A naturopatia está na moda. Que tal uma chávena de chá de camomila ao deitar em vez de um comprimido? O biólogo Jorge Nunes revela as propriedades medicinais e aromáticas das espécies vegetais autóctones mais usadas na medicina tradicional.
“Os desesperados agarram-se às silvas!”, dizia a Ti Piedade enquanto o corpo negro e cansado se curvava sobre os matos espinhosos e as mãos vetustas e calejadas iam ripando as flores da carqueja. “Principalmente, quando já não aguentam os males da boca ou a soltura dos intestinos… e não falo de chupar amoras pretinhas, não senhor…”, acrescentava com um sorriso malandreco.
Momentos mais tarde, ao passar por um silvado florido, fez questão de mostrar que não estava mesmo a referir-se às deliciosas amoras tão apreciadas como frutos silvestres, mas às pontas das silvas: “Folhas tenrinhas e flores fechadas, vê?” Depois de fervidas e bem filtradas – “têm muitos picos, é preciso ter muito cuidado!”, advertia –, servem para bochechar (curam aftas, dores nas gengivas e outras doenças da boca) e, em tisana, aliviam a diarreia (“soltura”, “desarranjo” ou “destempero”, como é uso chamarem-lhe no mundo rural).
Amparada por um varapau, que a ajudava a suportar o peso dos seus quase noventa anos, não perdia o ritmo e avançava com passo ligeiro por entre os tojos e as urzes ressequidas. Do braço esquerdo pendiam dois sacos de plástico com logótipos desbotados de uma grande superfície comercial. Os sinais das catedrais do consumo já chegaram às serranias remotas de São Pedro do Sul. Enquanto as flores de carqueja iam enchendo o saco maior, o mais pequeno permanecia quase vazio. “É do hipericão”, esclarecia sem abrandar a passada, “mas, com este calor, já nem se encontra, está todo mirradinho!”, justificava a dona Piedade.
A carqueja recolhida naquela tarde ainda precisava de mais alguns dias para secar e ser devidamente acondicionada. Depois, ficaria a aguardar a chegada dos rigores invernosos, das gripes e tosses trazidas pelas chuvas fortes, pelos mantos brancos de neve e pelos ventos gélidos que costumam atravessar de forma inclemente os maciços de Montemuro e da Gralheira. As “Terras do Demo”, como tão oportunamente lhes chamou Aquilino Ribeiro, o grande romancista beirão.
Habituais nas farmácias caseiras
Embora aquele dia tivesse servido essencialmente para a apanha da carqueja e do hipericão-bravo, a anciã acabou por confidenciar que a sua farmácia caseira incluía um sem-número de outras “ervinhas milagrosas”, que ia recolhendo ao longo de todo o ano. “Ervas que fazem bem a tudo” e que mantém guardadas em frasquinhos e saquinhos, prontas para quando houver uma ferida, uma tosse, uma diarreia, uma febre ou uma gripe.
Mézinhas das nossas avós
O relato, colhido, juntamente com a carqueja e o hipericão, no distrito de Viseu, poderá parecer apenas mais uma recolha etnográfica, igual a tantas outras memórias que se vão apagando à medida que as comunidades rurais entram em declínio por causa do êxodo rural e do desaparecimento dos seus anciãos, portadores de importantes saberes e tradições que acabam por ser enterrados com eles, muitas vezes, sem que haja qualquer hipótese de serem legados às gerações vindouras, como acontecia antigamente. Porém, basta percorrer qualquer aldeola portuguesa para se perceber que o rol de utilizações das ervas é infindável e que, afinal, este relato poderia muito bem ter sido gravado em qualquer outra região. Por todo o país, do nordeste transmontano ao Barrocal algarvio, passando pelas ilhas-jardim, são muitas as pessoas, nomeadamente os mais velhos, que continuam a recolher da natureza as plantas com poderes curativos.
Desde tempos que a memória já não lembra, sempre se aproveitaram as virtudes das plantas que floresciam espontaneamente por montes e vales. Mas “quem tem tesouros não os exibe”, diz o povo. Por isso, não é de estranhar que, no início, as panaceias e mézinhas fossem saberes privados guardados sigilosamente como se de tesouros familiares se tratasse. No entanto, com o passar dos séculos, foram-se tornando públicos e acessíveis a toda a comunidade. E, tal como no folclore e na gastronomia, também nas ervas medicinais cada região tem a sua tradição. Nem poderia ser de outro modo, porque a distribuição das plantas é, por vezes, circunscrita a determinadas zonas de acordo com os fatores climáticos e edáficos que as influenciam. Não é, por isso, de estranhar que existam diferentes “receitas” para o mesmo mal. É caso para dizer: cada avózinha, sua mézinha!
Do campo para a cidade
A utilização das plantas, quer para fins alimentares quer medicinais, é quase tão antiga como o próprio homem. Embora o seu uso medicinal seja habitualmente conotado com práticas mais ou menos obscurantistas, que persistem sobretudo no bucólico da ruralidade, as plantas não servem apenas para tratar as maleitas dos nossos camponeses. Nas grandes cidades, apesar de muito deste património cultural se ir desvanecendo, assistimos na atualidade a um regresso às origens, em busca daquilo que a terra nos dá. Prova disso é que não haverá casa portuguesa sem o cantinho das ervas: a erva-cidreira para as perturbações gástricas, a tília para febres e doenças hepáticas, a camomila para a gripe, entre muitas outras que cada um escolhe a seu bel-prazer.
Muitas das mézinhas das nossas avós, a que é usual chamar “medicina tradicional”, “natural” ou “verde”, coexistem, afinal, com a medicina convencional, dos médicos, na qual abundam cocktails químicos injetáveis, xaropes industriais e drageias de todas as cores e feitios.
Ainda que não haja dados estatísticos sobre o número de pessoas que recorrem à medicina natural, uma vez que se trata de autoconsumo e não são necessárias receitas médicas para este género de terapia, pensa-se que a naturopatia está em crescendo. São cada vez mais os adeptos da medicina verde. Em suma, quando o objetivo é acalmar a alma, fortalecer o corpo e aliviar a dor, ninguém se importa de onde vem o remédio, desde que se revele eficaz.
Fonte: Revista Super Interessante Nº165 de Janeiro de 2012
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