Depois dos déspotas iluminados, eis os capitalistas preocupados com o interesse geral

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Interesse dos capitalistas
Interesse dos capitalistas

Keynes tem um último trunfo na manga: a moralização do capitalismo. Evoluindo num meio intelectual e crítico, integrou a noção do interesse geral. É difícil censurá-lo. Isso leva-o às noções de honestidade, de integridade, de dever, etc. É incontestavelmente melhor do que os autores que fazem louvores à rapacidade dos capitalistas.

Somente a sua ideia do interesse geral é a do capitalismo. É necessário, portanto, que este funcione em condições normais; com a procura do seu interesse próprio, mas em “harmonia” com o peditório dos outros; com a motivação do ganho, mas não desprezando a situação dos seus assalariados e dos seus concorrentes. Assim, escreve ele em 1923: “A doutrina económica dos lucros normais, doutrina vagamente apercebida por todos e cada um, é indispensável à justificação do capitalismo. O homem de negócios não é tolerável senão enquanto os seus ganhos possam ser considerados como tendo uma certa relação com o que corresponde grosseiramente à utilidade das suas actividades para a Sociedade [1]“.

Isto conduz, como o fazem muitos keynesianos hoje, a distinguir no seio dos capitalistas duas categorias: grosseiramente, os bons e os maus. Os primeiros são aqueles que investem, os industriais que se preocupam com a legalidade dos seus actos, e que eventualmente introduzem códigos éticos. Os segundos são os especuladores, os patrões ávidos, que não recuam perante nada por um ganho, desdenhando as leis, os outros, a moral. Portanto, é preciso conceder vantagens aos primeiros. É um dos papéis do Estado, composto, ele próprio, por homens íntegros e movidos por este interesse geral. Em termos que Keynes não utilizou, mas que outros avançam: favorecer o capitalismo industrial em relação ao capitalismo financeiro. Desta maneira, deveria poder ser assegurado o crescimento perpétuo.

De novo, podemos pôr em dúvida a pertinência de uma tal análise. Em primeiro lugar, a questão da moralidade é muitas vezes apanágio de uma Sociedade bem estabelecida. Com efeito, é quando se está instalado no cume, que se pode pensar em ser generoso. É mesmo uma estratégia inteligente, porque é uma maneira de fidelizar clientes que poderão ser úteis numa ou noutra ocasião (em caso de contestação do seu poder, por exemplo). Em contrapartida, aqueles que querem subir na escala social, têm todo o interesse em meter no armário os seus escrúpulos e a sua eventual ética, porque precisarão provavelmente de caminhar sobre cadáveres para vencer.

Portanto, são sobretudo as circunstâncias e a posição sócio-económica que determinam a maneira positiva ou não de funcionar, e não as ideias pessoais (embora elas possam também influenciar). O capitalismo é antes de tudo um sistema fundado sobre a razão do mais forte, como o eram antes dele o esclavagismo, o feudalismo ou outras sociedades de classe. O que é específico, é que o poder não provém do poderio individual, do renome da família ou do luxo exibido, mas sim da capacidade de acumular dinheiro, quer dizer, do capital. Um tal regime não pode ser moral, ético, generoso por essência.

Não pode haver aí normalidade. Não há benefício aceitável, É aquele que acumula mais que dita a sua lei, pouco importa a maneira como ele adquiriu a sua fortuna (salvo se um concorrente puder accionar o aparelho judicial para lhe contestar a legalidade). Se ele tiver vantagem em precarizar o trabalho, ou, até, em externalizar, em deslocalizar para o México, a Europa de Leste ou um Estado asiático, cuidado com os capitalistas que não se conformam com isso! Se o capital colocado na Bolsa render mais do que na indústria, desgraçadas das empresas que não tiverem um departamento financeiro para aproveitar esse maná!

Os keynesianos podem reconhecer estes factos e este lado ávido inexorável sob o capitalismo, mas eles chamam o Estado para controlar, regular e impedir que seja a rapacidade a dominar o mundo. O problema é que não se consegue fugir à situação em que é o banqueiro que fiscaliza as sociedades financeiras. Os dirigentes políticos saíram do mesmo viveiro onde foram gerados os capitalistas. São educados da mesma maneira. Têm uma ideologia similar e, hoje, encontram-se nos mesmos think tanks [2] onde se discutem e mesmo se elaboram as grandes orientações para a Sociedade de amanhã. Do mesmo modo Keynes, no seu tempo, fazia parte de numerosos clubes privados em que se encontravam a alta sociedade ou os membros da elite mais influentes. Por outro lado, numerosos homens do governo passam, depois da sua carreira “ao serviço do Estado“, para o conselho de administração de uma ou outra grande companhia.

Enfim, é cómodo designar os maus capitalistas, os rapaces, como responsáveis das crises. Os keynesianos não vão tão longe ao ponto de nomear os culpados. Eles pensam antes que é um sistema. Foi uma especulação desenfreada nos anos 20 que provocou o crash de 1929. É um frenesim imobiliário que leva ao afundamento dos subprimes.

O problema é que, com esta interpretação, não se compreende porque é que toda a actividade produtiva se encontra paralisada. Se fosse um fenómeno somente da Bolsa, bastaria fechar as praças financeiras e fazer com que as empresas fossem financiadas pelos bancos públicos. Se não fosse senão uma catástrofe imobiliária, deveria ser possível limitá-la e impedir que ela gangrene o resto da economia. Seria sem dúvida necessário enfrentar interesses particulares opostos a este género de medidas. Mas isso seria no interesse geral do capitalismo…

É aí que se compreende que se deve inverter a perspectiva. A finança e a especulação não se desenvolvem como derivações do capitalismo “normal”, mas porque satisfazem os objectivos ou necessidades desse sistema num determinado momento. Hoje, vê-se que os Estados Unidos funcionaram a crédito desde o princípio dos anos 80 e que este endividamento privado engendrou todo um mecanismo financeiro cada vez mais complexo, mas indispensável para gerar os capitais e a liquidez do país. Se isto não tivesse existido, o consumo americano teria sido muito menos forte e portanto o crescimento teria sido fraco ou mesmo negativo.

É verdade que a crise estalou na esfera mais especulativa. Nem pode ser de outra forma, pois é lá que os riscos são mais elevados. Somente, a recessão repercute-se sobre os outros sectores, porque a especulação tinha uma função específica no sistema, a de assegurar os empréstimos às famílias para o seu consumo. Assim, se ela estala, não é a explosão de uma simples bolha que vai empanar as finanças por causa de alguns investimentos infelizes. É todo um mecanismo que cai em parafuso e, portanto, também as condições do funcionamento do capitalismo actual. O capital que se arrisca é todo o conjunto do sistema e não um qualquer excesso, mesmo se, para além disso, os excessos existem.

Isso conduz-nos à nossa explicação ligada ao segundo esquema acima. Se a crise for engendrada pelas duas tendências sublinhadas – a saber: a de aumentar relativamente os lucros em relação aos salários e a de investir mais do que consumir –, vemos os limites de um capitalismo controlado, jugulado, desembaraçado dos seus desvios de rumo. Poder-se-á, com efeito, agir sobre as duas tendências naturais do capitalismo? É caso para duvidar.

A primeira tendência está ligada à luta de classes. Ora esta é muitas vezes, no capitalismo, vantajosa para os patrões. Eles dispõem de mais meios, entre os quais o aparelho do Estado (governo, justiça polícia, exército…) para atingir os seus fins. No entanto, em certas circunstâncias, é possível que os trabalhadores obtenham vitórias, mesmo importantes.

Foi assim a seguir à Segunda Guerra Mundial. A situação era tal que a burguesia da época aceitou, em numerosos Estados, um sistema de segurança social muito avançado, mecanismos de progressividade de impostos muito desenvolvidos, medidas de nacionalização de empresas e de planificação da economia nunca vistos anteriormente. Resultou daí uma estabilidade bastante longa na repartição dos rendimentos entre assalariados e capitalistas. Isto favoreceu certamente o mais importante crescimento da história da humanidade na maior parte dos países, nomeadamente na Europa, na Ásia e na América.

Esta experiência mostra portanto que é possível, mas somente em condições excepcionais, dominar um pouco este aspecto. Mas, desde que a relação de forças se incline de novo para o patronato, como no fim dos anos 70, vemos que este compromisso precário vacila imediatamente e a desigualdade volta naturalmente a dominar a situação.

Em contrapartida, é extremamente difícil, para não dizer impossível, manter uma regulamentação da segunda tendência, a saber: a de aumentar sem cessar o investimento, e portanto as forças produtivas, a um grau que ultrapassa largamente o que as populações podem comprar. Assim, um jornalista de Trends-tendances realça essa vontade, na indústria automóvel, de cada construtor aumentar as suas partes de mercado e, portanto, adaptar em consequência a sua produção. “Ora, escreve ele, basta actualmente adicionar todas as capacidades na praça, para compreender que seria necessário que o mercado atingisse 115 % ou 120 % em relação ao que é hoje, para satisfazer todo o mundo”. E pergunta como é possível enfrentar esta situação ao presidente da Ford Belgium da época, Allain Batty, que lhe responde: “Esse problema de sobre-capacidade pode também ser abordado de outra forma. Se nos mantivermos ao nível da capacidade global, podemos fazer este cálculo e dizer que dez fábricas terão que fechar as suas portas. Mas dez fábricas significa também a envergadura de um grande construtor! Portanto, isso não acontecerá desta forma. A noção de sobre-capacidade não é uma fatalidade. O futuro di-lo-á, e sobretudo os clientes o dirão, comprando o que lhes parece de melhor. Se você tem um produto que agrade, e aí está o verdadeiro desafio, deixará de falar em sobre-capacidade e poderá mesmo perspectivar aumentos de produção”. [3]

É interessante notar como este patrão dá a volta à questão macroeconómica da existência de sobre-capacidades globais, transformando-as num desafio individual de produzir ainda mais. E aí atingimos o fundo da justificação da anarquia capitalista: a produção não é justificada senão pela procura individual do produto (por empresa), pouco importando as consequências societárias como as sobre-capacidades, as recessões que elas podem engendrar, as perdas de emprego que elas podem gerar. É isso que não pode ser controlado, regulado, jugulado e é por isso que as crises são inevitáveis e aparecem periodicamente no capitalismo.

NOTAS:

[1] John Maynard Keynes, Ensaios sobre a moeda e a economia, Payot, Paris, 1972, p. 28.

[2] Um think tank (literalmente reservatório de ideias) é um conjunto mais ou menos informal de pessoas, muitos dos quais decisores, para debater problemas em comum. É a Trilateral, o Grupo Bilderberg, o Fórum de Davos

[3] Trends-tendances , 6 / Maio / 1993, p. 22.

Índice de “Keynes e a crise”: https://paradigmas.online/?p=420

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