Uma história da Atlântida tem forçosamente de diferir de todas as outras histórias, pela razão fundamental de procurar registar as crónicas de um país cujo solo já não está disponível para exame por parte do arqueólogo. Se, por algum cataclismo da natureza, a península itálica tivesse sido submersa nas águas verdes do Mediterrâneo numa época posterior à queda de Roma, estaríamos ainda assim na posse de muitas evidências documentais sobre o crescimento e ascensão do Império Romano. Ao mesmo tempo, o solo sobre o qual esse império floresceu, os restos ponderáveis da sua civilização e da sua arquitectura, estariam para sempre perdidos para nós, excepto no que diz respeito às suas manifestações coloniais. Seríamos, em grande medida, forçados a deduzir as nossas ideias sobre a preeminência latina a partir das instituições fundadas noutras terras e das suas tradições que existissem, à época do seu desaparecimento, entre as nações iletradas que a rodeassem.
Mas, por maiores que fossem as dificuldades de um tal empreendimento, estas seriam, na verdade, insignificantes quando comparadas com a tarefa de sondar a neblina do tempo em busca de vestígios de crónicas e eventos que falem de uma civilização mergulhada nos abismos do oceano quase nove mil anos antes da fundação da Cidade Eterna. Perante uma tarefa tão estupenda, o estudante de História tem razões para ficar desalentado. Uma Roma submersa, uma Atenas arrasada por um terramoto, teriam deixado para a posteridade mil Documentos corroborativos. Se a Babilónia ou todo o vale egípcio se tivessem afundado e desaparecido mil anos antes do nascimento de Cristo, teriam ainda assim deixado para trás o testemunho do seu comércio com o Mediterrâneo, e a sua cerâmica e outros artefactos teriam sido encontrados em Creta e no Chipre. Apesar disso, não esqueçamos que a localização da própria Nínive esteve esquecida, que até há um século conhecíamos apenas leves contornos da História babilónica e egípcia, que os seus hieróglifos escritos eram indecifráveis. Será então esperar demasiado que uma Arqueologia, cuja tarefa é reconstruir os detalhes de Civilizações sobre as quais o tempo lançou uma sombra profunda como o oceano, seja competente para abordar a discussão dos problemas mais intrincados relacionados com a reconstrução da História de um continente que está submerso há duas vezes mais tempo do que o período que o Antigo Egipto sobreviveu?
É aqui que se torna necessário dizer algo relativamente às opiniões do próprio escritor sobre o tema da ciência histórica. É com certeza evidente o papel que a inspiração desempenhou no deslindar de problemas arqueológicos durante o último século. Com a ajuda da inspiração, tanto quanto do mero estudo académico, foram decifrados os hieróglifos do Egipto e a escrita cuneiforme da Babilónia. Não terá sido a inspiração a revelar a Schliemann a localização exacta de Tróia, antes de este dar início às escavações? Os métodos inspiradores, na verdade, virão a revelar-se os métodos da Arqueologia do Futuro. A Escola da Fita Métrica, sensaborona e repleta da credulidade da incredulidade, está condenada.
A analogia é o instrumento da inspiração e, se manejada habilmente, é capaz de alcançar resultados extraordinários. Mesmo hoje, a Arqueologia e o Folclore dependem quase inteiramente da analogia para alcançar os seus resultados. Apenas por comparação podemos lançar alguma luz sobre a natureza de costumes e objectos inexplicados e, o método analógico será largamente empregue porque nos fornece uma sonda adequada, com a ajuda da qual podemos perfurar as crostas duras do esquecimento que se acumularam em torno dos factos da história atlante.
Factos! Estaremos na posse de algum facto relativamente à Atlântida? Será o próprio título, A história da Atlântida, um insulto à inteligência da maioria dos leitores? se o leitor não conseguir concordar que se expuseram argumentos bastante fortes a favor da existência da ilha-continente de Platão, ele há-de pelo menos admitir que o mero interesse do assunto é suficientemente intrigante para permitir que se levantem hipóteses a seu favor. Mas o escritor afirma corajosamente que existe uma base de factos indisputáveis nas raízes da teoria da Atlântida, e defende que, em face a uma quantidade de testemunhos como aquela que reuniu, é simplesmente infantil a recusa em acreditar nos principais detalhes da História contada por Platão.
Pois o facto de a narrativa de Platão se fundar em evidências materiais, históricas ou tradicionais, ou de proveniência ainda mais antiga, é evidente pela possibilidade de equiparar as afirmações feitas nesse relato, em termos de geografia e costumes, com as regiões vizinhas. É possível pegar no relato de Platão sobre a Atlântida, fragmento a fragmento, e comparar as afirmações nele feitas com dados históricos e arqueológicos semelhantes, até à completa vindicação da sua narrativa.
E que se diga desde já que Platão não pretendia que o seu relato das questões atlantes fosse alegórico ou mítico. Há razões para encarar a sua narrativa como mais definitivamente relacionada com factos do que, por exemplo, a «Historia Britonum» de Geoffrey of Monmouth, na qual o minério puro da História é misturado com a tradição. É indubitável que Platão recebeu as suas informações de fonte egípcia, e não há mais razões para duvidar da veracidade da sua narrativa do que para duvidar da veracidade de qualquer outro relato da antiguidade em que a História se confunda com a tradição.
É hoje reconhecido que a tradição, se usada com salvaguardas suficientes, é tão capaz de proporcionar ao historiador dados fiáveis como as melhores evidências documentais certificadas. Em anos recentes vimos a figura do nosso Artur britânico, em tempos vaga e misteriosa, emergir lentamente das neblinas da lenda e assumir qualidades e aparência de humanidade. O escritor lembra-se ainda de quando Menes, o primeiro rei da primeira dinastia do Egipto, era encarado como puramente mítico, enquanto hoje se sabe que existiu realmente e teve precursores bastante numerosos. No preciso mês em que estas linhas estão a ser escritas, surgem-nos da Síria evidências extraordinárias sobre a descoberta de uma escultura da cabeça de Cristo, datada do Século II, e sobre a descoberta na versão de Josephus em cirílico russo de um retrato do grande fundador da Cristandade, que, juntos, destroem completamente os argumentos dos que procuraram provar o carácter mítico do nosso Redentor. Também durante este mês se provou conclusivamente que os corpos de Pedro e Paulo jazem de facto sob o pavimento da Igreja de São Pedro, em Roma. Todos recordamos a forma como nos rimos do ocapia “mítico” de Sir Harry Johnstone, antes de este ser encontrado, morto e empalhado para exposição, e como troçamos do bicho-preguiça gigante de Mr. Hesketh Pritchard, até esse notável viajante descobrir o seu covil e um grande pedaço da sua pele na Patagónia. Tudo isto eram “tradições” para uns, verdades para outros.
A ideia de uma Atlântida conforme a descrita por Platão foi recebida com desdém por gerações de arqueólogos, simplesmente por não ter sobrevivido qualquer evidência documental directa da sua existência. Mas será razoável esperar a existência de evidências documentais directas de uma civilização que desapareceu completamente há mais de onze mil anos? É evidente que se deve recorrer a outro tipo de provas, que não as documentais, para justificar a existência de uma cultura como esta. Encontram-se, porventura, nos países que devem ter sido contíguos à Atlântida, vestígios da civilização que Platão delineia de modo tão impreciso? Será demonstrado que aquilo a que o escritor chama “o complexo atlante” revela uma associação de costumes, ritos e tradições que, no que diz respeito à sua amálgama de condições peculiares, não se encontra em mais nenhuma parte do globo excepto na área que se estende entre as costas da Europa Ocidental e da América Oriental. Nas zonas costeiras destes países, e nos seus postos avançados insulares, é possível localizar um complexo cultural cuja existência separada demonstra claramente que deve ter emanado de alguma região no Atlântico que já não existe.
O escritor está convencido de que será através deste modo de tratar a tradição da Atlântida que a sua veracidade será, em última análise, fundamentada. A teoria atlante sofreu danos consideráveis com as reivindicações loucas de entusiastas e, talvez, com os esforços muitas vezes excessivamente entusiásticos do próprio escritor. Mas abordá-la da mesma forma que certos arqueólogos abordam, por exemplo, os problemas da pré-história é adoptar um método extraordinariamente vão e fútil pois, como já se disse, só com a ajuda da imaginação e de processos inspiradores podemos alguma vez deslindar um problema de tamanha peculiaridade e de tão extraordinária complexidade. As grandes descobertas arqueológicas em terra são frequentemente feitas por acidente, como no caso das descobertas históricas de Cro-Magnon e Mas d’Azil. Mas esperar que o oceano restitua os seus segredos é esperar pela eternidade. Espero pois que os arqueólogos, profissionais ou não, não olhem com demasiada antipatia para uma busca que ainda tem de tactear entre métodos, e de arriscar muitos disparates e muito empirismo antes de descobrir os instrumentos particularmente aplicáveis às suas necessidades. Nenhum cientista troça agora daquilo que podem parecer os métodos loucos através dos quais gerações de alquimistas edificaram a ciência química e a guiaram a um porto seguro entre as ciências exactas, e admite-se livremente que ainda estamos na fase “alquímica” da Arqueologia atlante. O arqueólogo profissional pode encontrar nesta história uma centena de coisas que lhe despertem desdém e aversão. Pode, e possivelmente fá-lo-á, negar-lhe o próprio nome de História. Se o fizer, não me sentirei de todo desconcertado, pois estou convencido de que o mais louco dos palpites, muitas vezes, chega tão perto do alvo como a mais cautelosa das afirmações, quando se está a lidar com questões profundas. Não porque eu deseje multiplicar ou encorajar o método do acaso na esfera particular da Arqueologia atlante, mas porque simpatizo muito com aquele amigo de Edison que, quando o inventor lhe disse que não existia nenhum solvente para o ácido úrico, regressou ao seu laboratório, misturou todas as drogas que lá possuía com o desagradável veneno — e descobriu que onze delas conseguiam dissolvê-lo.
E é tudo quanto ao método. Temos agora de levar em consideração a narrativa de Platão sobre a Atlântida e de a comparar depois com outras alusões clássicas posteriores à misteriosa ilha-continente no Atlântico.