Segundo a doutrina oficial, que é quase universalmente aceite e considerada justa e admirável, os Estados Unidos têm legitimidade para conduzirem uma guerra terrorista contra os afegãos até que eles entreguem os suspeitos pretendidos por Washington, que recusa fornecer provas ou pedir a extradição desses suspeitos ou, segundo as últimas declarações de Sir Michael Boyce, até que substituam os seus dirigentes. Bem, quem quer que não seja um hipócrita no sentido dos Evangelhos concluirá imediatamente, portanto, que o Haiti tem legitimidade para conduzir acções terroristas em grande escala contra os Estados Unidos até que lhe seja entregue um assassino, Emmanuel Constant, que já foi condenado por chefiar forças terroristas responsáveis pela morte de quatro ou cinco mil pessoas.
Neste caso, não há nada a dizer acerca de provas. As autoridades haitianas pediram repetidas vezes a extradição de Constant, a última vez em 30 de Setembro de 2001, mesmo no meio de toda a retórica sobre o Afeganistão ser sujeito a acções terroristas se não entregasse determinados presumíveis terroristas. Claro que, no caso de Constant, trata-se apenas de quatro ou cinco mil pretos. Aposto que não se acha que sejam muitos.
Ou talvez os haitianos devessem empreender acções terroristas em massa nos Estados Unidos. Como não dispõem de bombas talvez pudessem recorrer ao bioterrorismo ou algo assim, não sei, até que os Estados Unidos mudem os seus governantes que são, de facto, responsáveis por terríveis crimes contra o povo do Haiti durante todo o Século XX.
Mantendo-nos nos truísmos morais, certamente que a Nicarágua tem legitimidade para fazer o mesmo, eventualmente tomando como alvo os dirigentes da redeclarada Guerra contra o terrorismo, que, em muitos casos, são os mesmos que a atacaram. Recorde-se que o ataque terrorista contra a Nicarágua foi mesmo muito mais grave do que o 11 de Setembro; foram mortas dezenas de milhares de pessoas, o país foi devastado e talvez nunca mais recupere.
Este exemplo costuma ser incontroverso pelo que não vale a pena apresentar argumentos sobre o caso. E é incontroverso devido à decisão do Tribunal Mundial que condenou os Estados Unidos por terrorismo internacional, apoiado numa resolução do Conselho de Segurança da ONU que dirigia um apelo a todos os Estados para que respeitassem o Direito Internacional — resolução que não mencionava ninguém em particular, embora toda a gente soubesse quem era o destinatário, e que foi vetada pelos Estados Unidos (com a abstenção da Grã-Bretanha). Também a Assembleia Geral, em sucessivas resoluções, confirmou a mesma coisa, com a oposição dos Estados Unidos e de mais um ou dois estados clientes. O Tribunal Mundial ordenou aos Estados Unidos que acabassem com o crime do terrorismo internacional e pagassem indemnizações. Os Estados Unidos responderam com uma decisão apoiada pelos dois partidos para intensificar o ataque imediatamente; já referi a reacção dos Meios de Comunicação Social. Tudo isto continuou até o cancro ser destruído e ainda hoje continua.
Assim, em Novembro de 2001 realizaram-se eleições na Nicarágua, em plena Guerra contra o terrorismo, e os Estados Unidos intervieram radicalmente, avisando a Nicarágua de que não aceitariam o resultado errado e até disseram porquê. A Secretaria de Estado norte-americana explicou que não se pode ignorar o papel da Nicarágua no terrorismo internacional na década de 1980, quando resistiu ao ataque terrorista internacional que provocou depois a condenação dos Estados Unidos, pelas mais altas autoridades internacionais, por terrorismo internacional.
Tudo isto se passou sem comentários, numa cultura intelectual que é simplesmente dedicada, com paixão, ao terrorismo e à hipocrisia. Pode olhar-se e ver-se como tudo isto foi tratado nos Estados Unidos. Incidentalmente, também pode experimentar-se pôr em prática a teoria da «guerra justa» neste caso incontroverso.