Antes de avançarmos, torna-se necessário submeter a um exame minucioso as fontes da tradição atlante que temos ao nosso dispor, tanto no que diz respeito à sua integridade histórica como à verosimilhança dos factos que contêm. Em relação ao relato de Platão, muitos dos seus comentadores, desde Proclus a Jowett, são da opinião de que se trata meramente de uma fábula, “uma nobre mentira”, inventada por Platão. “Parece-me impossível” diz Archer-Hind, “determinar se Platão inventou a história do princípio ao fim, ou se na realidade ela representa mais ou menos alguma lenda egípcia trazida por Sólon.”[1] Noutros lados ele faz observações sobre a improbabilidade da história. No entanto, censura Stallbaum por adoptar a interpretação errónea que Proclus faz das palavras de Platão, de que a sua história “não é um mero produto de imaginação, mas uma história de factos que ocorreram efectivamente”. Platão é, de facto, abundantemente claro neste ponto. Só no «Timeu» ele enfatiza a historicidade do seu relato em várias passagens. É, diz ele, “estranho, e no entanto perfeitamente verdadeiro”. Sólon, na verdade, tencionava construir um épico com base nesta história, e Crítias recordava vivamente os seus pormenores, por a ter ouvido em rapaz, e lhe ter ficado “indelevelmente fixada” na mente “como imagens encáusticas” sobre azulejos. Sócrates, no «Timeu», diz o seguinte: “O facto de não se tratar de uma história fictícia, mas sim verdadeira, é certamente um ponto a seu favor.” No «Crítias», Platão coloca ainda Crítias a dizer que o seu bisavô possuía um relato escrito sobre a Atlântida. Platão, portanto, envidou esforços fora do normal para sublinhar a autenticidade do seu relato.
A visita de Sólon ao Egipto também parece um facto indubitável. Plutarco, na sua «Life of Solon» (cap. 26) e na sua «De Iside et Osiride» (cap. 10), afirma que Sólon visitou o Egipto e conversou com o sacerdote Sonchis, em Saís. Este, segundo Clemente de Alexandria, era também o nome do sacerdote que instruiu Pitágoras na Ciência dos egípcios. Proclus, na sua dissertação sobre o «Timeu», diz que Platão também visitou o Egipto e falou em Saís com o sacerdote Pateneit, em Heliopólis com o sacerdote Ochlapi, e em Sebennytus com o sacerdote Ethimon. Menciona que Pateneit é, indubitavelmente, o sacerdote a que o «Timeu» faz alusão.
Afirma-se no «Crítias» que Sólon escrevera um grande poema épico sobre a Atlântida, e que as suas notas sobre o assunto tinham passado para o jovem Crítias. Este recebera-as do seu avô, Crítias, filho de Dropides. Ora o segundo Crítias, segundo uma genealogia preservada por Proclus, era primo-irmão da mãe de Platão. Ast e Kleine, nas suas críticas das obras de Platão, afirmam a sua convicção de que terá sido ele o primeiro a trazer a tradição atlante do Egipto. Plutarco sustenta expressamente a afirmação de Platão de que Sólon tencionava escrever um poema sobre a Atlântida, mas viu-se obrigado a renunciar a essa intenção devido à sua idade avançada. No «Timeu», Platão exprime eloquentemente o seu pesar por este plano não ter sido levado adiante. Martin, na sua «Dissertation sur l’Atlantide» (p. 323), declara a sua convicção de que Platão, sabendo que tinha laços familiares com Sólon, tentara dedicadamente realizar a intenção do seu parente e, com este objectivo, utilizou como base da sua narrativa o material tradicional que chegara até ele.
Crantor, que morreu trinta e três anos depois de Platão, e que foi um dos seus mais conhecidos comentadores, afirma que, no seu tempo, os sacerdotes egípcios tinham mostrado aos gregos certas colunas ou pilares nas quais afirmavam estar inscrita a história da Atlântida. Naturalmente, é bem conhecido que Saís, onde Sólon ouviu a história da Atlântida, era uma cidade intimamente associada com a Grécia. Era, de facto, um centro da cultura grega. O seu período de maior prosperidade foi entre 697 e 524 a. C., e um dos seus monarcas, Psammetichus, conservou o trono com a ajuda de mercenários gregos. Educou os filhos no saber grego e encorajou a afluência dos gregos à sua capital. Esta relação entre Saís e Atenas era especialmente promovida pelo facto de ambas adorarem a mesma divindade, Neith-Atena. Daí surgiu a noção de que Cecrops, o saíta, tinha conduzido uma colónia até Atenas. Os sacerdotes de Saís parecem, de facto, ter estado ansiosos para cair nas boas graças dos atenienses, através da descoberta de semelhanças entre as instituições áticas e egípcias. Em Saís havia um quarteirão separado para os gregos. Tão forte era, na realidade, o elemento helénico em Saís, que se debatia se tinham sido os saítas a colonizar Ática ou os atenienses a colonizar Saís.
Assim sendo, se os sacerdotes de Saís relataram a história da Atlântida a Sólon, certamente que a devem ter também transmitido a muitos outros gregos com quem se associavam constantemente. O facto de não existir qualquer outro relato concreto a esse respeito não é surpreendente, se tivermos em conta o carácter comercial dos helenos com quem deviam ter contacto. Mas, se o relato de Platão não tivesse sido herdado de Sólon, e a sua forma egípcia não fosse corrente em Saís, existiam milhares de gregos que podiam tê-lo contradito, e, quando recordamos o extraordinário interesse que a história de Platão despertou sem dúvida no mundo antigo, parece evidente que alguma negação desse género teria chegado a Atenas, mais cedo ou mais tarde.
Em relação a um aspecto totalmente diferente do relato de Platão, é extraordinário como as circunstâncias da sua história encaixam bem com as que a ciência da Arqueologia nos garante que devem ter ocorrido na Europa antiga. Este ponto será tratado detalhadamente mais à frente. Basta dizer aqui que a data aproximada que o relato de Platão atribui à invasão atlante coincide com aquela em que os povos azilenses-tardenoisenses, os antepassados da raça ibérica, invadiram a Europa, e as regiões europeias e africanas que ele considerava como tributárias da Atlântida. “A Líbia, até ao Egipto, e a Europa, até às fronteiras da Etrúria”, são precisamente as regiões em que os proto-iberos encontraram as suas bases mais firmes.
O «Timeu» afirma que Atenas libertou a Europa da tirania atlante. Sabe-se com certeza que não existia ainda nenhuma Atenas na data (9600 a. C.) a que Platão se refere. A data em questão é milhares de anos anterior à Primeira Dinastia Egípcia, e tudo o que se encontrou na localização de Atenas, de épocas anteriores, foram pequenas quantidades de cerâmica neolítica ou da Nova Idade da Pedra. Ao mesmo tempo, como veremos, a Europa e a África não estavam na época num estado de barbárie abjecta, e é possível que a memória da resistência oferecida pelos nativos às crescentes hordas de proto-iberos fosse vagamente recordada pelos seus povos durante os séculos intermédios.
“Mais tarde” disse o informador egípcio de Sólon, “depois de imensos terramotos e inundações, abateu-se um dia e uma noite de destruição; e os guerreiros do teu país foram, como um só, engolidos pela terra, e do mesmo modo a ilha da Atlântida afundou-se sob o mar e desapareceu.” Aqui é perceptível que os gregos são destruídos por um evento terrestre e os atlantes por um evento marítimo, e acredito que, nesta passagem, temos uma pista quanto ao carácter histórico e verídico do relato de Platão. Palas Atena, a deusa padroeira de Atenas, era inimiga declarada de Poseidon, o deus associado com a Atlântida como divindade epónima e fundadora, e a luta que travou com ele pela posse de Atenas é celebrada na mitologia grega. Ora, um dos escoliastas de Platão afirma que a vitória dos atenienses sobre os atlantes foi efectivamente representada num peplo, ou peça de roupa feminina simbólica, dedicado às Panataneias Menores, ou festival de Atena. Podemos então inferir que a luta entre os atenienses, o povo de Atena, e os atlantes, o povo de Poseidon ou Neptuno, deus do mar, passou a ter para os primeiros um carácter definitivamente histórico, originando uma verdadeira memória popular. As Panataneias, podemos mencionar de passagem, foram fundadas pelo menos cento e vinte e cinco anos antes do tempo de Platão, de modo que, se pudermos confiar na afirmação dos escoliastas, a tradição da guerra ateniense com os atlantes, quer seja mitológica ou histórica, devia já ser bem conhecida dos atenienses mais de um século antes do tempo de Platão, e isto acabaria de imediato com a muito repetida pretensão de que ele fabricara deliberadamente a história. “É muito pouco credível que seja inteiramente invenção de Platão” observa o perspicaz Philip Smith, no seu artigo sobre a “Atlântida” no «Dictionary of Greek and Roman Geography», de William Smith. “A lenda encontra-se sob outras formas que não parecem ter sido inteiramente copiadas de Platão.” Isto recorda-nos a citação que Estrabão faz de Poseidónio, no sentido de ser mais razoável acreditar que a Atlântida existiu em tempos e depois se afundou, do que dizer que “o seu inventor a fez desaparecer”.
Pode-se dizer que, se a afirmação relativa ao peplo é verdadeira, então Platão limitou-se a utilizar um mito local como base para a sua história. Por que motivo, nesse caso, colocou ele tanto ênfase na veracidade do seu relato e atribuiu a sua origem a uma fonte egípcia? É evidente que Platão devia conhecer a versão ateniense representada no peplo. Ele fala pouco sobre a sua confirmação local, apesar de estar com certeza bem consciente da sua relevância no festival das Panataneias, possivelmente porque encarava o conhecimento ateniense do facto como notório e portanto desnecessário de mencionar. Era, como Sócrates diz no diálogo do «Timeu», especialmente apropriado para o festival da deusa, devido à sua relação com ela, prova incontestável de que Platão conhecia as associações atenienses das Panataneias. A razão pela qual colocou o ênfase sobre a versão egípcia terá sido, talvez, apenas porque lhe dava uma ratificação mais antiga, e corroborava e reforçava aquilo que podia parecer aos ignorantes uma mera tradição local, sem qualquer evidência documental por trás, e que poderia ser confundida com uma invenção local se não fosse a sua colação com o relato egípcio e a amplificação proporcionada por este. De facto, é bem possível que Platão tivesse essa intenção em mente, tanto quanto a de ilustrar a sua tese Política.
Quando recordamos a luta entre Palas Atena e Poseidon, que parece, como já foi dito, ter uma distinta relevância sobre a lenda atlante na Grécia, não é estranho encontrar um escritor na The Occult Review de Setembro de 1923, que descobre na «Odisseia» de Homero mais evidências das implicações atlantes nesta contenda mitológica. Ulisses, ao regressar de Tróia, aterra na ilha do Ciclope e consegue escapar a essa perigosa proximidade apenas depois de muitas aventuras desesperadas. Na verdade, como o escritor afirma: “Temos na «Odisseia», narrada por Homero, um relato do herói homérico, Ulisses, cujas deambulações e aventuras eram na realidade uma única luta prolongada com Poseidon, isto é, com a divindade atlante.” Na ilha de Ogígia, onde é feito prisioneiro pela feiticeira Calipso, filha do “mago” Atlas, ele é auxiliado por Atena, que o toma sob a sua protecção. Mais uma vez, então, descobrimos a deusa ateniense em confronto com a divindade da Atlântida, e desta vez de um modo que, mais notavelmente do que antes, lança alguma luz sobre as associações atlantes da contenda. Assim encontramos Palas Atena, a deusa de Atenas, duplamente relacionada com as personalidades da Atlântida. As circunstâncias em que toma o partido de Ulisses contra Poseidon, o deus atlante, e a sua neta Calipso, filha de Atlas, vêm reforçar a hipótese da sua relação com o mito atlante, como já foi descrita acima.
A verdade da afirmação “até hoje, o oceano nesse local é intransponível e imperscrutável, bloqueado por baixios causados pela ilha quando se afundou” é abundantemente confirmada por vários escritores da antiguidade. Scilax de Carianda, que escreveu antes do tempo de Alexandre, o Grande, e foi aproximadamente contemporâneo de Platão, afirma no seu «Periplus» que Cerne, uma ilha na costa da África Ocidental, “fica a doze dias de cabotagem para além das Colunas de Hércules, onde as regiões já não são navegáveis por causa dos baixios, lama e algas[…] As algas têm a largura da palma de uma mão e são pontiagudas nas extremidades para picar.”
Quando Himilco se separou de Hanno durante a sua viagem a partir de Cartago, em busca de terras desconhecidas, por volta de 500 a. C., encontrou, segundo o poeta Festus Avienus, “algas, baixios, calmas e perigos” no Atlântico. Avienus escrevia por volta do Século IV d. C., mas declara estar a repetir o relato de Himilco. Diz: “Não há brisa para impelir o navio, de tal forma é morto o vento lento deste mar inerte. Ele (Himilco) diz também que há muitas algas entre as ondas, e que muitas vezes estas prendem o navio, como arbustos. Apesar disso, ele diz que o mar não é muito profundo, e que a superfície da terra mal está coberta por um pouco de água. Os monstros do mar deslocam-se continuamente de um lado para o outro, e os animais selvagens nadam entre os navios indolentes, que se arrastam lentamente.” Avienus diz também, noutro lado: “Mais a oeste destas Colunas há um mar sem fim.” Himilco relata que “ninguém navegou em navios sobre estas águas, porque os ventos impulsionadores estão ausentes […] igualmente porque a escuridão filtra a luz do dia com uma espécie de manto, e porque o mar está sempre oculto por nevoeiro.”
Também Aristóteles diz, na sua «Meteorologica», que o mar para além das Colunas de Hércules era lamacento, raso, e que os ventos quase não o agitavam. Aristóteles foi em tempos discípulo de Platão, e isto parece fornecer boas provas de que a afirmação deste se fundava nas melhores informações disponíveis, e terá sido provavelmente adquirida através de marinheiros fenícios ou gregos.
Mas temos outras evidências, para além das clássicas, sobre a impossibilidade de navegar no Atlântico, evidências que datam de um período consideravelmente posterior. Edrisi, o escritor árabe, diz que os Magrurin, certos marinheiros mouros de Lisboa que partiram em busca de uma ilha atlântica, num período indefinido algures entre o Século VIII e o Século IX, encontraram uma zona de oceano intransponível e viram-se forçados a alterar o seu rumo, tendo aparentemente alcançado uma das Ilhas Canárias. Também o mapa Pizigani, de 1367, tem uma rubrica que contém um solene protesto contra as tentativas de navegar pela zona de oceano não navegável para lá dos Açores, na vizinhança da qual começa o mar dos Sargaços.
Dediquemos agora a nossa atenção aos detalhes do Crítias. O primeiro ponto que nos salta à vista é a afirmação feita por Crítias de que os sacerdotes de Saís já tinham dado um aspecto egípcio aos nomes dos atlantes no relato, e que ele (Crítias) se vira obrigado a transpô-los “para grego”. Se a história fosse uma fábula, dificilmente ele se daria ao trabalho de esclarecer este ponto. Mas é difícil compreender como podiam, exactamente, os nomes de Poseidon ou Atlas ser traduzidos para egípcio. Os egípcios não tinham qualquer divindade correspondente a Poseidon, e nenhuma que pudesse ser prontamente equiparada a Atlas, o portador da terra. No entanto, as divindades mencionadas no relato de Diodoro podem ser facilmente associadas com formas egípcias, e é possível que Crítias ou Platão tenham simplesmente recorrido aos nomes correntes na versão ateniense local da lenda atlante relacionada com as Panataneias. Isto justificaria certamente a aparição de Poseidon, que no mito estava intimamente associado a Palas Atena, a padroeira da cidade, e que era o único progenitor dos atlantes.
O único nome dos filhos de Poseidon que nos foi outorgado na sua forma atlante é o de Gadiro, “que ficou com a sua porção de terra na extremidade desta ilha, perto das Colunas de Hércules, e essa região é desde então conhecida como Gadírica“. Isto é equivalente ao nome clássico da região de Cádiz, em Espanha, e sugere uma forte proximidade entre as costas espanhola e atlante.
Proponho que discutamos os detalhes relativos à topografia e à localização da Atlântida no capítulo que fala da sua geografia. Aqui vamos apenas considerar alguns pontos menores mas, apesar disso, assinaláveis. O clima da Atlântida parece ter correspondido, segundo o relato de Platão, ao das Ilhas Canárias, mas duas circunstâncias se combinam para lhe dar um aspecto distintamente africano: a afirmação de que grandes manadas de elefantes percorriam os pântanos, e de que lá florescia “um fruto com casca dura” que fornecia tanto polpa como bebida e unguento. Esta descrição só pode referir-se ao coco. Muito se disse sobre estas afirmações, tanto a favor como contra. A presença do elefante como contemporâneo do homem no sul da Europa é geralmente encarada pelos arqueólogos como “não provada”, mas parece não haver boas razões para duvidar da existência relativamente tardia desses animais num Ambiente mais adequado, a nível climatérico, e provavelmente com características africanas.
Uma vez que o governo e a religião da Atlântida serão também tratados separadamente, não será necessário criticar aqui as passagens do relato de Platão que aludem aos mesmos. Mas podemos notar, de passagem, que as observações de Platão relativamente a estes temas estão em consonância com o que sabemos da antiga civilização “azilense” em Espanha e no sul de França. Nestas áreas o touro era venerado e a cerimónia em torno do seu sacrifício, que Platão descreve, pode muito bem ser ilustrativa de alguma vaga memória popular de um ritual bárbaro da era azilense que, em alguns dos seus aspectos, tenha continuado a sobreviver em tempos “clássicos”, e cujos últimos vestígios ainda existem, sob a forma das touradas. A luta de touros com cães, mesmo em Inglaterra, continuou a ter um significado semi-religioso até ao princípio do Século XVIII, e estava associada a um cerimonial de origem indubitavelmente pagã. É também facilmente demonstrável que sobreviveu noutros pontos da Europa até um período relativamente tardio.
O relato de Platão da história atlante interrompe-se de modo abrupto, e ficou provavelmente por terminar devido à sua morte. Não há dúvida de que ele o utilizou para ilustrar as suas ideias sobre o estado político humano perfeito, mas isso não é razão para dizer que o inventou apenas com esse objectivo. É natural que os detalhes arquitectónicos tenham uma tonalidade grega, bem como persa, mas não é necessário deduzir a partir desta circunstância que ele pretendia que fosse uma alegoria da Guerra Persa, como tem sido afirmado tantas vezes. Na verdade, muitos dos seus detalhes, por exemplo, a natureza insular e marítima da Atlântida, tornam essas teorias bastante insustentáveis. Mas o relato de Platão, considerado no seu todo, é em si mesmo a melhor refutação dessa hipótese.
O relato de Diodoro levanta um conjunto muito diferente de questões. Envolve-nos de imediato numa consideração da questão de até que ponto o mito grego das Hespérides tem ou não alguma relevância na questão da Atlântida. Numa passagem, Diodoro parece colocar a Atlântida na costa ocidental de África, ou pelo menos diz que “faz fronteira com o oceano”, e não aparece definitivamente como uma região insular. Na verdade, a ilha Hespéria, habitada pelas amazonas, coincide muito mais de perto com os detalhes do relato de Platão no que diz respeito à localização, à excepção de ser descrita como desprovida de milho. É vulcânica e dada a terramotos, e está cheia de árvores de fruta e rebanhos de ovelhas e cabras, tal como ainda acontece nas Canárias. Mas penso que posso discernir na descrição das amazonas uma forte semelhança com o povo azilense que invadiu a Europa há cerca de dez mil anos, tal como se pode observar nas suas pinturas rupestres ainda existentes. Esta raça, progenitora dos iberos, foi a primeira a inventar o arco, e devido à sua aparência efeminada e à forma como usavam o cabelo arranjado no alto da cabeça, podem ter parecido femininos aos seus inimigos. A história da Atlântida, tal como é mencionada por Diodoro, só pode ser compreendida mediante uma comparação com os detalhes da mitologia grega. Mas a afirmação de Diodoro de que “consta” que uma zona atlântica foi engolida pelo mar é valiosa para ilustrar o facto de, quase quatrocentos anos depois do tempo de Platão, a crença no afundamento de uma região atlântica estar amplamente disseminada. Não devemos também ignorar a afirmação de um escritor relativamente recente, como é Poseidónio, de que a narrativa de Platão não deve ser considerada ficção, uma vez que é sabido que a terra sofreu mudanças, uma afirmação na qual é apoiado por Estrabão, e que revela que, no final da era pré-cristã, estava a começar a ganhar forma uma opinião geológica em apoio da teoria atlante. Na verdade, como Philip Smith observa no relato do qual já falámos: “Os que a consideram (a história da Atlântida) pura ficção, mas de origem antiga, encaram-na como derivada da noção muito antiga, encontrada em Homero e em Hesíodo, de que o domicílio dos heróis depois da morte ficava nos extremos ocidentais, para além do rio Oceano, uma localização naturalmente considerada como estando para lá dos limites da terra habitada. É muito provável que a fabulosa prosperidade e felicidade dos atlantes estivesse de alguma forma relacionada com estas representações poéticas, da mesma forma que, quando foram efectivamente descobertas ilhas ao largo da costa de África, estas foram chamadas as Ilhas Afortunadas. Mas há partes importantes da lenda que continuam por explicar: o seu carácter mitológico, a sua origem nos sacerdotes egípcios, ou noutras fontes orientais; e aquilo que é, em Platão, a parte mais importante, o suposto conflito dos atlantes com os povos do Velho Mundo.”
Este perspicaz escritor foi, com estas observações, à raiz do problema. O que ele diz, com efeito, é que se a crença na Atlântida era mitológica, ou estava de alguma forma relacionada com a história religiosa ou ficcional dos gregos, os defensores dessa teoria não podem deixá-la sem mais, mas têm de aduzir provas que justifiquem a sua origem mitológica. Nunca é demais realçar que todas as tradições têm uma base factual. As raças, enquanto semi-civilizadas ou bárbaras, não fabricam deliberadamente estas ideias, como a que afirma que as Ilhas Afortunadas a oeste eram o local de recompensa dos heróis mortos. Podemos mencionar uma centena de mitos para mostrar que estas ideias, na verdade, nascem da memória de uma região ocidental de onde teve origem uma primeira migração. E tem especial interesse para o problema que temos em mãos o facto de alguns dos crânios sepultados do povo azilense, já mencionado, estarem colocados voltados para Oeste — um sinal certo de que essa era uma região encarada como possuidora de uma santidade especial. O mito da Guerra entre os deuses e os titãs parece, ao escritor, fornecer essa prova exigida por Smith para justificar a origem mitológica da Atlântida.
No que diz respeito à cronologia de Platão, podemos mostrar que não é de forma alguma baseada em improbabilidade, quando levamos em conta todas as circunstâncias da invasão da Europa pelos azilenses. O argumento de que a data de Platão é errónea foi recentemente abordado por M. F. Butavand na sua «La Veritable Histoire de L’Atlantide», onde ele diz (pp. 6-7): “Esta data é certamente errónea, pois no período mencionado a República Grega não existia; a civilização do Egipto não existia; as afirmações do sacerdote de Saís não são compreensíveis. As questões matemáticas e, acima de tudo, cronológicas, quando abordadas pelos escritores da antiguidade, apresentam frequentemente erros, e é possível rectificá-los recorrendo a duas computações erróneas bem conhecidas. Os povos do Mediterrâneo, e muitos outros, numa certa época fixa, contavam de oito em oito, antes de chegarem ao uso de um sistema decimal. Os autores que nos transmitiram relatos antigos esqueceram-se muitas vezes de transformar o sistema antigo para o sistema decimal […] o número nove está fora de questão, uma vez que não existe no sistema octogonal.”
Tanto quanto conseguimos descobrir, não existe absolutamente nenhuma base factual para esta afirmação. É possível que tenha sido empregue um sistema octogonal na Europa antiga, tal como na América antiga se utilizava um sistema igualmente diferente do decimal, mas não vejo como é que isso pode ter alguma relevância para a cronologia de Platão. Mais razoável, aparentemente, é a afirmação de M. Butavand, que diz que Eudoxus de Cnidus, que estudara Astronomia no Egipto e estava bem qualificado para verificar o relato do sacerdote de Saís, declarou que a duração de tempo indicada por Crítias não era de nove mil anos, mas sim de nove mil meses. Isto colocaria a data de fundação da Atlântida cerca de mil e quatrocentos anos antes da nossa era, ou por volta da altura da XIX Dinastia no Egipto. Mas o sistema cronológico egípcio, sobre o qual o relato de Platão deve manifestamente basear-se, era sem dúvida de carácter decimal, e a substituição de meses por anos na consideração da cronologia atlante não é, de modo algum, uma inovação.
NOTAS:
[1] Timeu, p. 78, nota.