Conflitos de Interesses na Assembleia da República (Introdução)

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Assembleia da República Portuguesa, 2009
Assembleia da República Portuguesa, 2009

“O senhor primeiro-ministro protege-se com o silêncio, mas proponho-lhe um exercício muito simples. Imagine que fechamos numa sala uma galinha e uma vaca e aparece um ovo. Quem é que pôs o ovo, senhor primeiro-ministro?”

Por entre sonoras gargalhadas, alguém grita a partir da bancada parlamentar do PSD: “Foi o Bloco de Esquerda!”

A dúvida existencial do deputado Francisco Louçã destinava-se ao então primeiro-ministro Pedro Santana Lopes, no auge da polémica sobre o afastamento do comentador Marcelo Rebelo de Sousa da TVI, devido a alegadas pressões do poder político. Mas a alegoria de Louçã também pode ser adaptada ao fenómeno dos conflitos de interesses que parecem grassar na Assembleia da República (AR): deputados com ligações a interesses privados (a galinha) que, por sua vez, beneficiam – directa ou indirectamente – de iniciativas legislativas, subsídios públicos ou contratos adjudicados por entidades públicas visando a execução de obras, o fornecimento de produtos ou a prestação de serviços (o ovo).

Uma análise minuciosa aos registos de interesses dos deputados à AR permite identificar a galinha. Quanto ao ovo, isto é, eventuais proveitos obtidos por interesses privados, resulta de um complexo processo de cruzamento de dados: da informação sobre contratação pública agregada no portal «Base: Contratos Públicos Online» até aos actos publicados em Diário da República, passando pela actividade de empresas privadas e respectivos órgãos sociais e estruturas accionistas, entre outros elementos, nomeadamente os testemunhos dos deputados que aceitaram responder às questões que lhes foram endereçadas.

Mas afinal quem é que pôs o ovo? Todos os deputados contactados negaram a existência de conflitos de interesses resultantes da acumulação de funções na AR e em empresas privadas (ou de participações no capital social de empresas privadas). Aliás, alguns dos casos que iremos apresentar foram comunicados ao presidente da Comissão para a Ética, a Cidadania e a Comunicação (CPECC), o deputado José Mendes Bota, que respondeu por escrito no dia 3 de Dezembro de 2011: “Como é óbvio, não discutirei situações individuais na praça pública. A Comissão a que presido julgará da pertinência de se pronunciar ou não. Entendo que esta Comissão nem é um órgão de polícia dos Deputados, nem é um arquivo morto de declarações de impedimentos, incompatibilidades ou registo de interesses. A sua acção deve pautar-se pela serenidade, pelo bom senso, e pela defesa do cumprimento da lei e dos princípios éticos. E por isso que pugnarei.”

A CPECC acabou por não se pronunciar sobre os casos sinalizados. Persistem, no entanto, dúvidas em torno de putativos conflitos de interesses numa AR composta por uma maioria absoluta de deputados em «part-time». Do total de 230 deputados em funções, 117 optam pelo regime de acumulação. Na medida em que o exercício de actividade na função pública é incompatível com o exercício do mandato de deputado, por exclusão de parte, esses 117 deputados mantêm actividade profissional no sector privado. Não raras vezes, tal como demonstraremos em artigos posteriores, prestando serviços remunerados a empresas que operam em sectores de actividade fiscalizados no âmbito de comissões parlamentares que os mesmos deputados integram.

Advogados, juristas, consultores, gestores e administradores de empresas, engenheiros, médicos, mediadores de seguros, entre outras profissões. No caso dos advogados – a profissão mais representada na AR -, trata-se de uma zona cinzenta, quase imperscrutável, dado que apenas dois deputados, entre dezenas com cédula activa na Ordem dos Advogados, indicam no respectivo registo de interesses onde é que exercem a actividade. Em declarações à RTP, o próprio Mendes Bota, presidente da CPECC, defendeu a adopção do regime de exclusividade para todos os parlamentares e apontou o dedo aos deputados-advogados: «Esta classe apropriou-se dos lugares-chave dentro do Parlamento

Ao que se acrescem os cargos que ocupam em órgãos sociais de empresas (49 deputados) e as participações que detêm no capital social de empresas (70 deputados), inclusive em sociedades gestoras de participações sociais (SGPS). Empresas privadas que, em vários casos, não se coíbem de firmar contratos por ajuste directo com entidades públicas, participar em concursos públicos ou obter subsídios públicos, apesar do que estipula o Estatuto dos Deputados, no ponto 6, alínea a), do artigo 21.° (Impedimentos): é vedado aos deputados, em regime de acumulação, “no exercício de actividade de comércio ou indústria, directa ou indirectamente, com o cônjuge não separado de pessoas e bens, por si ou entidade em que detenha participação relevante e designadamente superior a 10% do capital social, celebrar contratos com o Estado e outras pessoas colectivas de direito público, participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, empreitadas ou concessões, abertos pelo Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.

Assembleia da República, vista do exterior
Assembleia da República, vista do exterior

São identificados, por exemplo, alguns casos de deputados que detêm participações entre 8 a 10% do capital social de empresas que celebraram contratos com o Estado, ao mesmo tempo que os accionistas exerciam funções na AR. Ou seja, no limiar do «impedimento» via artigo 21.°. Não por acaso, o BE propôs retirar esse limite de 10% através do Projecto de Lei n.° 329/XII/2.a, que visava «alterar o Estatuto dos Deputados, aditando novos impedimentos». Entre outras disposições, introduzia também a proibição de os deputados prestarem «serviços profissionais, de consultoria, assessoria e patrocínio de entidades privadas titulares de interesses opostos aos do Estado» – proposta que foi rejeitada, contudo, através de votação na generalidade na Reunião Plenária n.° 52 da AR: votos contra do PSD e CDS-PP; abstenção do PS; votos a favor do PCP, BE, PEV e dois deputados do PS.

No debate que antecedeu a votação, Teresa Anjinho, deputada do CDS-PP que possui uma participação de 5% no capital social da empresa Jorge Anjinho – Construção e Promoção Imobiliária (além de participações no capital de outras 12 empresas, nove das quais superiores a 10%, mas que pertencem ao marido, com quem está casada em regime de separação geral de bens), interveio contra as propostas do BE e do PCP. “As alterações que se propõem ao regime de incompatibilidades e impedimentos assumem um incompreensível espírito persecutório”, criticou.

No mesmo sentido apontou Sérgio Azevedo, deputado do PSD. “Rejeitamos liminarmente a ideia que VV. Exas. constantemente tendem a transmitir de que os deputados, todos os deputados, vivem numa situação permanente de promiscuidade com o sector privado e com o poder económico. Ou que actuam sempre em nome dos seus interesses pessoais, preterindo os interesses da República. VV. Exas., se me permitem, fazem-no de forma leviana, irresponsável e atentatória do bom nome das instituições. Instituições essas de que, curiosamente, VV. Exas. democraticamente também fazem parte”, argumentou.

Por sua vez, Sérgio Azevedo detém participações em três empresas: 80% do capital social da Companhia Neoclássica de Teatro Comediante Lda. (da qual é «gerente não remunerado»), 15% da Nisha Lda. (empresa de hotelaria e restauração, sediada em Moçambique) e 15% da AmbiGold InvestMoz Lda. (empresa de equipamentos e serviços, sediada em Moçambique).

“Mas também rejeitamos porque se pretende tornar o Parlamento num conjunto de funcionários partidários que não faria mais do que tornar a “casa da democracia” num sistema autista e fechado à dinâmica da nossa Sociedade. Queremos naturalmente um Parlamento forte. Mas um Parlamento forte só existe se existirem deputados fortes nas suas acções e convicções, mas também que lhes permitam partilhar da sua experiência, da sua vivência e do seu conhecimento real da Sociedade“, acrescentou.

No currículo do deputado Sérgio Azevedo, aos 31 anos de idade, encontramos os seguintes dados referentes a experiência académica e profissional: licenciatura em Ciências da Comunicação; frequência de licenciatura em Direito; quadro técnico superior da Empresa de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL); presidente da Assembleia de Freguesia do Sacramento; vogal da Concelhia de Lisboa do PSD; responsável de novos produtos, meios de pagamento e ocupações da via pública da EMEL; adjunto do vereador da Juventude e Serviços Gerais da Câmara Municipal de Lisboa; presidente da Secção IBaixa de Lisboa do PSD; membro do Conselho Nacional do PSD; presidente da Assembleia Distrital de Lisboa da JSD; vice-presidente da JSD; e presidente da Distrital de Lisboa da JSD.

Os apelos a um maior escrutínio sobre as incompatibilidades dos deputados não se cingem aos partidos da oposição. Além das declarações anteriormente referidas de Mendes Bota, também a direcção da JSD propôs recentemente ao primeiro-ministro Pedro Passos Coelho “a criação de um conselho de Ética, composto por ex-presidentes da Assembleia da República e pelo provedor de Justiça, para avaliar os impedimentos e as incompatibilidades dos deputados. Para Hugo Soares, a actual Comissão Parlamentar de Ética, responsável por tal avaliação “funciona infralei”, isto é, “o que faz é verificar a conformidade legal de um caso concreto”. “Há muita coisa legal, mas do ponto de vista ético merece a nossa reflexão”, afirma o líder da JSD“.

A sucessão de casos concretos que iremos descrever em artigos posteriores visa contribuir para essa reflexão, levantando questões quer ao nível jurídico quer nos planos ético e político.

Fonte: LIVRO: «Os Privilegiados» de Gustavo Sampaio

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