Regulação de Medicamentos: Monitorização dos Efeitos Secundários

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Efeitos Secundários
Efeitos Secundários

No entanto, a eficácia é só uma parte da história. Além da questão de saber que o medicamento é mais eficaz, ainda há o problema da segurança. Tal como muitos médicos, não paro de me espantar com o entusiasmo com que os meus colegas se lançam a receitar Medicamentos novos. Quando surge um medicamento no mercado, sem benefícios comprovados em relação ao que já existia, o que se está a propor a médicos e doentes não é mais do que uma opção: quer usar um medi­camento velho, uma quantidade conhecida, cujos efeitos secundários monitorizamos há muito anos? Ou quer tomar um medicamento com­pletamente novo, sem vantagens comprovadas, que pode, tanto quanto sabemos, ter efeitos secundários horríveis e idiossincrásicos prestes a surgirem sub-repticiamente?

Ensinaram-me na faculdade de Medicina que, nesta situação, um médico deve encarar o resto do corpo médico como actores du­plos não-remunerados: eles que corram os riscos e cometam os erros, que nós ficamos sossegadinhos, a observar, a aprender, e voltamos quando for seguro. Em alguns aspectos, dir-se-ia que é um conselho útil para a vida em geral. Mas como são monitorizados os efeitos se­cundários?

Quando um medicamento é aprovado, é necessário avaliar a sua segurança. Trata-se de uma actividade complexa, com genuínos desa­fios metodológicos, há que dizê-lo, e lacunas flagrantes e desnecessá­rias. As falhas são provocadas por um secretismo desnecessário, por uma comunicação deficiente e por uma relutância institucional em re­tirar Medicamentos do mercado. Para compreendermos o que se passa, temos de entender as bases da chamada “farmacovigilância”.

Medicamentos
Medicamentos

Há que reconhecer, mesmo antes de começar, que os Medica­mentos chegarão sempre ao mercado com efeitos secundários impre­vistos. Isto acontece porque necessitamos de dados de muitos doentes para detectar efeitos secundários raros, mas os ensaios utilizados para efeitos de aprovação de um medicamento costumam ser pequenos, to­talizando entre 500 a 3000 pessoas. Com efeito, conseguimos quanti­ficar a frequência que um efeito secundário deve ter para ser detec­tado num pequeno número de pessoas, usando uma regra simples de matemática, a chamada “regra de três”. Se se estudam quinhentos doentes em ensaios anteriores à aprovação, esse número só é suficiente para detectar os efeitos secundários que ocorrem em mais que uma em cada 166 pessoas; se se estudam 3000 doentes, esse número continua a só ser suficiente para detectar efeitos secundários que afectam mais que uma em cada 1000 pessoas. A regra geral aqui é fácil de aplicar: se um efeito secundário ainda não ocorreu em n doentes, podemos estar 95% confiantes de que acontecerá em menos de um em 3In doen­tes (eis uma explicação matemática para isto, se estiver interessado, mas faz-me doer a cabeça[1]). Pode usar a regra de três na vida real: se trezentos pára-quedas abriram bem, por exemplo, não se sabendo mais nada, a probabilidade de um não abrir e de lhe causar uma morte certa, é, no mínimo inferior a um em cem, o que pode ou não ser tranquili­zante para si.

Contextualizemos: o nosso medicamento pode fazer com que uma em cada 5000 pessoas expluda literalmente (arrancando-lhe a cabeça, fazendo-lhe voar os intestinos), através de um qualquer mecanismo idiossincrásico que ninguém teria podido prever. Mas, no momento em que o medicamento é aprovado, depois de 1000 pessoas apenas o terem tomado, é muito provável que nunca tenhamos presenciado uma dessas mortes espectaculares e infelizes. No entanto, depois de 50.000 pessoas terem tomado o nosso medicamento, cá fora, no mundo real, esperaríamos ter visto cerca de dez pessoas a explodir (visto que, em média, faz explodir uma em 5000 pessoas).

Então, se o nosso medicamento está a causar um acontecimento adverso raríssimo, como uma explosão, somos na verdade muito afortunados, porque os acontecimentos adversos estranhos destacam-se realmente, pois ainda não aconteceu nada do género. As pessoas falarão em doentes que explodem, escreverão relatos curtos em revistas académicas, notificarão provavelmente várias autoridades, é possível que venham a estar envolvidos médicos legistas, sorão alarmes e investigar-se-á o que anda a fazer explodir doentes subitamente, muito cedo, provavelmente logo depois de ter explodido o primeiro.

Porém, muitos acontecimentos adversos causados por medicamentos são coisas muito comuns, seja como for. Se o nosso medicamento aumenta as probabilidades de alguém passar a sofrer de insuficiência cardíaca, bom, como já há muitas pessoas com insuficiência cardíaca, se os médicos virem mais um caso desses no seu consultório, é provável que não dêem por isso, sobretudo se o medicamento é receitado a idosos que, seja como for, já costumam sofrer de insuficiência cardíaca. É que pode ser difícil detectar um sinal de aumento de insuficiência cardíaca mesmo num grande número de doentes.

Isto ajuda-nos a compreender os diversos mecanismos de monitorização dos efeitos secundários utilizados por empresas da Indústria Farmacêutica, reguladores e académicos. Em linhas gerais, estes mecanismos classificam-se em três grupos:

  1. Relatórios espontâneos de efeitos secundários, enviados ao regulador por doentes e médicos;
  2. Estudos de «epidemiologia» baseados em registos de Saúde de grandes grupos de doentes;
  3. Relatórios de dados de empresas da Indústria Farmacêutica.

Os relatórios espontâneos são um sistema mais simples. Na maior parte dos países, quando um médico suspeita que um doente desenvolveu qualquer tipo de reacção adversa a um medicamento, pode notificar a autoridade local competente. No Reino Unido, isto faz-se por intermédio do Sistema do Cartão Amarelo (Yellow Card System): esses postais de porte pago são fornecidos a todos os médicos, facilitando a utilização do sistema, e os próprios doentes também podem relatar acontecimentos adversos suspeitos, online, em yellowcard.mhra.gov.uk.

PRR
PRR

Estes relatórios espontâneos são, depois, classificados manualmente, e lançados numa gigantesca folha de cálculo, com uma linha para cada medicamento existente no mercado, e uma coluna para cada tipo imaginável de efeito secundário. Depois, olha-se para a frequência de cada tipo de efeito secundário para cada medicamento, e tenta-se decidir se o número é maior do que aquele que se esperaria. (Se o leitor tem queda para a estatística, os nomes das ferramentas utilizadas, como PRR, “proportional reporting ratio“, ou BCPNN, !Bayesian confidence propagation neural networks“, dar-lhe-ão uma ideia de como isto funciona. Se não tem queda para a estatística, não está a per­der nada; pelo menos, não mais do que noutros aspectos da sua vida).

Este sistema é útil para detectar efeitos secundários invulgares: um medicamento que faz explodir literalmente a nossa cabeça e abdómen, por exemplo, seria detectado com bastante facilidade, como vimos. Existem outros sistemas a nível internacional, a maior parte dos resul­tados de todo o mundo é tratada em conjunto pela OMS em Uppsala, e os académicos e as empresas podem solicitar o acesso a eles, com um êxito variável (como se pode ver nesta longa nota).

Esta abordagem, no entanto, padece de um grave mal: nem todos os efeitos adversos são notificados. No Reino Unido, estima-se que só cerca de um em vinte é relatado à MHRA. Não é por os médicos serem negligentes. Se fosse esse o motivo, seria perfeito, porque, pelo menos, ficaríamos a saber que todos os efeitos secundários de todos os Medica­mentos tinham igual probabilidade de não serem notificados, e ainda poderíamos comparar de forma útil as proporções dos efeitos secundá­rios relatados, tanto entre si como entre os diferentes Medicamentos.

Receita médica
Receita médica

Infelizmente, os diferentes efeitos secundários de diferentes Fármacos são notificados em proporções muito diferentes. Um médico pode ter mais tendência a suspeitar de que um sintoma é um efeito se­cundário se o doente está a tomar um medicamento que é novo no mer­cado, por exemplo, pelo que a notificação desses casos pode ser supe­rior à dos efeitos secundários de Fármacos mais velhos. Do mesmo modo, se um doente desenvolve um efeito secundário cuja associação a um determinado medicamento já é bem conhecida, o médico terá muito menos tendência a comunicá-lo, porque não é um indicador de segurança novo e interessante, mas apenas um exemplo enfadonho de um fenómeno bem conhecido. E se houver boatos ou artigos de jomal sobre problemas com um medicamento, os médicos talvez se sintam mais inclinados a comunicar espontaneamente acontecimentos adver­sos, não por maldade, mas simplesmente porque é mais provável que se lembrem de ter receitado um medicamento controverso quando o doente volta à consulta com um problema médico estranho.

Além disso, as suspeitas de um médico de que algo é um efeito secundário serão muito mais pequenas se for um problema que, de qualquer modo, está sempre a acontecer, como já vimos: posto que as pessoas têm dores de cabeça com frequência, por exemplo, ou dores nas articulações, ou cancro, talvez nem sequer passe pela cabeça de um médico que esses problemas se relacionam com a receita que pas­sou. Seja como for, no pano de fundo de um número tão elevado de pessoas com esses sinais, será difícil distinguir esses acontecimentos adversos, sobretudo se surgem muito tempo depois de o doente come­çar a tomar o novo fármaco.

Explicar estes problemas é extremamente difícil. Portanto, a no­tificação espontânea pode ser útil se os acontecimentos adversos são extremamente raros na ausência do fármaco, ou se surgem rapida­mente, ou se são o tipo de coisa que costuma ser considerada como reacção adversa medicamentosa (uma erupção cutânea, por exemplo, ou uma diminuição invulgar do número de glóbulos brancos). Mas, em geral, embora esses sistemas sejam importantes e contribuam para emitir utilmente muitos sinais de alarme, só costumam ser usados para identificar suspeitas, que são, depois, testadas em formas mais robus­tas de dados.

NHS
NHS

A análise dos registos clínicos de grande número de pessoas, nos chamados estudos “epidemiológicos”, pode fornecer dados melhores. Nos Estados Unidos, isto é difícil, e o melhor que se pode arranjar são as bases de dados administrativas usadas para processar os pagamen­tos dos serviços médicos, que não contêm a maior parte dos porme­nores. No Reino Unido, no entanto, estamos neste momento numa posição muito afortunada e invulgar pois, além de os cuidados de Saúde serem fornecidos pelo Estado, são-no por intermédio de uma única entidade administrativa, o nosso NHS (Serviço Nacional de Saúde). Em consequência desta feliz situação, possuímos grandes núme­ros de registos clínicos que podem ser utilizados para monitorizar os benefícios e riscos dos tratamentos. Embora não tenhamos conseguido concretizar sistematicamente todo este potencial, existe uma base de dados de investigação de clínica geral, com registos de vários milhões de pessoas (General Practice Research Database). Esses registos estão salvaguardados, para proteger o anonimato, mas os investigadores das empresas da Indústria Farmacêutica, os reguladores e as universidades têm podido, desde há vários anos, solicitar o acesso a partes específi­cas desses registos, a fim de verificar se existe associação entre deter­minados Medicamentos e danos inesperados. (Terei de fazer uma declaração de interesses porque, à semelhança de muitos outros aca­démicos, tenho analisado alguns dados desta base, embora não para procurar efeitos secundários).

Estudar a segurança de Medicamentos a partir dos registos médi­cos integrais dos doentes a quem estes são receitados numa prática clí­nica normal apresenta imensas vantagens sobre a notificação espontâ­nea de dados, por muitas razões. Em primeiro lugar, dispomos de todas as anotações do médico sobre o doente, em forma codificada, tal como surgem no computador do médico, sem que este tenha de decidir se se deve preocupar em realçar um determinado desfecho.

GPRD - General Practice Research Database
GPRD – General Practice Research Database

E também muito mais vantajoso do que os pequenos ensaios para aprovação, porque dispomos de muitos dados, o que nos permite pro­curar desfechos raros. Além disso, trata-se de doentes reais. As pessoas que participam em ensaios são geralmente “doentes ideais” invulga­res: são mais saudáveis que os doentes reais, com menos problemas médicos de outro tipo, tomam menos Medicamentos para outras situa­ções, costumam ser mais novos, as mulheres raras vezes estão grávidas, etc. As empresas da Indústria Farmacêutica gostam de experimentar os seus Medicamentos nesses doentes ideais, porque as pessoas mais sau­dáveis tendem mais a melhorar e a fazer com que o medicamento pa­reça bom. Aumentam igualmente a probabilidade de um resultado po­sitivo num ensaio mais curto e mais barato. Com efeito, trata-se de mais uma vantagem dos estudos realizados a partir das bases de dados: os en­saios para aprovação costumam ser de curta duração, expondo os doen­tes aos Fármacos por um período de tempo mais curto do que a duração normal de uma prescrição. Mas os estudos realizados a partir das bases de dados formecem-nos informações sobre o que os Medicamentos fazem aos doentes no mundo real, em condições do mundo real (e, como veremos, isto não se restringe à questão dos efeitos secundários).

Com esses dados, podemos procurar uma associação entre um de­terminado medicamento e um risco acrescido de um desfecho que já é comum, como ataques cardíacos, por exemplo. Podemos comparar o risco de ataques cardíacos entre doentes que tomaram três tipos dife­rentes de Medicamentos para fungos nos pés, por exemplo, se estamos preocupados com a possibilidade de um deles fazer mal ao coração. Como é evidente, não é assim tão simples quanto isso, em parte por­ que temos de tomar decisões importantes sobre o que iremos compa­rar e com quê, o que pode influenciar os nossos resultados. Por exem­plo, devemos comparar pessoas que tomam o medicamento que nos preocupa com pessoas que tomam um semelhante, ou com pessoas da mesma idade mas que não tomam qualquer medicamento? Se optar­mos por esta última, será que os doentes com fungos nos pés são com­paráveis aos doentes saudáveis, da mesma idade, constantes da nossa base de dados? Não será maior a probabilidade de os doentes com fun­gos nos pés sofrerem de diabetes?

Também podemos ser apanhados por um fenómeno chamado “ca­nalização”: aos doentes que se queixaram antes de problemas com Me­dicamentos receita-se preferencialmente um medicamento com uma reputação sólida de ser seguro. Em consequência, entre os doentes que tomam o medicamento seguro incluem-se muitas pessoas à partida mais doentes e, por isso, com maiores probabilidades de comunicar acontecimentos adversos, por razões que nada têm a ver com o medi­camento. Isto pode fazer com que o medicamento seguro pareça pior do que realmente é e, por extensão, pode fazer com que um medica­mento mais arriscado pareça melhor em comparação.

Ensaios para aprovação de medicamentos
Ensaios para aprovação de medicamentos

Seja como for, na ausência de ensaios maciços realizados em cui­dados de rotina (o que não é uma ideia louca, como veremos mais adiante), estes tipos de estudos são o melhor meio de que dispomos para garantir que os Medicamentos não estão associados a danos ter­ríveis. Por conseguinte, são realizados por reguladores, académicos e, muitas vezes, pelo fabricante a pedido do regulador.

Com efeito, as empresas da Indústria Farmacêutica estão obriga­das a monitorizar os efeitos secundários, tanto gerais como específicos, e a comunicá-los à autoridade relevante, embora, na realidade, estes sistemas não funcionem muito bem. Em 2010, por exemplo, a FDA escreveu uma carta de doze páginas à Pfizer, queixando-se de que esta não tinha comunicado devidamente acontecimentos adversos ocorridos depois de os seus Medicamentos terem sido introduzidos no mercado. A FDA realizara uma investigação com a duração de seis semanas, e descobrira provas de vários acontecimentos adversos graves e inespe­rados que não haviam sido comunicados: por exemplo, o Viagra causa graves problemas de visão e até cegueira. À FDA afirmava que a Pfizer não tinha comunicado estes acontecimentos oportunamente, “classifi­cando-os mal e/ou minimizando-os, sem uma justificação razoável”.

O leitor há-de lembrar-se da história da paroxetina, em que a GSK não comunicou dados importantes sobre suicídio. Não se trata de incidentes isolados.

Viagra
Viagra

Por último, também podemos obter alguns dados sobre efeitos secundários a partir dos ensaios, embora os acontecimentos adversos que estamos a tentar detectar sejam raros, sendo, pois, menores as probabilidades de surgirem em pequenos estudos. Contudo, também aqui tem havido problemas. Por exemplo, as empresas conseguem às vezes reunir todos os tipos de diferentes problemas num só grupo, com uma etiqueta que não capta a realidade do que estava a acontecer aos doentes. Nos ensaios com antidepressivos, acontecimentos adversos como pensamentos suicidas, comportamentos suicidas e tentativas de suicídio têm sido codificados como “labilidade emocional”, “hospitalizações”, “insucessos terapêuticos” ou “abandonos”. Nenhum destes termos capta a realidade do que estava a acontecer ao doente.

A fim de tentar gerir estes problemas, nos últimos anos a EMA tem vindo a solicitar às empresas que elaborem um documento chamado Plano de Gestão dos Riscos (PGR) sobre o seu medicamento, e lá começam novamente os nossos problemas. Esses Documentos são redigidos pela empresa e explicam os estudos de segurança cuja realização acordou com o regulador, mas, por um qualquer motivo cuja sanidade não consigo conceber, o conteúdo é secreto, pelo que ninguém sabe ao certo que estudos a empresa terá de realizar, por acordo com a EMA, a que assuntos de segurança dá prioridade e como os está a investigar.

Um curto resumo está à disposição de médicos, académicos e público em geral, e, recentemente, alguns académicos começaram a publicar artigos que avaliam o seu conteúdo, com achados esmagadores. Depois de explicar que as alterações nos riscos identificados com base nos PGR eram comunicadas aos médicos de forma imprevisível  e inadequada, um artigo conclui: “A principal limitação deste estudo é a falta de dados publicamente disponíveis sobre os aspectos mais significativos.” Os investigadores eram, pura e simplesmente, privados de informações sobre os estudos que estavam a ser realizados para monitorizar a segurança do fármaco. Um estudo semelhante, ao qual foi concedido um acesso ligeiramente melhor, analisava os estudos de segurança que eram discutidos nos PGR. Em metade destes estudos, o PGR fornecia apenas uma curta descrição, ou um compromisso no  sentido de realizar um qualquer tipo de estudo, mas mais nenhuma in­formação. Na versão integral dos PGR, onde se esperaria encontrar os protocolos de estudo na íntegra, os investigadores não encontraram nenhuns, e isto para os dezoito Medicamentos que estavam a analisar.

EMA
EMA

Se estes Planos de Gestão dos Riscos são concebidos em segredo e o seu conteúdo é deficientemente comunicado, constituindo eles, ao mesmo tempo, a ferramenta usada para conseguir a introdução do me­dicamento no mercado com um limiar inferior de evidência, enfrenta­mos um novo problema, grave e interessante: é possível que os PGR estejam a ser usados como dispositivo para tranquilizar o público, e não para abordar um assunto sério.

No que respeita ao secretismo dos reguladores, é claro que existe uma importante questão cultural que deve ser resolvida. Passei algum tempo a tentar compreender a perspectiva dos funcionários públicos que, sendo claramente boas pessoas, parecem considerar desejável ocultar Documentos do público. A melhor ideia que tive foi a seguinte: os reguladores crêem que as melhores decisões sobre Medicamentos são as que eles tomam, à porta fechada, e que, desde que tomem boas decisões, estas devem ser comunicadas ao mundo exterior apenas sob a forma de resumo.

Esta é, em meu entender, a perspectiva corrente, mas também é pouco judiciosa, em dois aspectos. Já vimos muitos exemplos de como a ocultação de dados pode ser uma maneira de esconder danos causa­dos e de como muitos olhos são valiosos na detecção de problemas. Mas a aparente crença do regulador de que deveríamos confiar cega­mente nas suas decisões também falha num ponto crucial.

Um regulador e um médico estão a tentar tomar duas decisões completamente diferentes sobre um medicamento, embora estejam a usar a mesma informação (ou, no caso dos médicos, gostassem de estar a usá-la). Um regulador está a decidir se é do interesse da sociedade em geral que um determinado medicamento esteja disponível para uso no seu país, ainda que apenas em circunstâncias muito obscuras como, por exemplo, todos os outros Medicamentos terem falhado. Um mé­dico, por seu lado, está a tomar uma decisão sobre se deve usar esse medicamento naquele preciso momento, para o doente que tem à sua frente. Estão ambos a usar os dados de segurança e de eficácia a que têm acesso, mas precisam desses dados na íntegra para tomar as suas decisões diferentes.

Existência de vários medicamentos para a mesma doença
Existência de vários medicamentos para a mesma doença

Esta distinção crucial não é inteiramente compreendida pelos doentes, que imaginam, muitas vezes, que um medicamento aprovado é um medicamento seguro e eficaz. Num inquérito a 3000 pessoas realizado em 2011, nos Estados Unidos, por exemplo, 39% acreditavam que a FDA só aprova Medicamentos “extremamente eficazes”, e 25% que só aprova Medicamentos que não tenham efeitos secundários graves. Mas não é verdade: os reguladores aprovam amiúde Medicamentos que são apenas vagamente eficazes, com efeitos secundários graves, para a hipótese de serem úteis a alguém, algures, quando não existirem outras opções. São usados por médicos e doentes como segundas melhores opções, mas necessitamos de todos os factos para tomarmos decisões seguras e informadas.

Há quem argumente que começam a aparecer brechas neste secretismo, com a entrada em vigor na Europa, em 2012, de alguma legislação nova sobre farmacovigilância destinada a melhorar a transparência. Mas, na melhor das hipóteses, essa legislação é uma miscelânea. Não dá acesso aos Planos de Gestão dos Riscos, mas declara que a EMA deve publicar as agendas, recomendações, opiniões e actas de diversas comissões científicas, que são, neste momento, completamente secretas. Só podemos julgar esta pequena mudança prometida pelo modo como será aplicada, se é que o será, e, como temos visto, a anterior actuação da EMA não inspira confiança. Mesmo que ponhamos de lado o comportamento surpreendente e perverso da EMA em relação aos CSR do orlistat e do rimonabant, onde o leitor pode ler em (COLOCAR LINK “A impossibilidade de obter dados dos ensaios clínicos de Medicamentos”)  também nos devemos lembrar de que foi mandatada há muitos anos para fornecer um registo aberto de ensaios clínicos, obrigação essa que pura e simplesmente não cumpriu, continuando ainda hoje a manter secretos muitos desses dados de ensaios.

Rimonabant
Rimonabant

Seja como for, essa legislação apresenta muitos defeitos graves. Embora a EMA esteja a ser apresentada como a anfitriã de uma base de dados de segurança de Medicamentos, por exemplo, essas informações continuarão a não ser acessíveis a profissionais de Saúde, cientistas e público em geral. Mas o defeito mais interessante dessa nova legislação é de tipo organizacional.

Tem havido muitas solicitações no sentido da criação de uma nova “agência de segurança de Medicamentos” que monitorize os riscos depois da introdução de um medicamento no mercado, de uma organização autónoma, com poderes e pessoal próprios, completamente independente da organização encarregada de aprovar a introdução dos Medicamentos no mercado. Embora possa parecer irrelevante, esta exigência organizacional responde a um dos problemas mais decep­cionantes que têm sido identificados nas actuações dos reguladores de todo o mundo: os reguladores que aprovaram um medicamento mos­tram-se muitas vezes relutantes em retirá-lo do mercado, para que isso não seja encarado como uma admissão da sua incapacidade de detec­tar problemas em primeiro lugar.

Não sou eu que estou a pontificar. Em 2004, o epidemiologista do Gabinete de Segurança de Medicamentos que liderou a revisão sobre o Vioxx disse à Comissão de Finanças do Senado americano: “A minha experiência com o Vioxx é típica do modo como o CDER (Cen­tro de Avaliação e Investigação de Medicamentos da FDA) reage em geral a questões graves relacionadas com a segurança dos Medica­mentos… a divisão que aprovou o medicamento em primeiro lugar, e que o encara como seu próprio filho, revela-se habitualmente o maior obstáculo individual a um tratamento eficaz das questões graves rela­cionadas com a segurança dos Medicamentos.” Assustadoramente, em 1963, meio século antes, um funcionário médico da FDA chamado John Nestor disse exactamente o mesmo ao Congresso: as aprovações anteriores eram “sacrossantas”, declarou. “Nem pensar em questionar decisões tomadas anteriormente.”

Instituto de Medicina
Instituto de Medicina

Trata-se de um problema universal nas políticas e na gestão dos reguladores, que se traduz nas suas estruturas organizacionais: em todo o mundo, os departamentos encarregados da monitorização da segu­rança e da retirada de Medicamentos do mercado são muito mais pequenos e menos poderosos do que os departamentos que aprovam a introdução dos Medicamentos no mercado, o que toma as instituições relutantes em impor suspensões. Como estamos a discutir questões relacionadas com quadros e estrutura organizacional, e o leitor pode pensar que isto não é mais que uma afirmação vaga e sem substância, deixe-me dizer-lhe que também é um veredicto de todos os estudos sérios que se fizerem sobre reguladores, desde o Institute of Medi­cine, à biografia semi-oficial da FDA, a vários académicos e pes­soas do interior das organizações.

Foi por isso que houve tantas solicitações junto da União Europeia para a criação de uma nova Agência de Segurança dos Medicamen­tos, e é por isso que é tão preocupante que tais solicitações tenham sido ignoradas. Com efeito, voltaram a ser instalados os mesmos velhos modelos, só que com nomes diferentes. O Comité de Avaliação do Risco de Farmacovigilância da EMA, que decide se se deve retirar do mercado um medicamento aprovado, ainda presta contas ao Comité para os Medicamentos de Uso Humano, que é o que aprova a introdução dos Medicamentos no mercado. Esta situação perpetua todos os velhos problemas sobre a retirada de Fármacos do mercado é difícil e menos importante que a aprovação —, e sobre o embaraço que causa a quem os aprovou.

Então, que passos pode um regulador dar quando comprova a existência de um problema?

Em casos muito extremos, pode retirar o fármaco do mercado (embora nos Estados Unidos, os Medicamentos costumem permanecer no mercado, emitindo a FDA uma advertência contra o seu uso). O mais comum é o regulador advertir os médicos por doentes intermédio de um dos seus relatórios de actualização de segurança, uma circular do tipo “Caro Doutor“, ou alterando o folheto informativo que vem na embalagem. Os relatórios de actualização de segurança são enviados à maioria dos médicos, mas não é claro que sejam amplamente lidos. Mas, surpreendentemente, quando um regulador decide notificar os médicos de um efeito secundário, a empresa pode contestar e atrasar o envio da notificação durante vários meses ou mesmo anos.

MHRA
MHRA

Em Fevereiro de 2008, por exemplo, a MHRA publicou um pequeno artigo no seu boletim Drug Safety Update, que é lido por um número sionante demasiado pequeno de pessoas. No artigo, afirmava-se que a agência estava a planear alterar o folheto informativo de todas as estatinas, uma classe de Medicamentos que é receitada para reduzir colesterol e prevenir os ataques cardíacos, na sequência de uma revisão de dados de ensaios clínicos, notificações espontâneas de reacções medicamentosas adversas suspeitas e literatura publicada. “A informação do produto para as estatinas está a ser actualizada a fim de integrar um número de efeitos secundários diferentes nos efeitos de classe de todas as estatinas.” E explicava: “Os doentes devem ser informados de que o tratamento com qualquer estatina pode estar associado a depressão, perturbações de sono, perda de memória e disfunção sexual.” A agência também estava a planear uma nova advertência: a terapia com estatinas pode, muito raramente, estar associada a uma situação médica grave, a doença pulmonar intersticial.

A decisão de acrescentar estes novos efeitos secundários ao folheto informativo foi tomada em Fevereiro de 2008, mas o anúncio de que essa alteração estava finalmente a ser feita só ocorreu em Novembro de 2009. É um atraso de quase dois anos. Porque levou tanto tempo? O Drugs and Therapeutics Bulletin revelou o motivo: “Um dos titu­lares de AIM (Autorização de Introdução no Mercado) não estava de acordo com essa redacção.” Por conseguinte, uma empresa da Indús­tria Farmacêutica conseguiu atrasar a inclusão de advertências sobre segurança em toda uma classe de Fármacos receitados a quatro milhões de pessoas no Reino Unido, durante vinte e dois meses, porque não estava de acordo com a redacção.

Mas, seja como for, de que serviria alterar o folheto informativo?

Esta é a componente final da nossa história. Os médicos e os doentes têm dificuldade em ficar com uma imagem clara e actualizada dos riscos e benefícios dos Medicamentos, qualquer que seja a fonte de que provenham as informações, mas, como os reguladores têm acesso privilegiado a essas informações, seria de esperar que as comunicas­sem de forma particularmente clara porque, por definição, não há com­petição no que toca ao fornecimento de informações nem nenhumas oportunidades de andar a respigá-las: os reguladores são os únicos que têm acesso a todos os dados.

Folheto informativo de medicamentos
Folheto informativo de medicamentos

Os reguladores glorificam os folhetos informativos dos Medica­mentos, considerando-os um repositório de informações único e impres­sionante, passível de educar e informar tanto os médicos como os doen­tes. Na realidade, são caóticos e não muito informativos. É frequente discutirem ensaios, mas não fornecem referências que nos permitam aprofundá-los nem sequer perceber de que ensaio estão a falar. Às vezes, os elementos básicos de um ensaio são tão diferentes no documento do regulador e no artigo publicado que é difícil emparelhá-los mesmo quando tentamos fazê-lo, e mesmo que o ensaio tenha sido publicado. Além disso, a maior parte dos folhetos inclui longas listas de centenas de efeitos secundários, com poucas informações sobre a sua frequência, em­bora a maior parte deles seja muito rara e nem sequer esteja associada de forma segura com o medicamento. Informação em excesso, comunicada caoticamente, é tão inútil como escassez de informação.

Alguns investigadores americanos têm estado a defender há uma década que se acrescente uma simples “caixa com factos sobre o me­dicamento” às informações dadas aos médicos e doentes nesse folheto bastante denso e confuso. Essa caixa seria um resumo com informa­ções claras e quantitativas sobre os riscos e benefícios do medica­mento, utilizando estratégias baseadas na evidência para comunicar informação estatística a leigos. Existem provas, apuradas em ensaios controlados aleatórios, de que os doentes aos quais é dada esta “caixa com factos sobre o medicamento” conhecem melhor os benefícios e riscos dos seus Medicamentos. A FDA deu a entender que iria pen­sar em usá-las. Espero que aconteça e que seja ela própria a fazer essas caixas.

Para que o leitor possa ver a diferença com os próprios olhos, apresento abaixo uma caixa com factos sobre um sonífero cha­mado “Lunesta“.

Esta caixa é mais pequena que o folheto oficial do medicamento, que surge ao lado: penso que também é muito mais informativa. Não resolve todos os problemas de secretismo, nem sequer todos os pro­blemas de má comunicação. Mas demonstra muito claramente que os reguladores nem conquistaram nem respeitaram o seu estatuto especial no que diz respeito a avaliar e comunicar riscos.

Fármaco Lunesta (em comparação com o Placebo) para reduzir os actuais sintomas em adultos com insónia
Fármaco Lunesta (em comparação com o Placebo) para reduzir os actuais sintomas em adultos com insónia

NOTA:

[1] É puxado, mas eis como examinar pormenorizadamente a regra de 3In, se tem queda para a estatística. Digamos que andamos a comer frango de há uma semana atrás, e que a probabilidade de morrermos é de 0,2 e, portanto, a de não morrermos é de (1-0,2), ou seja 0,8. Se tivermos duas observações (comi frango bolorento duas vezes), a probabilidade de não morrer é inferior: é de 0,8 x 0,8, ou seja 0,64 (por con­seguinte, as minhas probabilidades de morrer estão a aumentar com cada refeição de frango que como). Se eu comer frango bolorento n vezes, a probabilidade de não mor­rer é de 0,8, ou, retrocedendo ao ponto de onde veio o 0,8, é de (1 -0,2)An, ou, em termos mais gerais, de (I -risco)An. Agora, queremos sentar-nos na outra extremidade do telescópio. Queremos saber o risco máximo possível de acontecer algo que é com­patível com nunca ter acontecido, ao cabo de n observações (neste caso, de refeições de frango bolorento), com uma margem de erro de 5% no máximo. Diríamos que (1- -risco)A é igual a 0,05, ou antes, como não estamos interessados em (1-risco), mas em (1-risco máximo), diríamos que (1-risco máximo)=0,05. Agora, só temos que rearranjar a equação de modo que ela nos dê o risco máximo quando conhecemos n. Ora vamos a isso: 1-risco máximo-0,05A(l/«), e para n maior que 30 é aproximadamente o mesmo que 1-risco máximo=l-(3/«). Estamos quase: Retiremos o “menos um” de ambos os lados e ficamos com um risco máximo = 3In. É possível que tenha sido mais puxado do que uma sessão de matemática na televisão, destinada a garotos, mas é muito mais útil. “Nunca conheci um sul-africano que fosse boa pessoa” é uma can­ção racista sobre racistas. Agora sabe que pode perguntar: “Quantos conheceste?”

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