar. No mito maia ele é mencionado como “a Velha Serpente coberta de penas verdes, que jaz no oceano”. A mãe de Quetzalcoatl era Citlallinicue ou Coatlicue, um nome que parece ostentar uma semelhança suspeita com Clito, a donzela desposada por Poseidon, e que lhe deu Atlas e outros filhos.
Quetzalcoatl pode ser facilmente comparado com Atlas. Em vários locais da arte mexicana é representado como o portador da terra, especialmente numa estatueta encontrada na Cidade do México, em Chichen-ltzâ e noutros locais. Nestas ele é representado como suportando o mundo ou o céu sobre a cabeça, e o Dr. J. H. Spinden, uma autoridade importante da Arqueologia maia, descreveu estas figuras como “atlantes”, devido à sua semelhança com as cariátides gregas de Atlas. Tal como Atlas, também Quetzalcoatl era gémeo, pois a expressão coatl significa tanto “cobra” como “gémeo”.

O facto de Quetzalcoatl regressar periodicamente ao seu lar original parece implicar que este ainda não fora completamente submerso, mas que os cataclismos ocasionais o tinham tornado tão instável que as classes governantes estavam a considerar a possibilidade de colonização de outros locais. Um estado de coisas semelhante foi registado pelo Professor J. Macmillan Brown no seu livro «Roddle of the Pacific», no qual faz alusão ao estabelecimento na Ilha da Páscoa de Hotu Matua, um herói cultural de uma região afundada no Pacífico. Parece então provável que Quetzalcoatl e o seu povo fossem emigrantes da Antilha, a porção mais ocidental do continente atlante que, segundo creio, sobreviveu muito mais tempo do que parte oriental ou atlante propriamente dita. Como já disse, tratei a fundo este aspecto do mito de Quetzalcoatl noutra obra.
Vemos então que o relato da Atlàntida feito por Platão não é de modo algum o único, mas sim que tem muitos equivalentes nas tradições europeias e americanas; e demonstraremos, quando nos debruçarmos sobre o tema das colónias atlantes, que estas tradições foram retiradas de uma colonização concreta em mais do que uma das regiões onde floresceram.
NOTAS:
[1] Em The Problem of Atlantis e Atlantis in America.
[2] Em inglês, “Atlantis“. (N. da T.)
[3] Um relato crítico completo das ideias mexicanas relativas a Quetzalcoatl pode ser encontrado no meu livro «Atlantis in America», capítulo Ill, e um estudo exaustivo sobre o mesmo no meu trabalho “Deuses do México“.