Embora os registos académicos publicados sejam irremediavelmente distorcidos, talvez o leitor acalente a esperança de que ainda haja um caminho que os doentes e os médicos possam usar para ter acesso aos resultados dos dados dos ensaios clínicos: os reguladores, que recebem grandes quantidades de dados provenientes das empresas da Indústria Farmacêutica durante o processo de aprovação, terão certamente a obrigação de proteger a segurança dos doentes? Mas isto, infelizmente, é mais outro exemplo de como os próprios organismos que nos deviam proteger faltaram aos seus compromissos para connosco.
Neste artigo, analisaremos três falhas fundamentais. Em primeiro lugar, os reguladores podem não dispor das informações. Em segundo lugar, o modo como “partilham” com médicos e doentes as informações dos ensaios clínicos é deficiente e mesquinho. E, finalmente, se pretendemos obter todas as informações que uma empresa forneceu — os Documentos na íntegra, onde os organismos de regulação estão muitas vezes enterrados —, os reguladores erguem estranhas barreiras, chegando a bloquear e a obscurecer, por vezes durante anos, fármacos que se revelaram ineficazes e prejudiciais. Nada daquilo que nos preparamos para lhe contar é de alguma forma tranquilizador.
Ponto Um: As informações são ocultadas dos reguladores
A paroxetina é um antidepressivo comummente utilizado, da classe dos fármacos conhecidos pelo nome de “inibidores selectivos de recaptação da serotonina” ou ISRS. Ouvirá falar mais desta classe de fármacos mais adiante mas, neste exemplo, usaremos a paroxetina para mostrar como as empresas têm explorado a nossa permissividade de longa data em relação aos dados em falta, e descoberto lacunas nas nossas regulações inadequadas sobre divulgação dos ensaios. Veremos que a GSK ocultou dados quer sobre a eficácia da paroxetina como antidepressivo quer sobre os seus efeitos secundários prejudiciais, mas, mais importante ainda, veremos que aquilo que fez era inteiramente legal.
Para compreender porquê, precisamos primeiro de entender as peculiaridades do processo de autorização de um fármaco. Os Fármacos não aparecem simplesmente no mercado para ser usados em todas as situações médicas: para um uso específico de um fármaco, numa doença específica, é necessário uma autorização de comercialização autónoma. Por conseguinte, um medicamento pode ser autorizado para tratar o carcinoma do ovário, por exemplo, mas não o cancro da mama. Não quer dizer que não resulte no cancro da mama.
Pode haver provas de que também é óptimo no tratamento dessa doença, mas talvez a empresa não se tenha dado ao trabalho e à despesa de conseguir uma autorização formal de comercialização para esse uso específico. Ainda assim, se quiserem, os médicos podem avançar e receitá-la para o cancro da mama, porque o fármaco está disponível para ser receitado, e nas farmácias há caixas dele à espera de serem vendidas (embora, para falar com propriedade, só tenha sido aprovado para o carcinoma do ovário). Nesta situação, o médico estará a receitá-lo legalmente, mas para utilização não contemplada na rotulagem (off-label).
É uma situação muito comum, porque conseguir uma autorização de introdução no mercado para um uso específico pode ser dispendioso e levar muito tempo. Se os médicos sabem que existe um fármaco que, em ensaios de boa qualidade, tem revelado ajudar a tratar uma doença, seria perverso e inútil não o receitarem, só porque a empresa não solicitou uma autorização formal para o comercializar para esse uso específico. Discutiremos os pormenores de tudo isto mais adiante. De momento, o que o leitor precisa de saber é que o uso de um fármaco em crianças é tratado como uma autorização de comercialização autónoma do seu uso em adultos.
Isto faz sentido em muitos casos, porque as crianças podem reagir a Medicamentos de forma muito diferente da dos adultos, pelo que os riscos e os benefícios podem ser muito diferentes, e a investigação tem de ser realizada separadamente em crianças. Mas esta peculiaridade da autorização também provoca algumas desvantagens. Conseguir uma licença para um uso específico é um empreendimento árduo, que exige muita burocracia e alguns estudos específicos. É amiúde tão dispendioso que as empresas não se dão ao trabalho de conseguir uma autorização específica para comercializar um fármaco para uso em crianças, porque o mercado costuma ser muito mais pequeno.
Porém, como vimos, se um medicamento está disponível num país para um fim específico, pode ser receitado para qualquer coisa. Portanto, não é invulgar um fármaco estar autorizado para uso em adultos mas ser receitado a crianças com base num palpite, ou num juízo de que não deve, pelo menos, fazer mal, ou em estudos que sugerem benefícios em crianças, mas que seriam provavelmente insuficientes para apresentar num processo formal específico de autorização de comercialização para uso em crianças, ou até em bons estudos, mas numa doença em que o mercado é tão pequeno que a empresa não se pode dar ao luxo de conseguir a respectiva autorização.
Os reguladores têm reconhecido que constitui um problema sério o uso off-label em crianças, sem investigação adequada. Por conseguinte, começaram a oferecer incentivos às empresas para a realização dessas investigações e o pedido formal de autorização. Os incentivos são extensões de patente e podem ser lucrativos. Todos os Medicamentos passam ao domínio público uma década depois de serem introduzidos no mercado, tal como o paracetamol, que qualquer pessoa pode fabricar muito barato. Se for concedida a uma empresa uma extensão de seis meses para um fármaco, para todos os usos, ela pode fazer muito mais dinheiro com esse medicamento. Parece um bom exemplo de pragmatismo e de pensamento criativo por parte dos reguladores quanto às cenouras que podem oferecer. Por si só, o uso autorizado em crianças não renderá provavelmente muito à empresa, porque os médicos já receitam o medicamento a crianças, mesmo sem autorização ou provas, simplesmente porque não existe outra opção. Entretanto, mais seis meses de duração da patente para um fármaco de sucesso pode ser muito lucrativo, se o mercado dos adultos for suficientemente grande.
Discute-se muito se as empresas da Indústria Farmacêutica fizeram jogo limpo no que se refere a estas ofertas. Desde que a FDA começou a oferecer estes incentivos, uma centena de Fármacos obteve licenças para uso em pediatria, mas muitos destinavam-se a doenças não muito comuns em crianças, como úlceras de estômago ou artrite. Tem havido muito menos pedidos para Medicamentos menos lucrativos que podiam ser usados em crianças, como os Fármacos mais modernos designados “produtos biológicos de molécula grande”. Mas é assim que as coisas são.
Quando a GSK apresentou um pedido de autorização de comercialização da paroxetina em crianças, surgiu à luz do dia uma situação extraordinária que desencadeou a investigação mais demorada na história da regulação de Medicamentos no Reino Unido. Essa investigação foi publicada em 2008 e incidia sobre se a GSK deveria ser acusada criminalmente. Ficou a saber-se que aquilo que a empresa tinha feito — ocultar dados importantes sobre segurança e eficácia que médicos e doentes necessitavam claramente de conhecer — era contra a ética e punha em risco crianças em todo o mundo; mas as nossas leis são tão fracas que a GSK não pôde ser acusada de qualquer crime.
Entre 1994 e 2002, a GSK realizou nove ensaios de paroxetina em crianças. Os primeiros dois não conseguiram demonstrar qualquer benefício, mas a empresa não fez nenhuma tentativa de informar ninguém disto, alterando o folheto que é enviado a todos os médicos e doentes. Com efeito, depois da realização destes ensaios, um documento interno da empresa afirmava: “seria comercialmente inaceitável incluir uma declaração de que a eficácia não tinha sido demonstrada, pois isso prejudicaria o perfil da paroxetina“. No ano a seguir a este memorando interno secreto, foram passadas 32.000 receitas de paroxetina para crianças só no Reino Unido: portanto, a empresa, embora soubesse que o fármaco não resultava em crianças, não teve pressa em informar os médicos do facto, apesar de saber que um grande número de crianças estava a tomar o medicamento. Nos anos que se seguiram, realizaram-se mais ensaios — nove no total —, e nenhum demonstrou a eficácia do fármaco no tratamento da depressão em crianças.
Mas agora vem o pior. Essas crianças não estavam apenas a tomar um medicamento que a empresa sabia que não resultava nelas: também estavam a ser expostas a efeitos secundários. Isto devia ser óbvio só por si, porque qualquer tratamento eficaz terá alguns efeitos secundários, e os médicos têm-nos em conta, bem como aos benefícios (que, neste caso, não existiam). Mas ninguém sabia a que ponto estes efeitos secundários eram maus, porque a empresa não informou os médicos, nem os doentes, nem sequer o regulador sobre os dados de segurança preocupantes apurados nos seus ensaios. E isto aconteceu devido a uma lacuna: a empresa só tem de informar o regulador dos efeitos secundários registados em estudos sobre os usos específicos para que o fármaco está autorizado. Como o uso da paroxetina em crianças era off-label, a GSK não era legalmente obrigada a informar ninguém do que descobrira.
Há muito que as pessoas se preocupavam com a possibilidade de a paroxetina aumentar o risco de suicídio, embora seja um efeito secundário difícil de detectar num antidepressivo, pois as pessoas deprimidas correm um risco muito maior de suicídio do que a população em geral, em consequência da sua depressão. Também há alguns motivos para acreditar que, se os doentes começam a sair da sua depressão e deixam para trás a falta de motivação que muitas vezes acompanha a infelicidade profunda, pode haver um período durante o qual são mais capazes de cometer suicídio, apenas porque a depressão está em processo lento de desaparecimento.
Além disso, o suicídio é um acontecimento felizmente raro, o que significa que são precisos muitos doentes a tomar o medicamento para se poder detectar um risco acrescido. Acresce que o suicídio nem sempre é registado com precisão nas certidões de óbito, porque os médicos legistas e os médicos sentem relutância em pronunciar um veredicto que muitas pessoas consideram vergonhoso. Portanto, o sinal que se tenta detectar nos dados — o suicídio — vai estar corrompido. As ideias ou comportamentos suicidas que não se concretizam são mais comuns do que o suicídio, pelo que deviam ser mais fáceis de detectar, mas também são difíceis de identificar em dados recolhidos rotineiramente, porque não é vulgar serem apresentados aos médicos e, quando o são, estão codificados de diversas formas em fichas médicas, se é que estão. Devido a todas estas dificuldades, teríamos querido dispor de todos os fragmentos de dados que pudéssemos juntar sobre a questão de saber se estes Medicamentos causam ideias ou comportamentos suicidas em crianças; e teríamos querido que muitas pessoas experientes, com uma vasta gama de competências, os analisassem e discutissem.
Em Fevereiro de 2003, a GSK enviou espontaneamente à MHRA um maço de informações sobre o risco de suicídio em doentes a tomarem paroxetina, contendo algumas análises elaboradas em 2002 dos dados referentes a efeitos adversos apurados nos ensaios realizados pela empresa ao longo da década anterior. Esta análise mostrava que não havia risco acrescido de suicídio. Mas era enganadora: embora não tivesse sido claro na época, os dados dos ensaios com crianças tinham sido misturados com os dos ensaios em adultos, com um número muitíssimo maior de participantes. Em consequência, diluíra-se completamente qualquer indício de risco acrescido de suicídio em crianças a tomar paroxetina.
No mesmo ano, mas mais tarde, a GSK reuniu com a MHRA para discutir outro assunto relacionado com a paroxetina. No fim dessa reunião, os representantes da empresa entregaram um documento informativo, explicando que a empresa estava a planear apresentar ainda nesse ano uma autorização de introdução no mercado para uso da paroxetina em crianças. Aquando da entrega desse documento, mencionaram que a MHRA talvez devesse considerar uma preocupação de segurança de que a empresa se apercebera: um risco acrescido de suicídio entre as crianças com depressão tratadas com paroxetina, em comparação com as que tomavam um placebo.
Tratava-se da apresentação, com um espantoso atraso, de uma forma casual, através de um canal inteiramente inapropriado e não oficial, de dados sobre efeitos secundários de importância vital. A GSK sabia que o fármaco estava a ser receitado a crianças e sabia da existência de preocupações de segurança nesse grupo etário, mas optara por não revelar essas informações. Quando partilhou os dados, não os apresentou como um perigo claro decorrente da utilização do fármaco, que exigia uma atenção urgente do departamento responsável do regulador; ao invés, integrou-os numa curta reunião informal sobre um futuro pedido de autorização. Embora os dados tivessem sido transmitidos a uma equipa que não era a indicada, o pessoal da MHRA presente nessa reunião teve a inteligência de detectar um novo e importante problema. Seguiu-se uma grande azáfama: realizaram-se análises e, um mês depois, foi enviada a todos os médicos uma circular aconselhando-os a não receitarem paroxetina a doentes com menos de dezoito anos.
Como é possível que os nossos sistemas destinados a recolher dados das empresas de Indústria Farmacêutica sejam deficientes ao ponto de ocultarem informações de vital importância que mostram que um fármaco, além de ineficaz, é activamente perigoso? Levantam-se aqui dois tipos de problemas: em primeiro lugar, o acesso dos reguladores; em segundo, o acesso dos médicos.
Não há dúvida de que as regulações contêm lacunas ridículas, e é assustador ver como a GSK as explorou jovialmente. Como referimos, a empresa não tinha nenhuma obrigação legal de fornecer as informações porque a prescrição do fármaco a crianças não se incluía no uso formalmente autorizado da paroxetina, embora a GSK soubesse que esse uso pediátrico se tinha generalizado. Com efeito, dos nove estudos realizados pela empresa, só os resultados de um foram comunicados à MHRA, porque só esse se realizara no Reino Unido.
Depois deste episódio, a MHRA e a União Europeia modificaram algumas das suas regulações, mas não de modo adequado. As empresas passaram a ser obrigadas a comunicar os dados de segurança para os usos off-label de um fármaco; mas, ridiculamente, os ensaios realizados fora da União Europeia ainda estão isentos dessa obrigação.
Levanta-se aqui um problema fundamental, que está sempre a surgir: precisamos de todos os dados para podermos saber o que se está a passar com os benefícios, e os riscos, de um fármaco. Alguns dos ensaios realizados pela GSK foram parcialmente publicados, mas é óbvio que isso não basta: já sabemos que somos induzidos em erro quando dispomos apenas de uma amostra enviesada dos dados. Mas também precisamos de todos os dados pela muito simples razão de que precisamos de muitos dados: é frequente os sinais de segurança serem fracos, subtis e difíceis de detectar. As ideias e os planos suicidas são raros em crianças — mesmo nas que sofrem de depressão e mesmo nas que tomam paroxetina —, pelo que é necessário juntar todos os dados de um grande número de participantes até se conseguir detectar o sinal no meio do ruído. No caso da paroxetina, os perigos só se tomaram aparentes quando os efeitos adversos de todos os ensaios foram reunidos e analisados em conjunto.
Isso leva-nos à segunda falha óbvia no actual sistema: os resultados destes dados (de segurança e de eficácia) são fornecidos em segredo ao regulador, que depois se senta e toma tranquilamente uma decisão. É um enorme problema, porque são precisos muitos olhos para perscrutar estes difíceis problemas. Não creio que as pessoas que trabalham na MHRA sejam más ou incompetentes: conheço muitas, e são inteligentes e boas pessoas. Mas não devíamos confiar nelas para analisarem os dados sozinhas, do mesmo modo que não devíamos confiar numa única organização para analisar os dados sozinha, sem ninguém a olhar-lhe por cima do ombro, a controlar o trabalho, a competir, a fazer críticas úteis, a apressá-la, etc.
É ainda pior do que os académicos não partilharem os dados prévios de investigação, porque pelo menos num artigo académico temos muitos pormenores sobre o que foi feito, e como. A produção de um regulador limita-se muitas vezes a um sumário seco e sucinto: quase um “sim” ou um “não” sobre os efeitos secundários. Isto é o oposto de Ciência, que só é fiável porque todos mostram o seu trabalho, explicam como sabem que uma coisa é eficaz ou segura, partilham métodos e resultados, e permitem que outros decidam se concordam com a maneira como trabalharam e analisaram os dados.
Contudo, no que toca à segurança e eficácia dos Medicamentos, uma das análises mais importantes que se faz em Ciência, voltamos completamente as costas a este processo: permitimos que aconteça à porta fechada, porque as empresas da Indústria Farmacêutica decidiram que querem partilhar os resultados dos seus ensaios, discretamente, com os reguladores. Por conseguinte, a tarefa mais importante na medicina baseada na evidência, é um perfeito exemplo de um problema que beneficia de muitos olhos e de muitas cabeças, é levada a cabo no isolamento e em segredo.
Este secretismo perverso e malsão afecta os próprios reguladores. O NICE, o National Institute for Health and Clinical Excellence do Reino Unido, está encarregado de elaborar recomendações sobre o custo-eficácia dos Medicamentos, e sobre qual resulta melhor. Ao fazê-lo, encontra-se no mesmo barco que o leitor ou nós: não está legalmente autorizado a ver os dados sobre segurança ou eficácia de um medicamento, se a empresa não lhos quiser fornecer, mesmo que os reguladores possuam todos os dados. Em consequência, é possível dar ao NICE amostras de dados distorcidas, corrigidas e enviesadas, não só sobre o funcionamento de um fármaco mas também sobre as probabilidades de ter efeitos secundários indesejáveis.
Às vezes, o NICE consegue aceder a alguns dados adicionais e não publicados: são informações que os médicos e doentes não estão autorizados a ver, apesar de os primeiros irem tomar decisões sobre se devem ou não receitar os Medicamentos e os segundos serem as pessoas que os estão a tomar. Mas quando o NICE consegue essas informações junto das empresas, elas vêm muitas vezes com severas restrições de confidencialidade, dando origem à publicação de alguns Documentos muito estranhos. Adiante pode ver, por exemplo, o documento do NICE sobre se é boa ideia receitar Lucentis, um fármaco extremamente dispendioso, que custa bem mais do que 1000 libras por tratamento, e que é injectado no olho para tratar uma doença chamada degenerescência macular aguda.
Como pode ver, o documento do NICE sobre este tratamento está censurado. Além de os dados sobre a eficácia do tratamento terem sido eliminados por esses rectângulos grossos pretos, caso algum médico ou doente os queira ver, até, e de um modo absurdo, estão em falta os nomes de alguns ensaios, impedindo o leitor de conhecer a sua existência ou de cruzar informações sobre eles. O aspecto mais perturbador, como pode ver no segundo parágrafo do último ponto, é a censura dos dados sobre efeitos adversos. É uma situação perfeitamente comum, e reproduzo toda a página aqui porque penso que, se não o fizesse, o leitor podia não acreditar por a achar demasiado estranha.
Porque não deveríamos nós todos — médicos, doentes e NICE aceder gratuitamente a toda esta informação? Foi o que perguntamos em 2010 tanto a Kent Woods, da MHRA, como a Hans Georg Eichler, director clínico da Agência Europeia de Medicamentos. Ambos, separadamente, deram a mesma resposta: não se pode deixar que pessoas de fora das agências vejam esta informação, porque podem interpretá-la mal, deliberadamente ou por incompetência. Ambos, separadamente embora eu ache que devem conversar em festas —, suscitaram questão da vacina SPR (sarampo, papeira e rubéola) como exemplo clássico de como os média podem inventar um pânico nacional baseado em provas de má qualidade, criando problemas perigosos de Saúde pública pelo caminho. E se divulgassem dados brutos de segurança, e as pessoas que não os sabem analisar adequadamente descobrissem padrões imaginários e criassem rumores alarmistas que afastassem dos doentes de Medicamentos que salvam vidas?
Aceito que se trata de um risco, mas também acredito que as suas prioridades estão erradas: penso que são enormes as vantagens de muitos olhos a trabalharem neste problema de importância vital, e que a possibilidade de aparecerem alguns alarmistas irracionais não é desculpa para se ocultarem dados. As empresas da Indústria Farmacêutica e os reguladores também afirmam que já é possível obter todas as informações de que se necessita nos sites de Internet dos reguladores, na forma de resumos.
Veremos a seguir que não é verdade.
Ponto Dois: os reguladores dificultam o acesso aos dados de que dispõem
Quando são criticadas, as empresas da Indústria Farmacêutica mostram-se muitas vezes indignadas e declaram que já partilham dados em quantidade suficiente para informar médicos e doentes. “Entregamos tudo ao regulador”, afirmam, “e podem ir lá buscá-los.” Na mesma linha, os reguladores insistem em que só temos de procurar no seu site de Internet, e descobriremos com facilidade todos os dados de que necessitamos. Na realidade, é um jogo confuso em que médicos e académicos, nas suas tentativas de descobrir todos os dados sobre um fármaco, são forçados a andar de um lado para o outro, a respigar informações não só difíceis de encontrar como repletas de erros fatais.
Em primeiro lugar, como já vimos, os reguladores não têm todos os ensaios, e não partilham todos os que têm. Existem resumos dos primeiros ensaios utilizados para introduzir um fármaco no mercado, mas só para os seus usos específicos autorizados. Mesmo quando recebe dados de segurança para usos off-label (na sequência do caso da paroxetina atrás relatado), o regulador não disponibiliza publicamente informações desses ensaios: estas limitam-se a ficar guardadas nos arquivos do regulador.
A duloxetina, por exemplo, é outro fármaco do grupo ISRS, de uso generalizado e normalmente receitado como antidepressivo. No decurso de um ensaio sobre o seu uso para uma finalidade completamente diferente (tratamento da incontinência), parece ter havido vários suicídios. São informações importantes e interessantes, e a FDA teve em conta a pertinência destes dados: realizou uma revisão sobre o assunto, e chegou a uma conclusão sobre se o risco era ou não significativo. Mas nada disto se pode ver no site de Internet da FDA porque a duloxetina nunca obteve autorização de uso no tratamento da incontinência. Os dados do ensaio só foram usados pela FDA na sua ruminação interna. Situações como estas são vulgares.
Porém, mesmo quando somos autorizados a consultar resultados de ensaios na posse dos reguladores, é extremamente complicado extrair estas informações dos seus sites públicos na Internet. As funções de procura no site da FDA são, no essencial, más, enquanto o conteúdo é aleatório e desorganizado, com imensas falhas e muito pouca informação que nos permita apurar se um ensaio foi sensível a enviesamento de delineamento. Mais uma vez, neste caso devido em parte a irreflexão e incompetência casuais, é impossível aceder às informações básicas de que necessitamos. As empresas da Indústria Farmacêutica e os reguladores dizem que não é verdade, que, se procurarmos nos seus sites de Internet, está lá tudo. Vamos lá então percorrer rapidamente esse caminho em toda a sua exasperante glória. O caso que vamos usar foi publicado há três anos na JAMA como um exemplo eloquente do estado a que chegou o site da FDA na Internet: em 2012, nada tinha mudado.
Digamos, então, que queremos encontrar os resultados de todos os ensaios na posse da FDA de um fármaco chamado pregabalina, em que o medicamento foi usado para tratar a dor de diabéticos com os nervos afectados pela sua doença (a chamada “neuropatia periférica diabética”). Queremos a revisão da FDA sobre este uso específico, um documento PDF contendo todos os ensaios num grande embrulho. Mas se procurarmos “pregabalin review“, por exemplo, no site da FDA, aparecem-nos centenas de Documentos: nenhum deles tem um título claro e nenhum deles é o documento de revisão da FDA sobre a pregabalina. Se introduzirmos o número de depósito, o único identificador do documento da FDA que andamos a procurar, o site não nos dá absolutamente nada.
Se tivermos sorte, ou formos espertos, acabamos na página Drugs@FDA: se digitarmos “pregabalin” na página, aparecem-nos três “FDA applications“. Porquê três? Porque existem três Documentos diferentes, cada um sobre um problema diferente em que a pregabalina pode ser usada como tratamento. Como o site da FDA não nos informa a que problema corresponde qualquer desses três Documentos, temos de o descobrir por tentativa e erro, o que não é tão fácil como parece. Temos à nossa frente o documento correcto para a pregabalina e a neuropatia periférica diabética: são quase quatrocentas páginas, mas só nos diz que é sobre a neuropatia periférica diabética na página 19. Não há nenhum sumário no início — na verdade, não existe página de título, nem página de índice, nem tão-pouco qualquer indício daquilo que o documento trata, além de que salta aleatoriamente de um sub-documento a outro, todos digitalizados e amontoados no mesmo ficheiro gigantesco.
Se o leitor for um barra da informática, há-de pensar que todos esses ficheiros são electrónicos e que são em formato PDF, um tipo de ficheiro especialmente concebido para facilitar a partilha de documentos electrónicos. Qualquer barra da informática sabe que é fácil encontrar qualquer coisa num ficheiro electrónico: basta usar o comando “find“. Neste caso, digita-se “peripheral neuropathy“, e o computador encontra logo a expressão. Mas não: ao contrário de quase todos os outros documentos governamentais sérios do mundo, os PDF da FDA são uma série de fotografias de páginas de texto, e não o próprio texto. Isto significa que não podemos procurar automaticamente uma frase. Ao invés, temos de percorrer laboriosamente o documento todo, com os olhos, à procura dessa frase.
Podiamos continuar. E vamos fazê-lo. Existe uma espécie de “página de índice” na página 17, mas com os números de páginas errados. Agora acabamos. Não há qualquer razão para este obscurecimento e este caos. Estes problemas não são provocados por questões técnicas específicas dos ensaios, e a sua correcção não custaria praticamente nada em termos de dinheiro. Tudo isto é pura e simplesmente inútil, e esperemos que seja só motivado pela irreflexão.
É uma tragédia porque, se conseguir desenterrar finalmente o dito documento, e descodificá-lo, descobrirá que está repleto de “pérolas” aterradoras: exemplos perfeitos de situações em que uma empresa da Indústria Farmacêutica utilizou métodos estatísticos aldrabados para delinear e analisar um estudo, de tal modo que este está predestinado, desde o início, a exagerar os benefícios do fármaco.
Por exemplo, nos cinco ensaios sobre a pregabalina e a dor, houve muitos doentes que abandonaram o estudo enquanto decorria. Esta desistência é comum em ensaios clínicos, como veremos em breve, e ocorre muitas vezes porque as pessoas descobriram que o medicamento é inútil ou que tem efeitos secundários desagradáveis. No decurso desses ensaios, a dor é medida a intervalos regulares. Mas, se algumas pessoas desistem, surge uma importante questão: que tipo de pontuação da dor se deve usar para essas pessoas nos resultados? Ao fim e ao cabo, é mais provável que os desistentes se tenham dado mal com o medicamento.
A Pfizer decidiu usar um método chamado “Última Observação Realizada” (ou LOCF, de Last Observation Carried Forward), que significa exactamente aquilo de que está à espera: pega-se na última medição da gravidade da dor enquanto os doentes estavam a tomar o medicamento, imediatamente antes de abandonarem o estudo, e transfere-se esse valor para as restantes medidas de dor que não foram realizadas, depois de os doentes terem deixado de ir às consultas de seguimento.
A FDA não concordou: chamou a atenção, muito correctamente, para o facto de a estratégia da Pfizer contribuir para que o medicamento parecesse melhor do que realmente era. Seria mais justo partir-se do princípio de que os desistentes deixaram de tomar o medicamento devido aos efeitos secundários, pelo que a sua pontuação da dor deveria reflectir essa realidade — ou seja, o fármaco nunca lhes traria qualquer benefício num uso normal. Por conseguinte, o nível correcto de dor que deveria ser registado no caso deles é a sua dor no início do estudo, antes de terem tido qualquer tipo de tratamento (se lhe interessa, chama-se a isto “Observação Basal” (ou BOCF, de Baseline Observation Carried Forward). A análise foi devidamente refeita, de modo adequado, tendo fornecido uma imagem mais modesta e mais precisa dos benefícios do fármaco. Neste caso, apurou-se que a utilização do método da “Última Observação Realizada” sobrestimava a melhoria da dor em cerca de um quarto.
Cá está a manha. Quatro dos cinco ensaios foram posteriormente publicados na literatura académica sujeita a revisão por pares, o site onde os médicos procuram provas sobre se um medicamento resulta ou não (um dos ensaios nem sequer foi publicado). Todas as análises publicadas utilizavam a “Última Observação Realizada“, o tal método aldrabado que exagera os benefícios do medicamento. Nenhuma das análises reconheceu tratar-se de uma técnica que sobrestima esses benefícios.
Percebe-se por que motivo é importante termos acesso a todas as informações que podemos recolher sobre cada ensaio: além dos que nos são ocultados na íntegra, há outros que contêm, muitas vezes, falhas metodológicas escondidas. Os pormenores é que são o busílis, e existem muitos ensaios trapaceiros, como veremos adiante, com falhas que podem não ser claras nem sequer em artigos académicos, e muito menos nos sumários breves e pouco informativos dos reguladores. Além disso, como também veremos adiante, é frequente haver discrepâncias preocupantes entre os documentos de síntese dos reguladores e o que realmente aconteceu no ensaio.
É por isso que necessitamos de ter acesso a um documento mais pormenorizado sobre cada ensaio, o chamado Relatório de Estudo Clínico (ou CSR, de Clinical Study Report). São Documentos extensos, às vezes com milhares de páginas, mas suficientemente completos para o leitor reconstruir com exactidão o que aconteceu a todos os participantes; e permitem-lhe descobrir todos os segredos da coisa. Como as empresas da Indústria Farmacêutica entregam este relatório ao regulador (embora ainda só no caso dos usos formalmente autorizados de um fármaco), tanto a empresa como o regulador possuem uma cópia, e ambos deverão ter muito prazer em lha facultar.
Vamos ver agora o que acontece quando esse documento lhes é solicitado.
Ponto Três: Os reguladores ocultam os relatórios de estudo que estão na sua posse
Em 2007, investigadores do Nordie Coehrane Centre estavam a trabalhar numa revisão sistemática de dois Medicamentos amplamente utilizados para a perda de peso, o orlistat e o rimonabant. Como sabe, uma revisão sistemática é o resumo por excelência da evidência sobre a eficácia de um tratamento. Salva vidas, porque nos fornece os melhores conhecimentos possíveis sobre os verdadeiros efeitos de um tratamento, incluindo os efeitos secundários. A sua realização, porém, exige acesso a toda a evidência existente: se falta alguma, sobretudo se os dados negativos são deliberadamente difíceis de obter, ficamos com uma imagem distorcida da realidade.
Os investigadores sabiam que os dados dos ensaios que conseguiram encontrar na literatura académica publicada eram provavelmente incompletos, porque é costume os ensaios negativos não serem publicados. Mas também sabiam que a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) teria grande parte dessas informações, uma vez que os fabricantes de Medicamentos são obrigados a entregar os relatórios dos estudos ao regulador para obter uma autorização de introdução no mercado do medicamento. Como se espera que os reguladores actuem nos interesses dos doentes, os investigadores solicitaram à EMA os protocolos e relatórios de estudo. Fizeram-no em Junho de 2007.
Em Agosto, a EMA respondeu: tinha decidido não lhes entregar os relatórios de estudo desses ensaios, e invocava o capítulo do seu regulamento que lhe permite proteger os interesses comerciais e a propriedade intelectual das empresas da Indústria Farmacêutica. Os investigadores responderam imediatamente, quase na volta do correio: não havia nos relatórios de estudo nada que prejudicasse a protecção dos interesses comerciais de seja quem for, explicavam. Mas, caso houvesse, será que a EMA se importava de explicar porque haveriam os interesses comerciais das empresas da Indústria Farmacêutica de se sobrepor ao bem-estar dos doentes?
Neste momento, devíamos parar um momento e reflectir no que anda a EMA a fazer. E o regulador que aprova e monitoriza Medicamentos em toda a Europa, com a finalidade de proteger o público. Os médicos e os doentes só podem tomar decisões significativas sobre tratamentos se tiverem acesso a todos os dados. A EMA tem-nos mas decidiu que os interesses das empresas eram mais importantes. Tendo falado com muitas pessoas que trabalham na regulação, podemos adiantar uma sugestão sobre aquilo que lhes passa pela cabeça. Diz-nos a nossa experiência que os reguladores se preocupam com a ideia de que vêem todos os dados e de que os utilizam para tomar decisões sobre se um fármaco deve ou não ser comercializado, e isso chega: os médicos e os doentes não precisam de os ver porque os reguladores já fizeram todo esse trabalho.
Esta atitude interpreta mal uma diferença crucial entre as decisões tomadas pelos reguladores e as decisões tomadas pelos médicos. Ao contrário do que alguns reguladores parecem ter em mente, um medicamento não é nem “bom” — e, portanto, no mercado — nem “mau” — e, portanto, fora dele. Um regulador toma uma decisão sobre se é do interesse da população no seu todo que o medicamento esteja disponível para uso, “sim ou não”, sempre — mesmo que só em certas circunstâncias muito obscuras, pouco frequentes e com muita cautela. Essa fasquia é colocada muito baixo, como veremos, e muitos Medicamentos que estão no mercado (na verdade, a esmagadora maioria) poucas vezes são usados.
Um médico precisa de usar a mesma informação a que o regulador tem acesso para tomar uma decisão muito diferente: este medicamento será o indicado para o doente que tenho à minha frente neste momento? O simples facto de um medicamento ser aprovado para ser receitado não quer dizer que seja particularmente bom, ou o melhor. Com efeito, em cada situação clínica, há que tomar decisões complexas sobre que medicamento é melhor. Talvez o doente não tenha conseguido melhorar com um determinado medicamento, e o médico queira experimentar outro, de outra classe de fármacos; talvez o doente sofra de problemas renais ligeiros, e o médico não queira usar o medicamento mais popular porque provoca muitos problemas ocasionais em doentes com problemas renais; talvez queira um medicamento que não interfira com outros que o doente está a tomar.
Estas considerações complexas constituem os motivos pelos quais concordamos com a existência de uma gama de Medicamentos no mercado: ainda que alguns sejam menos úteis em geral, podem ser úteis em circunstâncias específicas. Mas necessitamos de poder ver todas as informações sobre eles, para podermos tomar estas decisões. Não basta que os reguladores afirmem majestosamente que aprovaram um medicamento e que, portanto, nos devemos sentir todos felizes por um receitá-lo. Os médicos e os doentes precisam dos dados tanto quanto os reguladores.
Em Setembro de 2007, a EMA confirmou junto dos investigadores da Cochrane que não iria partilhar os relatórios de estudo sobre o orlistat e o rimonabant, e explicou que tinha uma Política de nunca revelar os dados entregues como parte integrante de um processo de autorização de introdução no mercado. Surgiu um grave problema. Esses Medicamentos para a perda de peso estavam a ser amplamente receitados em toda a Europa, mas os médicos e os doentes não conseguiam aceder a informações importantes sobre o modo como funcionavam, a gravidade dos efeitos secundários, qual deles era o mais eficaz e mais uma série de outras questões importantes. Devido a esta falta de informação reforçada pela EMA, doentes reais estavam a ser expostos a danos potenciais, nas decisões quotidianas de prescrição desses Medicamentos.
Os investigadores recorreram ao Provedor de Justiça Europeu, apresentando duas alegações claras. Em primeiro lugar, a EMA não tinha fornecido razões suficientes para lhes recusar o acesso aos dados, e, em segundo, a declaração sintética de que os interesses comerciais deviam ser protegidos não se justificava, porquanto não existia nos resultados dos ensaios material com interesse comercial, além dos dados sobre segurança e eficácia, a que médicos e doentes necessitam obviamente de aceder. Não o sabiam nesse momento, mas tratava-se do início de uma batalha em tomo dos dados que iria envergonhar a EMA e durar mais de três anos.
A EMA demorou quatro meses a responder e, ao longo do ano que se seguiu, não fez mais que reiterar a sua posição: em seu entender, qualquer tipo de informação cuja divulgação pudesse “irracionalmente lesar ou prejudicar os interesses comerciais de indivíduos ou empresas” era comercialmente confidencial. Segundo a EMA, os relatórios de estudo podiam conter informações sobre os planos comerciais para os fármacos. Os investigadores responderam que tal era pouco provável, mas que, se o fosse, a importância era marginal tendo em conta o contexto muito mais importante e premente em que se integrava: “Como consequência provável da posição da EMA, os doentes podem morrer desnecessariamente e ser tratados com fármacos inferiores e potencialmente prejudiciais.” Consideravam a posição da EMA eticamente indefensável. Além disso, afirmavam, a EMA tinha um conflito de interesses claro: os dados poderiam ser usados para contestar a sua perspectiva sobre os benefícios e riscos desses tratamentos. A EMA não conseguia explicar por que motivo o acesso de médicos e doentes aos relatórios e protocolos dos estudos poderia prejudicar os interesses comerciais razoáveis de fosse quem fosse, e por que motivo esses interesses comerciais eram mais importantes do que o bem-estar dos doentes.
Foi então que, quase dois anos depois do início deste processo, a EMA mudou de táctica. De repente, começou a argumentar que os relatórios de estudo continham dados pessoais dos doentes envolvidos. Esse argumento ainda não tinha sido apresentado pela EMA, mas também é falso. É possível que houvesse algumas informações em algumas secções inteiras dos relatórios de estudo que pormenorizassem algumas reacções estranhas ou possíveis efeitos secundários de alguns participantes individuais, mas estavam todas no mesmo apêndice, que podia ser facilmente retirado.
As conclusões do Provedor de Justiça Europeu foram claras: a EMA não cumprira a sua obrigação de fornecer explicações adequadas ou sequer coerentes dos motivos pelos quais estava a recusar o acesso a essas importantes informações. Tirou uma primeira conclusão de má gestão. Depois de o fazer, não era obrigado a fornecer mais opiniões sobre as desculpas débeis apresentadas pela EMA, mas decidiu fazê-lo mesmo assim. O seu relatório é esmagador. A EMA falhara redondamente na resposta a uma séria acusação de que a sua recusa de informação sobre esses ensaios contrariava o interesse público e expunha doentes a prejuízos. O Provedor de Justiça também descrevia como estudara pessoalmente, e em pormenor, os relatórios de estudo e como descobrira que estes não continham quaisquer informações comercialmente confidenciais nem quaisquer pormenores desenvolvimento comercial dos Medicamentos. As alegações da EMA de que a anuência ao pedido lhe exigiria uma sobrecarga administrativa excessiva eram falsas, pois a agência sobrestimara o trabalho que isso teria envolvido: especificamente, explicava o Provedor, seria fácil remover quaisquer dados pessoais, nos sítios onde apareciam ocasionalmente.
O Provedor de Justiça disse à EMA que entregasse os dados ou que desse uma explicação convincente do motivo por que não o fazia. De forma surpreendente, a agência, o regulador dos Medicamentos que abrange toda a Europa, continuou a recusar-se a entregar os Documentos. Durante esse período, houve decerto pessoas que sofreram desnecessariamente, e é provável que algumas também tenham morrido, apenas por falta de informação. Mas o comportamento da EMA ainda se deteriorou mais, deslizando para uma situação abertamente surreal. Argumentava a agência que qualquer fragmento de informação acerca do que a empresa pensava sobre o modo de realizar o ensaio, que pudesse ser intuído a partir da leitura dos relatórios de estudo e dos protocolos, era comercialmente sensível no que dizia respeito às suas ideias e planos. Segundo a EMA, isto aplicava-se até aos Fármacos já no mercado, e as informações provinham dos ensaios clínicos finais, mesmo no fim do processo comercial de desenvolvimento do fármaco. Os investigadores responderam que isso era perverso: sabiam que os dados retidos costumam ser negativos, pelo que era menos provável que qualquer empresa informada de dados negativos sobre esses Medicamentos tentasse comercializar um medicamento rival, se lhe parecesse que os benefícios dos Medicamentos eram mais modestos do que inicialmente se pensava.
Porém, as coisas não ficaram por aí. A EMA também refutou altaneiramente a ideia de que havia vidas em risco, afirmando que, nessa matéria, o ónus da prova cabia aos investigadores. Para nós, esta atitude é, perdoe-nos o leitor, algo desdenhosa, sobretudo se se tiver em conta o que relataremos no próximo parágrafo. É pura verdade que, se os médicos e os doentes não conseguem avaliar qual é o melhor tratamento, tomarão decisões piores, expondo doentes a danos desnecessários. Além disso, é óbvio que um número muito maior de académicos a emitirem juízos transparentes sobre dados de ensaios publicamente acessíveis constitui uma maneira muito mais sensata de determinar os riscos e benefícios de uma intervenção do que um seco “sim ou não” global e um sumário de um regulador. Isto é verdade para Medicamentos como o orlistat e o rimonabant, mas também é verdade para qualquer medicamento, e veremos muitos casos em que os académicos detectaram problemas com Medicamentos que tinham escapado aos reguladores.
Então, em 2009, um dos dois Medicamentos, o rimonabant, foi retirado do mercado, por aumentar o risco de problemas psiquiátricos graves e de suicídio. Isto passou-se enquanto a EMA argumentava que os investigadores não tinham razão em afirmar que a recusa de informações estava a prejudicar doentes.
E foi então que a EMA declarou que o próprio delineamento de um ensaio aleatório constituía informação comercialmente confidencial.
Caso seja necessário voltar a falar no assunto, recordo-lhe que o primeiro ensaio surge na Bíblia (Daniel 1:12) e, embora as ideias se tenham certamente refinado desde então, todos os ensaios são, no essencial, experiências idênticas, transversais a todos os domínios, tendo as bases do ensaio moderno sido esboçadas há pelo menos meio século.
Não faz qualquer sentido afirmar realisticamente que o delineamento de um ensaio aleatório controlado constitui uma peça de propriedade intelectual, comercialmente confidencial ou patenteável.
Passara a ser uma farsa. Os investigadores despejaram o saco. A EMA estava a violar a Declaração de Helsínquia, o código internacional de ética médica, que afirma que todos os indivíduos envolvidos em investigação têm o dever de tomar públicos os resultados dos ensaios. Os investigadores sabiam que os artigos publicados divulgavam um subconjunto lisonjeiro dos dados do ensaio, e a EMA também o sabia. Continuariam a morrer doentes se a EMA continuasse a reter dados. Não havia nessas informações nada com grande valor comercial. Os curtos sumários de dados que a EMA divulgara eram inexactos. A EMA era cúmplice na exploração de doentes para obtenção de lucros.
Estava-se em Agosto de 2009, e os investigadores lutavam havia mais de dois anos para aceder a dados sobre dois Fármacos amplamente receitados, dados esses que estavam na posse da própria organização que devia proteger os doentes e o público. Não estavam sozinhos nessa luta. A revista francesa Prescrire também estava a tentar obter os Documentos da EMA sobre o rimonabant. Enviaram-lhe alguns Documentos sem qualquer préstimo, incluindo o notável “Relatório Final de Avaliação“, da agência sueca que tratara da aprovação do fármaco muito tempo antes. É possível ler online a sua versão integral em formato PDF. Ou melhor, não é. Na imagem a seguir, pode ver exactamente o aspecto que tinha o documento contendo a análise científica do medicamento que a EMA enviou a uma das publicações médicas mais prestigiadas de França. Penso que conta uma história bem clara; a acrescer ao insulto, há mais sessenta páginas iguais a esta, no total.
Entretanto, a Autoridade Médica Dinamarquesa tinha entregado mais de cinquenta e seis relatórios de estudo à Cochrane (embora ainda estivessem em falta mais, da EMA); uma queixa da empresa da Indústria Farmacêutica sobre esta questão tinha sido rejeitada pelo governo dinamarquês, que não via nenhum problema relacionado com informações comerciais (não havia nenhuma), nem com sobrecarga administrativa (era mínima), nem com a ideia de que o delineamento de um ensaio aleatório era informação comercial (o que dá vontade de rir). Era o caos. A EMA — que, como o leitor há-de estar lembrado, era responsável pela EudraCT, o instrumento de transparência que estava a ser mantido em segredo — estava a ficar numa situação delicadíssima. Parecia disposta a fazer fosse o que fosse para ocultar de médicos e doentes essas informações. Como veremos, esse nível de secretismo é o seu comportamento usual.
Chegamos agora ao fim desta história concreta envolvendo a EMA. A agência entregou os relatórios de estudo finais, na íntegra, ao Provedor de Justiça, recordando-lhe que até o índice de cada um deles era comercial. A opinião final do Provedor não tardou depois de os Documentos estarem nas suas mãos. Não continham nenhuns dados comerciais, nem informações confidenciais sobre doentes. Entreguem-nos ao público, já. A EMA, a um ritmo glacial, acordou um prazo para entregar os dados aos investigadores, médicos e doentes que necessitassem deles. A decisão final do Provedor foi publicada em finais de Novembro de 2010.™ A queixa inicial tinha sido apresentada em Junho de 2007. Tinham sido três anos e meio de lutas, obstruções e argumentos falaciosos por parte da EMA, período durante o qual um dos Medicamentos foi retirado do mercado por estar a fazer mal a doentes.
Após o estabelecimento deste precedente, os investigadores da Cochrane aperceberam-se de que estavam em boa posição para solicitarem mais relatórios de estudo, pelo que começaram a fazê-lo. A primeira área em que tentaram recolher mais documentação foi a dos anti-depressivos. Era um bom ponto de partida pois estes Fármacos têm sido, nos últimos anos, o foco de alguns comportamentos particularmente maus (embora devamos recordar que a questão dos dados em falta se estende a todos os cantos da medicina). O que aconteceu a seguir foi ainda mais estranho do que a batalha de três anos com a EMA por causa da ocultação de informações sobre o orlistat e o rimonabant.
Os investigadores apresentaram o seu pedido à EMA, mas foi-lhes dito que os Fármacos tinham sido aprovados numa época em que as autorizações de introdução no mercado eram concedidas pelos países , individualmente, e não centralmente pela EMA. Essas autorizações locais eram, posteriormente, “copiadas” para todos os países. Como era a MHRA, o regulador dos Medicamentos no Reino Unido, que detinha as informações que os investigadores queriam, teriam de a contactar para obterem uma cópia. Com o devido respeito, os investigadores escreveram à MHRA, solicitando os relatórios sobre um fármaco chamado fluxetina, e depois esperaram pacientemente. A resposta lá veio: a MHRA explicava que teria todo o gosto em disponibilizar-lhes essas informações, mas que havia um problema.
Os Documentos tinham sido todos destruídos.
Isto tinha a ver, explicava a MRHA, com a política de conservação da agência: os documentos só eram conservados se tivessem um interesse particular (científico, histórico ou político), e esses ficheiros não cumpriam tais critérios. Paremos um momento para reflectir sobre quais deveriam ser os critérios. No que toca aos antidepressivos ISRS, tem havido muitos escândalos sobre ocultação de dados, o que só por si deveria bastar, mas, se recuarmos ao início deste capítulo, um deles, a paroxetina, esteve envolvido numa investigação sem precedentes, durante quatro anos, sobre a possibilidade de a GSK ser acusada criminalmente. Essa investigação da paroxetina foi a maior investigação que a MHRA realizou sobre segurança de Medicamentos: aliás, foi a maior investigação de qualquer tipo realizada pela MHRA. Além disso, esses relatórios de estudo originais contêm dados de importância vital sobre segurança e eficácia. Mas a MHRA destruiu-os mesmo assim, considerando que não tinham suficiente interesse científico, histórico ou político.
Fiquemo-nos por aqui.
O que se pode fazer?
O ICMJE devia cumprir as suas promessas, a União Europeia devia ser menos ridícula e o FDA Amendment Act 2007 devia ser aplicado com rigor. Mas, como nos esperam muito mais decepções, o meu plano de acção sobre dados em falta será retomado mais adiante.