CIA: Operação Butane

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Entrevista de Victor Marchetti a um jornal
Entrevista de Victor Marchetti a um jornal

Richard Helms não gostava muito de pedir ajuda à Casa Branca, mas em Março de 1972 um problema de segurança da CIA obrigou-o a pedi-la pessoalmente ao próprio Richard Nixon. Um antigo analista, especialista em questões da União Soviética e ajudante do director, chamado Victor Marchetti, tinha-se demitido e, juntamente com um amigo, decidira escrever um livro.

Já em 1965 dois jornalistas de WashingtonThomas Ross e David Wise, tinham provocado graves problemas à CIA ao escrever o livro «The Invisible Government». Escrito num tom claramente hostil, Wise e Ross criticavam a falta de clareza de um organismo governamental sob responsabilidade do Congresso e do Senado. O assunto acabou num escândalo monumental quando a editora e os autores deram conta de que a CIA conseguira de modo fraudulento uma cópia das provas do livro. Com a publicação do livro de Marchetti acontecia o mesmo. A 12 de Março de 1972 um agente da CIA tinha conseguido uma cópia do livro e enviara-a para Langley. Os primeiros a ler o livro foram Lawrence Houston, conselheiro-geral da CIA, e o seu subordinado imediato, John WarnerHouston propôs ao DCI Richard Helms a apreensão da obra, “por todos os meios possíveis”. O primeiro passo lógico teria sido apresentar uma acção judicial nesse sentido ao Departamento de Justiça, mas naquele momento o director estava muito debilitado devido à demissão de John Mitchell para tomar a seu cargo a Comissão para a Reeleição do Presidente (Nixon), e Richard Kleindienst estava à espera da confirmação do Senado.

Richard Helms decidiu então falar directamente com o presidente Nixon para que este lhe garantisse que o Departamento de Justiça trataria o caso como um “problema sério” para a segurança nacional dos Estados Unidos da América.

Nixon ouviu os argumentos de Helms e, depois de lhe prometer o apoio da Casa Branca, disse ao DCI que devia falar com John EhrlichmanHelms reuniu-se com o poderoso conselheiro presidencial e voltou a explicar-lhe o assunto.

Victor Marchetti
Victor Marchetti

— Marchetti está em posição de revelar segredos muito importantes — disse Helms.

— Como o quê? — perguntou Ehrlichman interessado.

— Por exemplo, em 1965 a CIA contratou um grupo de escaladores especialistas para instalar um pequeno gerador nuclear no cume do Nanda Devi. Com isso podemos monitorizar o programa de mísseis chinês.

— Ainda está operacional? – perguntou o conselheiro da Casa Branca.

— Não. No inverno de 1966 o combustível do gerador, um U-238, esteve sujeito a baixas temperaturas e deixou de funcionar. Não o conseguimos recuperar até Janeiro deste ano [1972] — disse Helms.

— Que problemas nos poderia causar? — perguntou Ehrlichman.

— Se Marchetti publica esta história no seu livro, criar-nos-á um problema com o governo indiano. É possível que o gerador perdesse plutónio e contaminasse de alguma forma as águas do Ganges, o rio sagrado dos hindus. Este é apenas um dos segredos que Marchetti pode revelar no livro e garanto-lhe que conhece muitos devido à sua posição na CIA — respondeu o DCI.

Victor L. Marchetti serviu no Exército dos EUA no início da década de 1950. Pouco depois conseguiu licenciar-se em “estudos soviéticos” pela Universidade Estatal da Pensilvânia e quando completou os estudos, por simples desejo de aventura, decidiu juntar-se à CIA.

Entre 1966 e 1969 trabalhou como analista de assuntos soviéticos directamente com o pessoal do director da CIARichard Helms. Durante a década de sessenta Marchetti já estava desiludido com o que via na instituição e por fim, em 1969, decidiu demitir-se quando ocupava o cargo de assistente do subdirector da CIA. Dois anos depois o antigo analista escreveu o romance «The Rope Dancer», ainda que com pouco êxito, mas o escândalo surgiria com a obra seguinte.

Com o escritor John MarksMarchetti escreveria o livro «A CIA» e o «Culto da Espionagem», onde reflectia claramente e pela primeira vez sobre políticas e operações da CIAAlfred Knopf, editor do livro, chegou a dizer dele: “Será o primeiro livro na história norte-americana a passar uma censura prévia por parte do Governo.”

O co-autor, John Marks, nunca trabalhara para a CIA, mas para o Departamento de Estado, de 1966 a 1970, e como analista tinha feito parte do pessoal do director de Espionagem desse departamento. Em 1979 John Marks tornou-se bastante célebre quando publicou «The Searchfor the Manchurian CandidateThe CIA and Mind ControlThe Secret History of the Behavioral Sciences». Para escrever este livro Marks baseou-se nos primeiros documentos tornados públicos sobre o projecto MKUltra e as experiências da CIA com drogas alucinogénicas.

CIA reclamou então uma censura prévia, defendendo-se com o acordo assinado por Victor Marchetti assim que entrou na instituição. Entretanto, o analista defendia-se com a Primeira Emenda da Constituição, acusando a CIA de tentar censurar o direito à informação. Por fim o assunto acabou nos tribunais.

A CIA não tinha nenhum interesse em que o caso chegasse ao Supremo Tribunal, ao passo que Marchetti sabia que, se o seu caso fosse ouvido no Supremo Tribunal, as vendas do livro disparariam. O tribunal decidiu, após estudar as alegações de ambas as partes, não seguir com o caso e Victor Marchetti viu-se obrigado a entregar o original à CIA antes da publicação.

Em referência a este livro, o próprio presidente Richard Nixon definiu-o nas suas memórias como “uma inquietação visível no rosto do DCI Richard Helms. Sobre a publicação de um livro por parte de dois agentes desertores da CIA [John Marks não era agente da CIA], Helms chegou a perguntar-me se seria possível aprovar uma acção legal da CIA. De facto, estudou-se uma possível “supressão”. Eu disse-lhe que talvez fosse possível”

Na primeira revisão por parte da CIA, o manuscrito original de Victor Marchetti e John Marks sofreu cerca de 350 “eliminações”, desde simples palavras a parágrafos e páginas inteiras.

A pedido de Marchetti, de Marks, do editor e dos advogados, a CIA aceitou voltar a rever o manuscrito. Desta vez as “eliminações” foram cerca de 200. Finalmente, o livro foi publicado em 1974, mas ocorreu a Knopf publicá-lo com as anotações e as indicações que os censores da CIA tinham utilizado no manuscrito original. Por exemplo, era possível começar a ler um capítulo e a meio encontrar uma página inteira em branco. Uma nota de autor indicava que essa “página” tinha sido censurada pela CIA, algo de que Langley não gostou.

Victor Marchetti declararia anos depois: “A CIA gostava de censurar livros, mas não gostava que o disséssemos ao povo norte-americano. Isso para eles [a CIA] não era decente, nem americano.”

Tanto Marks como Marchetti não entendiam por que motivo tinham sido censurados alguns parágrafos, como este: “A NSA apontou as suas antenas aos barcos soviéticos e às comunicações cubanas. A ITT operou no sistema de comunicações cubano antes da nacionalização por parte de Castro. A companhia [ITT] cooperou muito de perto com a CIA e com a NSA na intercepção de mensagens.”

Outro parágrafo eliminado do original dizia: “O vice-presidente Spiro Agnew proferiu um discurso apaixonado sobre como os sul-africanos, agora que tinham conseguido a independência, não permitiriam que ninguém à sua volta os pressionasse. Agnew comparou a África do Sul com os Estados Unidos da sua infância.”

Em 1983 saiu uma nova edição do livro, desta vez com 110 eliminações por parte da CIA, mas Marks e Marchetti juntaram um parágrafo ao fim do livro, algo de que William Casey, o então director da CIA durante a administração de Reagan, não gostou nada. O parágrafo dizia o seguinte: “É uma eficaz arma clandestina de poder, mais que uma organização de espionagem e contra-espionagem. E um instrumento de subversão, manipulação e violência para a intervenção secreta em assuntos de outros países.”

A frase, de 1963, era de Allen Dulles, director da CIA entre 1953 e 1961, e referia-se ao KGB, mas os autores do livro juntaram o seguinte: “A sua descrição era correcta, mas talvez [Allen Dulles] devesse ter usado os mesmos termos para descrever a CIA.”

23 de Março de 1972, por volta da uma da manhã, reuniram-se no sétimo andar do quartel-general da CIA em Langley altos responsáveis da instituição, incluindo o chefe do Departamento de Segurança e o próprio DCIRichard Helms. O motivo da reunião era Victor Marchetti.

Entrevista de Victor Marchetti (parte 2)
Entrevista de Victor Marchetti (parte 2)

Helms pediu opiniões sobre a figura de Marchetti, sobre o livro «A CIA» e o «Culto da Espionagem» e os problemas que este podia causar à segurança da Instituição. O primeiro a falar seria o chefe do Departamento de Segurança, que explicou que não era tanto os problemas que poderia provocar o conteúdo do livro mas os contactos que Marchetti poderia estabelecer assim que se soubesse da existência do manuscrito. “Ainda que nós [a CIA] possamos impedir a publicação do livro, não poderemos impedir que agentes do KGB ou de qualquer outro serviço de espionagem inimigo se ponham em contacto com Marchetti e lhe paguem por informações”, disse.

Ao fim da tarde Richard Helms tinha autorizado a operação Butane, que consistia na vigilância do próprio Marchetti para saber quais eram as suas actividades habituais, com quem se reunia, com que funcionários da CIA estabelecia contacto para reunir informação ou com que outros indivíduos se reunia a respeito do seu livro com o objectivo de publicar artigos em revistas para pôr as operações da CIA a descoberto.

24 de Março a operação Butane começou com a instalação por parte de agentes de segurança da CIA de microfones na residência do ex-agente, agora escritor. Dois dias depois a CIA deu parte ao DCI de que Victor Marchetti estabelecera contacto assíduo com outro “traidor” da instituição chamado Philip Agee.

Nascido em 1935Agee era um antigo agente de operações da CIA especialista em assuntos da América LatinaAgee ingressou na CIA em 1957 depois de se licenciar pela Universidade de Notre Dame. Entre 1963 e 1966 foi enviado para o posto do Uruguai com o propósito de apoiar desde Montevideu as operações contra Cuba. Em 1967 Philip Agee foi transferido para o posto do México, para dois anos depois apresentar a demissão da CIA.

Como primeira medida, Agee abandonou os EUA e num exílio voluntário por diversos países da América Latina e da Europa começou a redigir um livro que se tornaria uma bomba-relógio: «Inside the Company: CIA Diary». Por exemplo, Agee punha a descoberto vários agentes e funcionários da CIA e o modo como os países deviam tomar medidas para que eles deixassem de operar. No final revelava os nomes de 2500 agentes norte-americanos e trabalhadores estrangeiros que cooperavam com a CIA, principalmente na América Latina e na zona do Mediterrâneo. Um artigo assinado por Agee na revista Counter-Spy citava, entre outros, o nome de Richard Welch, como chefe do posto da CIA em Atenas.

Em Novembro de 1975 o jornal diário Athens News fez eco do artigo de Philip Agee na Counter-Spy e até publicou a imagem do espião da CIA a sair da embaixada dos Estados Unidos da América e a tomar café enquanto lia o jornal, perto da delegação diplomática. A 23 de Dezembro de 1975, quando entrava no carro no centro da capital grega, dois homens, que se identificaram como membros da Organização Revolucionária 17 de Novembro, deram-lhe seis tiros, provocando-lhe a morte instantânea.

Logo a seguir, um porta-voz da Counter-Spy declararia: “Se alguém procura um responsável pela morte de Welch, esse alguém é a CIA. Nós não queremos mais tiroteios.” Em resposta ao assassínio de Welch, o Congresso adoptou a chamada Lei Pública 97-200, que transformava em crime federal a revelação da identidade de pessoas envolvidas em actividades de espionagem norte-americanas.

Foi retirada a nacionalidade norte-americana a Philip Agee e o Supremo Tribunal votou a favor de lhe negar o passaporte dos EUA. Isto provocou a sua fuga para países como a Grã-Bretanha, a França, a Holanda e a Alemanha, de onde seria posteriormente expulso.

Capa do Livro «A CIA e o Culto da Espionagem» de Marchetti
Capa do Livro «A CIA e o Culto da Espionagem» de Marchetti

Durante uma das conversas gravadas pelos agentes da operação Butane, estes descobriram que Marchetti recomendava a Philip Agee um advogado chamado Melvin Wulf, que pertencia à União Americana de Liberdades CivisWulf estava já a trabalhar com Marchetti e Marks nas petições e recursos para poder publicar o livro «A CIA e o Culto da Espionagem» e agora dispunha-se a trabalhar para Philip Agee com vista à publicação do seu livro «Inside the Company: CIA Diary

Durante os vinte e oito dias que durou a operação Butane, até que o próprio Richard Helms telefonou ao director do Departamento de Segurança para dar por finalizada a vigilância sobre Victor LMarchetti, exactamente a 20 de Abril de 1972, os operacionais da CIA tinham conseguido gravar dezenas de horas de conversas privadas do ex-analista; tinham conseguido fotografar dezenas de jornalistas e intelectuais que se reuniram com Marchetti; tinham ficado a saber até ao mais ínfimo pormenor da vida privada não só de Victor Marchetti, mas também do escritor John Marks.

11 de Outubro de 1971, precisamente cinco meses antes do início da operação Butane, o próprio Victor Marchetti declararia à agência UPI para o US Nem and World Report. “Uma vez que os homens da CIA se acham super-patriotas, é natural pensar que de um certo ponto de vista os protestos violentos e os dissidentes são uma das maiores ameaças à nação, e o mais certo, conhecendo as reacções da CIA, é que esta tente lançar uma operação clandestina para se infiltrar nos grupos dissidentes.” Era evidente que Victor Marchetti não esperava que cinco meses depois a CIA, por ordem de Richard Helms, levaria a cabo uma operação clandestina contra ele, como aconteceu com a operação Butane.

Victor Marchetti, de 75 anos, vive hoje num bairro nos subúrbios de Washington, respondendo a centenas de mensagens de correio electrónico que lhe chegam todas as semanas e desfrutando dos três netos.

Philip Agee faleceria em Havana, a 7 de Janeiro de 2008, aos 72 anos. O anúncio oficial da sua morte seria realizado pelo jornal diário Granma, órgão do Partido Comunista de CubaAgee conseguiu encontrar refúgio na ilha caribenha de Granada, em 1980. Daí passaria para a Nicarágua, até que o governo sandinista caiu em 1990 e lhe foi retirado o passaporte. Obteria por fim nacionalidade alemã por via da mulher, a bailarina Giselle Roberge. Ambos viveram desde então em Hamburgo e em Havana. No ano 2000, criou uma agência de viagens em linha, cubalinda.com, de onde planeava viagens de norte-americanos a Cuba desafiando o embargo dos EUA.

Os dados relativos à operação Butane nas «Jóias de Família» encontram-se em Identification of Activities with Timbarassment Totential for the Agency Surveillance, com a data de 15 de Maio de 1973 (páginas 00026 a 00036); nas páginas 00301, 00306 e 00307; Memorandum for: The Director. Through: The Executive Director-Comptroller. Subject: CIA’s Domestic Activities. Reference: MAG Memorandum, «CIA’s Domestic Activities». March1971, com a data de Março de 1971 e assinado por The Management Advisory Group. Este memorando e os documentos anexos B, QDeE ocupam as páginas 00439, 00440, 00441 e 00442.

Fonte: LIVRO: «CIA – Jóias de Família» de Eric Frattini

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