Por: Rui Mateus
O primeiro-ministro da Dinamarca Anker Joergensen, era um homem profundamente ligado ao movimento sindical do seu país e mostrara-se algo “incrédulo” em relação à dictomia e nuances reveladas pelos socialistas sobre a questão da “unicidade” versus “liberdade” sindical. Ele e alguns dos seus colegas não compreendiam então como é que tal questão podia ser determinada por decreto. Mas também não compreendiam como é que os socialistas, e Salgado Zenha em particular, eram contra o que parecia ser a “unidade” dos trabalhadores numa única confederação sindical! Em todos os países escandinavos, os sindicatos operários e até muitos de “colarinhos brancos” estão filiados numa única central, a Landsorganizationen, que não é mais do que uma confederação nacional de sindicatos. Acontece mesmo que os partidos sociais-democratas escandinavos, à semelhança do Partido Trabalhista da Holanda e da Grã-Bretanha, e até na Espanha, resultaram da necessidade de intervenção Política dos próprios sindicatos. Situação completamente oposta à do Partido Socialista português que, à semelhança do seu congénere francês, nasce um pouco artificialmente de pequenos grupos oriundos de profissões liberais da classe média e a sua ligação ao movimento sindical é exactamente inversa à da maioria dos sociais-democratas europeus. Assim conhecidos os pressupostos e tendo Joergensen levantado dúvidas na cimeira de Estocolmo de Agosto de 1975, em que Mário Soares expusera com grande dramatismo a situação criada em Portugal pelos comunistas, seria decidido que ele próprio viria a Portugal para, “in loco“, relatar o que se passava à Internacional Socialista. Iniciavam-se assim na IS as chamadas “missões” de alto nível que tanta importância viriam a desempenhar para o aumento de prestígio daquela organização.
Chegou a 11 de Agosto com a sua delegação e seria acompanhado por mim e por Marcelo Curto, então secretário nacional do PS para o trabalho e assuntos sindicais. Para além de contactos com Mário Soares e com Salgado Zenha pretendeu dialogar com a intersindical, com sindicatos e visitar algumas empresas. A intersindical, fechada e dogmática como se encontrava em 1975, recusar-se-ia a falar com o social-democrata dinamarquês e nem o então responsável pelas relações internacionais daquela central dominada pelo PC, José Manuel Judas, o quis receber. A empresa que manifestou interesse em conhecer, dados os interesses escandinavos então ali existentes, foi a Lisnave. Quando lá chegámos, os visitantes dinamarqueses, Marcelo Curto e eu, éramos esperados pela comissão de trabalhadores afecta ao PCP e à UDP. Com a grosseria revolucionária que caracterizava o PREC informariam o primeiro-ministro da Dinamarca que “os trabalhadores não recebiam reaccionários”. No meio da confusão estabelecida e perante a insistência de Joergensen em visitar a empresa, íamos sendo agredidos em nome dos então alegados interesses da classe operária. A visita acabaria por ter lugar na companhia dos poucos militantes socialistas daquela empresa, mas os comunistas não poderiam ter prestado pior serviço à sua própria causa, tendo-se a visita transformado num acontecimento mediático de proporções internacionais. Afinal tratava-se de um primeiro-ministro, que ainda por cima viera a Portugal com algumas dúvidas em relação à Política sindical do Partido Socialista.
Depois de conversar com Zenha, Anker Joergensen compreenderia então porque é que na Dinamarca existia uma única confederação sindical, que resultara da vontade dos trabalhadores, enquanto seguindo o modelo soviético, em Portugal, só existia então uma confederação por decisão governamental! Aliás compreendeu tudo tão bem, que logo insistiu em convocar para o seu país uma cimeira de líderes da Internacional Socialista, que teria lugar em Janeiro de 1976 na romântica cidade que William Shakespeare descreve no seu Hamlet [1]. Foi um acontecimento importante na medida em que continuava os objectivos traçados cinco meses antes em Estocolmo, com o lançamento do comité de solidariedade com o PS, pese embora o facto de os comunistas terem sido obrigados a retroceder no 25 de Novembro. Significava que se mantinha o apoio ao PS com vista a garantir a realização das primeiras eleições legislativas previstas para o dia 25 de Abril de 1976 e tinha como objectivo afirmar que a Europa estava com o PS na consolidação da democracia parlamentar em Portugal. Mas, num contexto internacional, seria essencialmente uma cimeira destinada a celebrar a “vitória” da Internacional Socialista em Portugal. Existia um certo (e fundado) receio de que os americanos se “apropriassem” do 25 de Novembro, dando origem a repercussões eleitoralmente negativas na Europa. O líder do PS, que a Comunicação Social europeia promoveria como a bandeira visível dessa vitória, passaria então a ser disputado entre os dois lados do Atlântico. Foi em Elsinore que Olof Palme propôs então a continuação do “comité”, com a realização de uma nova cimeira em Portugal ainda antes das eleições de Abril.
Uma vez mais Rolf Theorin e eu próprio seríamos encarregados da sua organização e, uma vez ouvido o secretariado nacional do PS, ficou decidido realizá-la no Porto, em Março, e associar a vinda dos líderes socialistas europeus a um comício pré-eleitoral. A ideia de fazer este comício assim como o slogan do acontecimento foram da autoria de um então jovem militante em ascendência, de quem os portugueses ouviriam falar pela primeira vez após o 11 de Março quando, juntamente com Vitor Constâncio, fizera uma inflamada declaração de apoio à nacionalização da banca [2]. Era António Guterres, por quem Soares nutria uma indisfarçável embirração mas que Salgado Zenha protegia e proporia para a direcção do partido. Foi ele que lançou a ideia de apelidar a cimeira do Porto da Internacional Socialista de “Europa Connosco“, que seria realizada no hotel Vermar de Espinho, com comício no Palácio de Cristal nos dias 13 e 14 de Março.
Mas se a 17 e 18 de Janeiro Mário Soares tivera ensejo de agradecer na Dinamarca o apoio recebido da família socialista, logo a seguir, a 19 de Janeiro, seguiria comigo para os Estados Unidos, para uma visita de duas semanas. Apesar de a visita ter um carácter privado, uma vez que, em Janeiro de 1976, Mário Soares não era membro do governo, as viagens e a estadia seriam pagas pelos Estados Unidos. O convite partira de Frank Carlucci e o programa da visita seria preparado em pormenor pelo conselheiro da embaixada, Richard Melton. Incluía o primeiro de uma série de “doutoramentos” políticos na Universidade de Yale, sob os auspícios do programa Chubb Fellow, visitas às comunidades portuguesas de Massachussets, um encontro com o senador Ted Kennedy, encontros com o New York Times e o Washington Post para conversas “off the record“, uma (então) inédita entrevista numa cadeia de televisão traduzida em simultâneo e um encontro no departamento de estado com Henry Kissinger, a 26 de Janeiro. Esta visita que seria objecto de um curioso protesto da secção de informação e propaganda do PC, incluiu ainda encontros com os presidentes das confederações sindicais Lane Kirkland e Leonard Woodcock, da AFL/CIO e UAW [3], respectivamente. Eu só não seria convidado para uma visita que teria lugar no “old executive office building” da Casa Branca, com o subdirector da CIA, Vernon Walters, que, por descuido da organização, constava do itinerário entregue aos motoristas.
Durante o encontro com Kissinger, este fez questão de afirmar perante os seus principais colaboradores ter-se enganado em relação a Mário Soares quando o classificara de “Kerensky português”. Essa admissão causaria grande surpresa no departamento de estado, pouco habituado a actos de humildade do seu ministro, mas a verdade é que Soares era, também, para aquele grande país, naquela época de desorientação nacional, o exemplo do lado bom da Política externa americana. E, em Janeiro de 1976, já Henry Kissinger se podia dar ao luxo de criar um tal precedente, uma vez que se preparava para sair da Política e entrar no sector privado, através da sua conhecida empresa de relações públicas, Kissinger Associates. As questões mais importantes que Mário Soares nesta data tinha para comunicar aos norte-americanos, para além de lhes estar agradecido e reiterar apoio para o processo de consolidação da ainda frágil democracia portuguesa, estavam relacionadas com a importância das primeiras eleições legislativas marcadas para o dia 25 de Abril de 1976 e com a necessidade de os americanos apoiarem em Portugal a criação de uma confederação sindical democrática, que fizesse frente à intersindical. Estava na forja o movimento que veio a ser conhecido por “Carta Aberta“, exigindo à intersindical o direito de tendência, e a estratégia sindical que viria a ser definida por Maldonado Gonelha e adoptada pelo Partido Socialista. Daí o encontro com as duas poderosas centrais sindicais.
O papel da CIA em Portugal, de apoio à democratização do nosso país, tinha para os americanos uma importância muito especial. Ainda a traumática intervenção americana no Vietname estava bem presente no dia a dia da América, quando foi revelado o papel da CIA e do próprio secretário de estado, Kissinger, contra Salvador Allende, no Chile. O apoio ao PS e à democracia em Portugal ajudariam de alguma maneira a dissipar o pesadelo daquelas aventuras e marcaria o início de uma nova política externa dos Estados Unidos. Começaria com Portugal, em 1975, durante a vigência de um governo republicano profundamente desacreditado, mas seriam os democratas James Carter e Walter Mondale, a partir de 1977, quem melhor a simbolizaria.
Para além do comunicado do PCP criticando a visita, poucos compreenderam então o seu significado, quer no contexto internacional, quer no quadro da evolução de Portugal para a democracia. Seria muito comentada por toda a Imprensa portuguesa, sem grandes análises e simplesmente atribuída a mais um êxito das relações internacionais do Partido Socialista. A visita tinha muito que ver — e daí a sua transcendência — com as próprias mutações políticas norte-americanas e com as relações daquela potência com a Europa. Tinha sobretudo muito que ver com a preocupação com que os americanos viam os seus aliados e, em especial, os seus aliados socialistas. Depois de Salvador Allende, no Chile, em 1974, Willy Brandt, primeiro-ministro e presidente do influente Partido Social-Democrata da Alemanha Ocidental, começaria a ser investigado pelos serviços secretos do seu país e pelos serviços secretos americanos e britânicos. Suspeitava-se de que o seu conselheiro, Gunther Guillaume, trabalhava para o KGB, a quem alegadamente passaria segredos de estado a que tinha acesso no gabinete do primeiro-ministro socialista. Segundo Richard Bissel, director de operações clandestinas da CIA, de 1958 a 1962, Willy Brandt tinha recebido subsídios daquela organização enquanto presidente da câmara de Berlim [4], mas após uma década, levantavam-se suspeitas em relação à sua pessoa.
Aparentemente, a Abwehr [5] terá informado Brandt em 1972 das suspeitas que recaíam sobre o seu colaborador, “mas sugerira a Brandt que o mantivesse ao seu serviço enquanto prosseguia o inquérito” [6]. Brandt terá concordado mas, na manhã de 24 de Abril de 1974, seria surpreendido com a notícia da sua detenção. O famoso e polémico espião do MI5, Peter Wright decifraria entretanto códigos de transmissões da Alemanha de Leste e informaria os seus colegas alemães que Guillaume, “apesar de suspeito, continuara a ter acesso a documentos secretos” [7]. Brandt comentaria então que “não tinha a menor ideia de que esta revelação significaria o fim do [seu] mandato de chanceler federal” [8]. No dia 1 Maio de 1974, Brandt seria informado de que o seu colaborador revelara durante os interrogatórios “contactos íntimos” que o chanceler teria alegadamente tido durante as suas viagens, motivando a sua demissão ao mesmo tempo que “assumia responsabilidades pelo “affair” Guillaume” [9]. Segundo o mencionado descodificador, chefe do MI5, Brandt “fora um dos líderes duma grande rede de comunicações comunistas controlada pela rádio a partir de Moscovo” e “demitira-se para impedir que prosseguissem as investigações a seu respeito e a respeito dos seus colaboradores” [10]. No seguimento da sua demissão em Maio, o ministro das finanças e “número dois” do SPD, Helmut Schmidt assumiria a liderança Política do seu país. As suas credenciais pró-ocidentais e a sua amizade com os EUA estariam acima de qualquer suspeita.
No ano seguinte, em Novembro de 1975, o primeiro-ministro socialista da Austrália, Gough Whitlam, cujo partido também pertence à Internacional Socialista, seria demitido pelo governador-geral, Sir John Kerr. Este dignatário, que naquele país da comunidade britânica representa a rainha de Inglaterra, utilizaria aquele poder constitucional num acto de autoritarismo sem precendentes que iria questionar a futura participação da Austrália na comunidade britânica. Whitlam, eleito em 1972, tinha descoberto que os serviços secretos da Austrália, à sua revelia, tinham colaborado com a CIA para derrubar Salvador Allende [11]. Ordenaria então uma inspecção aos seus serviços secretos, ASIO [12], na sequência da qual ordenaria o congelamento das relações da “inteligência” australiana com a CIA. O clima de tensão entre a Austrália e os EUA aumentaria perigosamente quando, em 1974, o primeiro-ministro “insensatamente” declarara não pretender renovar o acordo com os EUA para a manutenção da estação americana de observação de comunicações via satélite, em Pine Gaps. Esta estação, perto de Alice Springs, no meio do deserto australiano, acompanha o movimento de satélites na zona do Pacífico Sul, conseguindo “escutar” as telecomunicações em toda aquela zona, incluindo a China. O resultado deste “confronto” seria a demissão de Whitlam ao abrigo de uma lei perfeitamente obsoleta e na qual os australianos se não reconhecem. Contudo, misteriosamente, quase ninguém levantaria um dedo para defender o escorraçado dirigente socialista [13], que seria substituído, também no Partido Trabalhista, por Bob Hawke, reconhecidamente “mais amável com os serviços secretos ocidentais” [14].
Dois meses após a nossa visita a Washington, teria lugar outro surpreendente e preocupante acontecimento. Harold Wilson, o popular primeiro-ministro da Grã-Bretanha, demitir-se-ia inesperadamente a 16 de Março, dia em que completava sessenta anos de idade. Hugh Gaitskell, que ele substituíra treze anos antes, morrera em 1963, um mês após uma visita oficial a Moscovo, de uma misteriosa doença infecciosa conhecida “por lupus disseminata, que ataca o organismo” [15]. Gaitskell era conhecido pelo seu pro-americanismo e era admirado pelos serviços secretos ocidentais. Peter Wright, do MI5, conhecido e polémico “caçador” de espiões soviéticos era ele próprio um grande admirador de Gaitskell. Durante os seus contactos e interrogatórios ao dissidente do KGB, Anatoli Golitsin, convencer-se-ia de que o malogrado primeiro-ministro britânico poderá ter sido vítima de um assassinato por parte do departamento 13 do KGB, que segundo Golitsin desenvolvia experiências bacteriológicas para a indução de lupus em ratos. E “quando Wilson sucedeu a Gaitskell, como líder do Partido Trabalhista, passou a dar origem a mais um motivo de fricção com o MI5. Começou a rodear-se de homens de negócios imigrados da Europa de Leste, alguns dos quais estavam a ser investigados pelo MI5” [16]. Mas já em 1964 o director do departamento de contra-informação da CIA, James Jesus Angleton, informara os serviços secretos ingleses de que Wilson “era um agente soviético” [17]. Segundo o biógrafo do ex-primeiro-ministro diria depois, “a coisa mais surpreendente em relação à demissão de Harold Wilson foi o grau de surpresa que ela causou” [18]. O processo de investigação de Wilson, com o nome de código “Oatsheaf“, começara nos anos 70. A partir de 1963, quando Wilson chegou ao poder, suspeitava-se de que a morte de Gaitskell tinha sido planeada pelos soviéticos para preparar o caminho ao seu próprio “protegido: Harold Wilson!” [19] e a partir de 1974, quando Wilson regressa ao poder, após quatro anos na oposição, um grupo do MI5, estabeleceria um plano para desacreditar dirigentes trabalhistas e, principalmente, Wilson. Através dos seus “contactos na Imprensa e entre dirigentes sindicais, seria divulgada informação sobre o conteúdo dos ficheiros do MI5 e sobre o facto de Wilson ser considerado um risco de segurança” [20]. Tratava-se de um verdadeiro complot para forçar Wilson a demitir-se, em que o “cenário seria a chegada sem convite de homens de cara dura do MI5 a Downing Street, para dizer ao primeiro-ministro que têm provas capazes de provocar um pavoroso escândalo — sexual, financeiro, político e o que mais quiseram” [21]. De facto, “a notícia de que o primeiro-ministro estava ele próprio a ser investigado conduziria, pelo menos, à sua demissão” [22]. Ninguém se levantara para defender Wilson. Nem no partido, nem no governo. Os seus colegas da Internacional Socialista ficariam igualmente calados. A sua demissão fez lembrar “um funcionário público que chega aos sessenta anos e se reforma” [23]. Outros socialistas de grande proeminência, com relevo para o primeiro-ministro sueco, Olof Palme, estavam então também na mira da curiosidade da CIA e dos serviços secretos ocidentais.
Não era esse o caso de Mário Soares em Janeiro de 1976, quando do seu encontro com Henry Kissinger e com a CIA. Após o seu interregno de Paris e os primeiros tempos da revolução em que, inadvertidamente, servira de escudo à estratégia soviética, o “filho-pródigo” regressava a casa. Os EUA, ainda obcecados nos anos 70 em distinguir entre os “bons” e os “maus” socialistas, tinham decidido dar “cobertura” ao próximo primeiro-ministro de Portugal, certos de que dessa associação receberiam serviços inestimáveis para a causa ocidental. As previsões do “think-tank” de Langley teriam oportunidade de mostrar a exactidão da sua aposta.
O Partido Social-Democrata sueco estava comprometido em apoiar a conferência “Europa Connosco” e o responsável pela organização, Rolf Theorin, viria a Portugal em numerosas ocasiões para acertar os detalhes da primeira reunião cimeira internacional, realizada pelo Partido Socialista. Com uma peregrinação a várias capitais europeias para confirmar o convite de Olof Palme, eu próprio me encarregaria de pessoalmente garantir a presença dos participantes mais relevantes. A partir de meados de Fevereiro, instalaríamos o quartel-general da conferência no hotel Vermar em cujo último andar se realizaria, nos dias 13 e 14 de Março, a reunião. Preparámos o local e confirmámos todos os pormenores minuciosamente e com o experimentado “know-how” sueco. Era a primeira vez que um tão grande número de personalidades, que incluía vários chefes de governo, se reunia no nosso país. Mas, apesar da nossa inexperiência, tudo correu impecavelmente com excepção de um pequeno imprevisto, que nem aos suecos ocorreria. No Domingo, no final da conferência e depois do grandioso comício realizado na noite da véspera no Palácio de Cristal, estava prevista uma conferência de imprensa no Palácio da Bolsa. Chovia então torrencialmente no Porto e chovia mesmo dentro da sala do Palácio da Bolsa. François Mitterrand recusou-se, assim, a tirar o seu sobretudo protegendo-se dos pingos com o seu característico chapéu!
Os custos desta reunião seriam integralmente cobertos pelo Partido Social-Democrata sueco, que contribuiu com cerca de meio milhão de coroas, e pelo Partido Socialista austríaco de Bruno Kreisky, que contribuiu com 750 mil shillings austríacos. Para o efeito seria informado pelo Banco PK da Suécia que o PSD sueco mandara abrir uma conta na Suíça em meu nome, através da qual aquelas verbas seriam movimentadas. Estas e outras verbas começariam contudo a expor o PS a sinais exteriores de riqueza e a dar lugar a todo o tipo de especulações e contra-informação. Grande parte do apoio vinha em notas e cheques em moedas estrangeiras e, apesar dos contactos que o PS detinha na banca, sempre que o tesoureiro, Fernando Barroso, procedia a operações cambiais saíam notícias e circulavam rumores. Para além da contra-informação do PCP e da extrema-esquerda, logo após a visita aos EUA seriam lançadas notícias em orgãos de Comunicação Social por dissidentes da CIA, como foi o caso de Philip Agee. As notícias inicialmente difundidas pelo New York Times de que o PS estaria a receber avultadas quantias da CIA e do estrangeiro “obrigariam” Mário Soares a veementes desmentidos e a uma conferência de imprensa, a 8 de Fevereiro, não só para desmentir o que era verdade mas, sobretudo, para camuflar esses apoios, anunciando o lançamento pelo PS de uma campanha nacional de angariação de fundos. Diria então que “o nosso partido é um partido de trabalhadores, é um partido de esquerda e, como tal, um partido pobre. Têm-nos sido dirigidas muitas calúnias por parte dos que nos acusam de recebermos fundos estrangeiros. Essas calúnias nunca foram provadas, nem o poderiam ser, porque são efectivamente calúnias. Estamos no início desta campanha (eleitoral) [24] que vai ser extremamente dinâmica e esclarecedora para o país, com grandes dificuldades financeiras, porque a campanha eleitoral é efectivamente dispendiosa. Por isso resolvemos iniciar a nossa actuação, neste período pré-eleitoral em que nos encontramos, por uma campanha de recolha de fundos. Como lhes disse, amanhã vai aparecer a cidade coberta de grandes cartazes deste tipo: Com a tua vontade de vencer. Por um amanhã a construir. Recolha de fundos para o Partido Socialista“ [25].
Nesse ano eleitoral de 1976, vários partidos e entidades estrangeiros entregariam avultadíssimas somas em dinheiro, por todos os meios, as quais a administração financeira ia classificando como campanha de “angariação de fundos”. Só os recibos que me foram entregues ultrapassariam, então, os 40 mil contos, embora à medida que iam sendo entregues na rua da emenda a Fernando Barroso fossem, inadvertidamente, sendo classificados em moeda estrangeira e, às vezes, referindo mesmo a entidade doadora. O Partido Trabalhista britânico, segundo me foi comunicado, tinha unicamente enviado, em 1975, para a conta da Holanda, a quantia de 4108 Libras o que equivalia a 240 contos na altura. Os “pacotes de biscoitos” do MI6, “CH“, o último dos quais seria entregue em 7 de Abril de 1976, representavam a extensão do conceito político da “Europa Connosco” ao outro lado do Atlântico!
Esta reunião do Porto consagraria Mário Soares perante o público português como um dos “grandes” da Internacional Socialista, para além de continuar o “espírito”, e o apoio financeiro, do comité de solidariedade constituído meses antes em Estocolmo. Teria a presença de Willy Brandt, Bruno Kreisky, Joop den Uyl, François Mitterrand, Felipe González e, claro, Olof Palme. Teve um enorme impacto nacional. Não tanto pelo que ali foi dito mas, sobretudo, pelo significado da presença conjunta, no nosso país, dos principais protagonistas do socialismo democrático europeu. Finalmente os portugueses tinham oportunidade de conhecer os homens que iriam fazer entrar Portugal na Europa e que, por intermédio do PS, iriam transformar Portugal num país europeu igual àqueles onde trabalhavam os nossos vizinhos e os nossos familiares.
O secretário-geral do PS estava eufórico com a ocasião, ao lado dos “grandes” da social-democracia mundial. Estatuto que considerava não poder ser atribuído a Felipe González que, além de usar blusão de cabedal, na “cerimónia”, não era reconhecido na Espanha pelo Partido Socialista Popular, chefiado por Tierno Galván. E, no que respeita a Espanha, em 1976, as preferências de Soares eram claramente a favor do partido dos seus amigos Raul Morodo e Fernando Morán [26] estando mesmo convencido de que, eleitoralmente, até o PCE de Santiago Carrillo teria mais votos do que o “grupo” de González. Assim, numa das crises de “enfant gaté” [27] que ocasionalmente o assaltavam, não queria que González discursasse no grande comício que teve lugar no Palácio de Cristal, no dia 13, encarregando-me a mim da desagradável tarefa de explicar a González que só um número restrito de oradores estava previsto. Um pequeno número que incluía só os “grandes” líderes. Tanto quanto me pude aperceber então, a ideia era a de excluir Zenha, cuja reputação nacional, popularidade e estatura moral lhe começavam a fazer sombra. E depois, quando já fosse tarde demais, seria eu responsabilizado, por ter sido eu a organizar a conferência… Ao fim de um ano de actividade dentro do PS, e sabendo como as culpas pelo desastre do primeiro congresso tinham caído em cima do Tito de Morais, estava perfeitamente ambientado na Política de “sacudir a água do capote” dos dirigentes socialistas. Por isso recusar-me-ia, informando, pelo contrário, Zenha da “deselegância” que o secretário-geral pretendia cometer. Zenha que melhor que ninguém o conhecia de ginjeira, alteraria a situação. Zenha seria um dos grandes oradores da noite e González discursou mesmo, sendo vibrantemente aplaudido. Afinal ele estava ainda a lutar pelos direitos de existência do seu partido em Espanha e necessitava daquela publicidade, talvez mais que nós próprios que já a tínhamos adquirido.
Mas, como já tinha explicado anteriormente, as relações do PS com o PSOE não eram exactamente as melhores se bem que, da parte de Felipe González, todos os esforços fossem feitos para um bom relacionamento connosco. A situação em Espanha ainda estava longe de ser clara e, como acontecera connosco antes do 25 de Abril, aos socialistas espanhóis faltava quase tudo. Portugal era assim um ponto de referência fundamental. Um mês antes da reunião do Porto, a 12 de Fevereiro, o chanceler austríaco Bruno Kreisky organizara em Viena um grande “comício de luta contra o fascismo”. Os convidados principais seriam Soares, que representava a vitória do regime democrático e González, que representava a luta pela democracia. O acontecimento, pese embora o então maior prestígio de Soares, destinava-se essencialmente a apoiar o PSOE mas Soares, no seu discurso, não faria uma única referência ao PSOE ou a González. Diria simplesmente que “conhecemos bem o valor da solidariedade internacional anti-fascista. É por isso que hoje estamos ao lado dos nossos companheiros espanhóis, vibrando com eles na esperança de que em breve a democracia estará restabelecida em Espanha” [28]. E no final daria vivas à amizade luso-austríaca, ao PS austríaco e ao socialismo. Ao PSOE nada!
Começa aqui a explicação da “deselegância” da cimeira do Porto. Soares não queria González nessa cimeira e seria o chanceler Bruno Kreisky (que aliás pagaria grande parte das despesas da “Europa Connosco“) quem insistiria para que o jovem líder socialista espanhol estivesse presente. Após o êxito do Porto, González demonstraria também interesse em passar o dia das eleições legislativas, marcadas para o dia 25 de Abril, em Lisboa. Queria confraternizar com os seus camaradas portugueses e tirar partido, tanto quanto possível, da enorme cobertura mediática internacional, na esperança de poder beneficiar desse “feedback” no seu país. Só que Felipe González chegara no voo de Madrid na manhã de 25 de Abril, acompanhado do responsável pelas relações internacionais, Luis Yanes, mas o secretário-geral do PS disse-me «que não estava para o aturar” e eu que “tomasse conta dele como fizera no Porto“. Eu fui esperá-los ao aeroporto e, após um aperitivo em casa de Bemadino Gomes, no Estoril, sendo este acompanhante da funcionária da fundação Friedrich Ebert, Elke Esters, que representara os alemães na fundação do PS em Bad Munstereifel em 1973, almoçámos no hotel Albatroz em Cascais, tendo depois visitado vários locais de voto em Lisboa e arredores. Na noite das eleições, Mário Soares cumprimentaria sem grandes cerimónias os “convidados” espanhóis que nunca lhe perdoariam a “altivez” e a frieza da recepção. E apesar de todos os esforços que eu desenvolveria nos anos seguintes, as relações de Mário Soares com Felipe González, seriam sempre pouco calorosas [29].
Apesar do difícil relacionamento, Felipe González demonstraria grandes qualidades de estadista ao compreender quer a amizade pessoal de Soares com os dirigentes do Partido Socialista Popular, quer a diferença de pontos de vista derivada da diferença de idades entre ambos. Também sabia que dentro do PS português tinha inúmeros amigos e que as bases simpatizavam com ele, como a própria cimeira do Porto demonstrara. Estas delicadas questões tinham já sido abordadas numa reunião que tivera lugar em Lisboa, em Junho de 1975, entre o PS e uma delegação do PSOE chefiada por Nicolas Redondo [30]. Quando então nos pediram para clarificar a situação, derivada do entusiástico apoio a Santiago Carrilho e da nossa tão ambígua posição, Mário Soares pediu a Nicolas Redondo que informasse o seu partido de que o PS “reconhecia o PSOE enquanto parceiro na Internacional Socialista, não obstante laços de amizade pessoal entre alguns socialistas portugueses e espanhóis não pertencentes ao PSOE” [31].
O resultado eleitoral das primeiras eleições legislativas não corresponderia, contudo às expectativas. Nem às expectativas políticas dos dirigentes do PS, nem às dos amigos estrangeiros que tinham investido no PS. Apesar de terem sido gastos enormes meios financeiros na campanha, apesar de prestigiadas figuras internacionais terem vindo a Portugal exprimir solidariedade ao PS e, sobretudo, após o 25 de Novembro, a “gratidão” revelada pelo povo português neste acto eleitoral não seria aquilo que o futuro primeiro-ministro tinha esperado. O PS baixaria três pontos percentuais em relação às eleições para a assembleia constituinte e o PPD baixaria dois e meio. Os comunistas também perderiam terreno e como concluiria Freitas do Amaral “o CDS foi o único partido que subiu” [32], de 7,5 % para 16 %! Qualquer analista poderia concluir que uma grande parte da direita, em 1975, utilizara o PS e até o PPD para travar o avanço do PCP. Mas também se compreenderia melhor a razão pela qual o PS, no dia 26 de Novembro de 1975, alinhara pela tese do major Melo Antunes em relação ao Partido Comunista. Não porque tivesse estado de acordo com aquele militar, quando afirmou ser o PCP necessário “para a construção do socialismo em Portugal“, mas porque o secretário-geral do PS pretendera utilizar o PCP para meter medo à direita, convencido, como viria a estar a partir de então, que os socialistas só serviam para combater os comunistas [33]. Esta análise, já viciada desde o acordo de governo assinado com o PCP em Paris, em 1973, motivaria os socialistas portugueses a tratar Sá Carneiro e o seu partido como “inimigos principais”, cometendo um erro de estratégia que comprometeria para o futuro a sanidade política da sociedade portuguesa. O general Ramalho Eanes, que apesar de candidato do PS/PPD e CDS à presidência da República era, até então, politicamente irrelevante, iria ter, graças aos resultados eleitorais, um papel determinante na vida política do país e, em especial, na vida interna do Partido Socialista. Muitos dirigentes socialistas, contudo, apesar de não possuírem os meios para alterar a situação que o secretário-geral decidira sem auscultar o partido, entendiam que o apoio à candidatura de um militar, “imposto” pelo Grupo dos Nove não fazia sentido no regime democrático que pretendiam construir. O próprio Sá Carneiro via o futuro do país no quadro de um pacto de regime entre o PS e o seu partido, estando mesmo preparado para, dentro de um tal acordo, apoiar a candidatura de Mário Soares à presidência da República. O PS, que evidentemente se não poderia coligar com os seus ex-parceiros comunistas, após o 25 de Novembro, ou se coligava com o PPD, que se reclamava da mesma família política do Partido Socialista, ou teria que, com todos os riscos inerentes, governar sozinho. Uma coligação com o CDS, visto pela esmagadora maioria da opinião pública como um partido de extrema-direita e, ainda por cima, o único vencedor das eleições legislativas, seria impensável. Mas o secretário-geral do PS faria ouvidos de mercador aos conselhos de muitos dos seus amigos e, num acto de que se iria arrepender, escolheria a via do “PS sozinho”. Estava então convencido, que o general Ramalho Eanes era um militar apolítico às suas ordens, que «estaria sempre, diante de si, como um aluno aplicado» [34].
Sá Carneiro ficaria extremamente desiludido com a atitude de Mário Soares, que considerara irresponsável. Para ele a consolidação do regime democrático, então ainda tutelado pelos militares e sob enorme influência político-cultural do PCP, passava pela cooperação entre os dois partidos do centro, que se reclamavam da família social-democrata. Uma cooperação que poderia mesmo conduzir à fusão do PPD no PS. As bases de ambos, afinal, eram idênticas e os princípios semelhantes. Para Sá Carneiro seria difícil compreender a arrogância dos socialistas, convencidos que estavam de que Eanes era parte do seu património político. Acusaria então o PS de “tentação mexicana” [35], o que não foi completamente destituído de razão, dada a sobranceria com que pretendia aliar-se a Ramalho Eanes para governar o país em minoria. Por outro lado, Soares considerava que “objectivamente, o regime do México não é de partido único” [36]. Da parte do PS não seriam invulgares as manifestações de grosseria para com Sá Carneiro. Desde referências à sua estatura física, à sua situação familiar e até à colaboração em campanhas pouco dignificantes que visavam atingir a sua honorabilidade [37]. Entretanto, e apesar das muitas ofensas de que seria alvo, o seu pensamento político e a sua acção, nunca foi anti-socialista e, como se teria ocasião de verificar, seria até frequentes vezes favorável ao PS e ao seu secretário-geral, pesem embora normais diferenças que ocorreriam durante as campanhas eleitorais dos seus partidos. Já em 1976 oferecera a Soares “o apoio a uma eventual candidatura, pedindo em troca algo que Soares nunca lhe poderia conceder, a luz verde para que o PSD possa aderir à Internacional Socialista” [38].
De facto, após o 25 de Abril Sá Carneiro declararia pretender que o seu partido aderisse à Internacional Socialista tendo, de imediato. Mário Soares desenvolvido todos os esforços no sentido de barrar qualquer pedido formal de adesão, que nunca chegaria a ser feito. O desconhecimento de como funcionava aquela organização era um reflexo do isolamento internacional em que o país se encontrava, que acabaria por ser desfavorável ao PSD. Na realidade, quando Sá Carneiro declarou a sua pretensão, em 1974, existiam na IS vários partidos do mesmo país. O PS e o PSDI de Itália, O PT e o MAPAM de Israel, o PS e o PSD do Japão, a AD e o MEP da Venezuela. Tivesse ele formalizado o pedido e a IS teria que o discutir e votar. Em 1974, após o 25 de Abril, o PS não possuía nenhumas garantias de que a IS negaria o acesso ao PPD. Mas só a partir de 1979, profundamente desiludido com Eanes e desejoso de o impedir de se recandidatar à presidência da República, Mário Soares proporia ao secretariado nacional que considerasse as virtualidades de um acordo com Sá Carneiro. Nesta altura, como em praticamente todas as decisões de fundo do PS, as posições políticas do secretário-geral seriam tomadas em função dos seus interesses pessoais. A sua «vontade» de um acordo com Sá Carneiro, que tinha que ver com uma vingança contra Eanes e com as suas próprias ambições políticas, chegava cinco anos tarde demais, quando a maioria do secretariado nacional do Partido Socialista já não seguia as suas orientações.
Atento à evolução política na Península Ibérica, o presidente da República da Venezuela, Carlos Andrés Perez, cujo partido, Accion Democrática, era observador da Internacional Socialista, percebeu que a “Revolução Portuguesa” e a evolução democrática em Espanha iriam ter enorme impacto na América Latina, onde ele, chefe de estado de um país produtor de petróleo, pretendia ter um papel de relevo. O presidente venezuelano, que tinha sido eleito em 1974, acompanhava de perto a crescente importância da Internacional Socialista e, como tal, desenvolveu todos os esforços para reunir em Caracas uma cimeira semelhante à que acabara de ocorrer em Portugal. Mas, enquanto em Portugal a iniciativa partira de Olof Palme, a ideia da reunião de Caracas partira de Klaus Lindenberg [39], representante da fundação Friedrich Ebert naquele país. Esta fundação já na altura investia consideráveis meios naquele subcontinente e tinha escritórios e representantes alemães em quase todas as capitais latino-americanas. Editava aliás uma importante revista teórica sobre a social-democracia no contexto da América Latina, a partir da capital venezuelana, de nome Nueva Sociedad. Na reunião que teve lugar no hotel Tamanaco no dia 22 de Maio, para além dos anfitriões, que incluiriam o popular ex-presidente da República, Rómulo Betencourt, marcariam presença em Caracas, Willy Brandt, Bruno Kreisky, Willy Claes e André Cools da Bélgica, Hernan Siles Suazo da Bolívia, Luis Albero Monge e Carlos Oscar Arias da Costa Rica, Anker Joergensen da Dinamarca, Rodrigo Borja do Equador, Felipe González e Luis Yanez do PSOE e Raul Morodo do Partido Socialista Popular, Michel Rocard de França, o italiano Bettino Craxi, ainda então secretário-geral-adjunto de Francesco De Martino e Vitor Raul Haya de la Torre, do Peru. Os representantes do PS seriam Mário Soares, Medeiros Ferreira e eu. Foi uma reunião muito importante para Willy Brandt e para a Internacional Socialista, que marcaria o início de tensões ideológicas com os Estados Unidos da América e de uma crise na definição geo-estratégica ocidental entre a Europa e a América.
A Internacional Socialista sentia-se no papel dos “mencheviques”, chamando a si os louros pela vitória da democracia em Portugal. Uma vitória que todos sabiam iria trazer não só repercussões imediatas em Espanha mas, a médio prazo, também na América Latina. Era do interesse da Europa, ou pelo menos da Internacional Socialista europeia, “ignorar” o papel dos Estados Unidos e explorar os defeitos da linha Kissinger no caso português. Seria essa a linha que o próximo presidente da Internacional Socialista Willy Brandt, apoiado por poderosos meios financeiros canalizados por intermédio da fundação Ebert, iria seguir. Para ele, que dois anos antes se vira alvo de investigações dos serviços de inteligência ocidentais, era extremamente importante marcar o seu decisivo papel em prol da democratização de Portugal, da Espanha e da América Latina. Na nova fase da sua carreira política, ter contribuído para derrotar os comunistas em Portugal, seria uma importante componente do seu currículo. A Internacional Socialista estava lançada nos “Processos de Democratização na Península Ibérica e na América Latina“, em concorrência com os EUA. Uma disputa que os americanos iriam ganhar com a ajuda do PS português.
Luis Echevarria, então presidente do México, tinha reputação de anti-americano e via com suspeição as actividades da Internacional Socialista na América Latina. Sobretudo preocupante para o seu partido único era o facto de o modelo português incluir a exigência de regimes pluralistas, Mas, por outro lado, compreendeu que a reunião que estava a ter lugar em Caracas representava uma terceira via demasiado importante para que o México pudesse ficar de fora. Os homens do PRI, que governam o México em exclusividade há cerca de sessenta anos, pressentiriam, contudo, que o seu afastamento das iniciativas de Brandt os obrigaria a sair da situação de privilégio político em que se encontravam, tolerados pelo seu gigantesco vizinho pelo seu não alinhamento com os comunistas, não obstante os atropelos à democracia e aos direitos humanos, e reconhecidos pela União Soviética pelo seu não alinhamento com os EUA. Sem aderir à IS, optariam por uma espécie de associação com o objectivo de neutralizar eventuais críticas ao seu aberrante regime! Assim conseguiriam, de facto, ser interlocutores de todos, ficando com as mãos livres para prosseguir o seu modelo “de democracia…um pouco sui-generis” [40]. E, sem qualquer preparação prévia, “obrigariam” a que a reunião de Caracas tivesse o seu final a milhares de quilómetros dali, na cidade do México, enviando a Caracas dois “Boeing 707” da presidência para transportar as delegações. Foi uma maratona imprevista, extremamente cansativa, destinada a participar num inútil comício de solidariedade eleitoral com o candidato do partido único, José Lopez Portillo. Depois de muitas horas de viagem e de uma paragem em São José da Costa Rica, chegaríamos à capital mexicana na madrugada do dia 25. Nas placas de estacionamento do aeroporto, para além dos nossos anfitriões, esperavam-nos orquestras de “mariachis” e luxuosas hospedeiras que nos encaminhariam para o hotel Camino Real. Com a consciência já tranquila em relação a Portugal, a IS dava-se ao luxo de uma pausa exótica para colaborar com uma farsa Política!
As minhas relações com Felipe González e com Luis Yanez passariam, durante o ano de 1976, de meras relações políticas a relações de amizade e confiança. Além de termos idades mais ou menos próximas, descobriríamos, ao longo de muitas conversas, que as nossas opiniões políticas coincidiam em muitos aspectos. E, ao contrário do secretário-geral do meu partido, eu não sentia nenhuma atracção pelo Partido Socialista Popular, que considerava ter pouco que ver com as realidades espanholas. Era um pequeno grupo de amigos de grande craveira intelectual, alguns dos quais, como era o caso de Raul Morodo, eram extremamente simpáticos. Possuíam muito do “mitterrandismo” que tanto atraía Soares mas, para usar uma frase de Tony Benn, bastava olhar para eles para ver que “não tinham nada que ver com o socialismo das classes trabalhadoras” [41]. O PSP espanhol fazia-me lembrar o nosso MES [42], embora a este último faltasse um líder com o prestígio e a craveira de Tierno Galván, mais conhecido carinhosamente entre os madrilenos pelo nome de “velho professor”. Numa das noites livres em Caracas, González e Yanez convidaram-me para “uns copos” e durante a nossa conversa verifiquei que, embora tivéssemos ideias semelhantes em relação ao PSP, que com o apoio de Mário Soares fazia um grande esforço para ser reconhecido pela IS, González tinha grande admiração por Tierno Galván que considerava um dos grandes teóricos do socialismo espanhol contemporâneo. Eu perguntei-lhe então porque razão ele não fazia um esforço para juntar aquele grupo ao PSOE e, para grande surpresa minha, compreendi que tal ideia lhe não desagradava. Disse-me que uma tal associação dependeria de Tierno que, estava convencido, não simpatizava com a sua liderança do PSOE. Era González quem estava convencido de que Tierno Galván nunca aceitaria uma tal amálgama entre os dois partidos. Eu perguntei-lhe então se ele estaria de acordo que eu contactasse o PSP, com vista a uma primeira aproximação, ao que ele respondeu afirmativamente. Desde que tal empreendimento, disse-me, fosse por minha conta e risco.
Já no México eu falaria com Morodo, que por sua vez consultaria Mário Soares. Este, como é óbvio, ficou encantado com a ideia e renovaria o oferecimento dos serviços do PS enquanto mediador entre aqueles dois partidos. Ficou então decidido que Morodo consultaria Tierno Galván e que González abordaria o assunto na comissão executiva do seu partido, após ser conhecida a opinião de Tierno. Até lá ninguém estava autorizado a revelar o teor das conversas que, curiosamente, seriam sempre feitas por meu intermédio, mesmo em Caracas e no México. González e Morodo, ambos a participar nas mesmas reuniões, nunca falariam um com o outro sobre este tema, embora ambos me tivessem autorizado a prosseguir com a ideia. Pouco tempo depois receberia luz verde para organizar o primeiro encontro entre ambos, que teria lugar em Lisboa, numa sala do hotel Altis, nos dias 8 e 9 de Outubro. No início da reunião convenci-me de que tudo parecia perdido, dada a frieza e formalismo com que se iniciaram os trabalhos e também pela rigidez de posições, sobretudo de Tierno Galván que, na ausência de consultas eleitorais, não acreditava na força do PSOE. Tal e qual como Mário Soares. Mas, depois, a pouco e pouco, Mário Soares foi introduzindo vários cenários, com o optimismo que o caracteriza, e o gelo começou a derreter. Graças à nossa atempada intervenção, Tierno Galván e Felipe González compreenderiam que tudo teriam a ganhar com a unidade entre os seus dois partidos e ficaria estabelecido, como questão de princípio que a haver acordo: a) o nome do partido seria o do PSOE; b) que nesse caso Galván seria proposto para presidente, enquanto González se manteria como secretário-geral e c) que seria designada uma comissão mista para desenvolver estas e outras questões de fundo. A reunião tinha sido um êxito, e no final deste primeiro encontro Mário Soares, então já primeiro-ministro do primeiro governo constitucional, encontrava-se visivelmente satisfeito quando declarou aos media que “os partidos reunidos encontraram importantes pontos de convergência e decidiram continuar as conversações. Estiveram presentes por parte do PS, Mário Soares e Rui Mateus, por parte do PSOE, Felipe González e Luis Yanez e por parte do PSP, Enrique Tierno Galván e Raul Morodo” [43].
Foi assim que nasceu o processo que daria lugar à fusão dos dois partidos, com a integração do Partido Socialista Popular no PSOE, dois anos depois. Os dois partidos, ambos oriundos do partido fundado por Pablo Iglesias, decidiriam “fundir-se num só depois de haverem constatado, através de uma comissão mista constituída para o efeito, a substancial identificação dos seus respectivos textos programáticos, dos seus programas eleitorais, bem como da estratégia que vinham praticando” [44]. A partir daí o relacionamento do PS com o PSOE seria muito mais fácil, sobretudo após nova visita de González a Lisboa em 1977, em que, pela primeira vez, o PS e o PSOE assinariam um comunicado conjunto. Nessa altura, já o PSOE se transformara no maior partido político do país vizinho, continuando, contudo, as relações de Soares com González a ser sempre influenciadas por uma certa desconfiança.
Referências Bibliográficas:
[1] A cimeira socialista teria lugar em Elsinore, a 17 de Janeiro de 1976
[2] República, de 15 de Março de 1975
[3] AFL/CIO — American Federation of Labor/Congress of Industrial Organisations e UAW — United Auto Workers
[4] Jerry Berman & Morton Halpern, The Abuses ofthe lntelligence Agencies, pp.99-109. Center for National Security Studies, Washington DC., 1975
[5] Serviços secretos da RFA
[6] Kari Poutiainen & Pertti Poutiainen, Inuti Labyrinten, p.753, Grimur, Estocolmo, 1994. Os autores deste livro sobre o assassinato de Olof Palme atribuem as declarações a Peter Wright, do MI5 e autor do livro Spycatcher. Esta descrição de Wright é também confirmada por David Leigh autor do livro The Wilson Plot, Heinemann, Londres, 1988.
[7] Kari Poutiainen & Pertti Poutiainen, ob. cit., pp.752-3
[8] Willy Brandt, ob. cit., pp.294 a 298
[9] Willy Brandt, ob. cit., pp.294 a 298
[10] Kari Poutiainen & Pertti Poutiainen, ob. cit., pp.752-3
[11] John Ranelagh, The Agency — The Rise & Decline of the CIA, p.520, Widenfeld and Nicolson, Sceptre edition, 1988
[12] ASIO, Australian Security lntelligence Qrganisation
[13] Gough Whitlam nunca se recomporia da sua forçada demissão que atribuía a um “complot” concertado pela CIA, MI5 e serviços secretos australianos. Quando, em Setembro de 1982, visitei a Austrália a convite do governo conservador, tive oportunidade de almoçar com Gough Whitlam, que conhecia da Internacional Socialista. Parte da história baseia-se na conversa que então tivemos
[14] Kari Poutiainen & Pertti Poutiainen, ob. cit p. 754
[15] Peter Wright, Spy Catcher, p.456, Dell, Publishing, Nova Iorque, 1988
[16] Idem, p.458
[17] Peter Wright, Spy Catcher, ed. cit., p.458
[18] Philip Ziegler, Wilson: The Authorised Life, ed. cit., p.482
[19] Kari Poutiainen & Pertti Poutiainen, ob. cit., p.744
[20] Peter Wright, ob. cit., p.465
[21] Philip Ziegler, ob. cit., p.490
[22] Peter Wright,ob. cit., p.464
[23] Barbara Castle, The Castle Diaries, 1974-1976, p.718, Londres, 1990
[24] Referia-se à campanha eleitoral para as primeiras eleições legislativas, realizadas a 25 de Abril de 1976
[25] Mário Soares, PS: Fronteira da Liberdade, p.106, Edições Portugal Socialista, Lisboa, 1979
[26] Raul Morodo é actualmente embaixador de Espanha em Lisboa. Fernando Morán foi ministro dos negócios estrangeiros de Espanha durante os primeiros governos de González
[27] Mário Soares confessaria a Dominique Pouchin ter sido um «enfant gaté», Portugal: Que Revolução?, ed. cit., p.9
[28] Discurso de Mário Soares em Viena (Áustria), a 12 de Fevereiro de 1976
[29] Após 1985, a comunicação social várias vezes repararia que as relações de Felipe González com o primeiro-ministro português, Cavaco Silva, eram bastante mais calorosas do que as relações existentes com Mário Soares
[30] Nicolas Redondo era então secretário-geral da UGT espanhola
[31] Notas da reunião PS/PSOE, de 18 de Junho de 1975
[32] Diogo Freitas do Amaral, ob. cit., p.521
[33] Tony Benn, The End of an Era, ed. cit., pp.107-8
[34] Teresa de Sousa, Mário Soares, p.97, Nova Cultural, Lisboa, 1988
[35] Pretendia-se associar o PS ao Partido Revolucionário Institucional do México, que governa sozinho aquele país há mais de meio século
[36] Mário Soares, O Futuro Será o Socialismo Democrático, p.103, Publicações Europa-América, Lisboa, 1979
[37] César de Oliveira admitiria no seu livro Anos Decisivos, ed. cit., p.182, ter o PS distribuído milhares de notas de mil escudos com uma caricatura de Sá Carneiro para o associar a uma dívida à banca. Declara ter-se tratado de «humor» eleitoral!
[38] Teresa de Sousa, ob. cit., p.96
[39] Poucos meses após aquela reunião Willy Brandt convidaria Klaus Lindenberg para seu acessor especial, posição que deteria até à morte de Brandt
[40] Mário Soares, O Futuro Será o Socialismo Democrático, p.103, ed. cit
[41] Tony Benn, Against the Tide, ed. cit., p.445
[42] Movimento da Esquerda Socialista
[43] Comunicado do PS de 9 de Outubro de 1976
[44] Declaração da «Unidade Socialista» do PSOE, Madrid, 1 de Maio de 1978