Tinha vinte e três anos quando, em 1967, tive o meu primeiro contacto com a Acção Socialista Portuguesa, constituída na Suíça, três anos antes, por Francisco Ramos da Costa, Manuel Tito de Morais e Mário Soares. A minha actividade política até então não passara de uma espécie de aprendizagem juvenil, no final dos anos 50, com grupos de oposicionistas locais, sobretudo comunistas e republicanos da cidade da Covilhã, onde nasci em 1944 e vivi até aos 17 anos. Era esporadicamente convidado, um pouco como «mascote», de tertúlias anti-salazaristas de um grupo de homens que tinham, pelo menos, o dobro da minha idade e, como único elo entre si, o gosto de boas «jantaradas» e o ódio ao regime. Contudo, não sei bem a origem exacta dos meus sentimentos anti-salazaristas, até porque no seio da minha família pouco se falava de Política. O meu pai era um católico devoto e, na juventude, tinha pertencido à Legião Portuguesa. Não por razões ideológicas – conforme viria a apurar anos mais tarde – mas porque tal fazia parte das regras do seu círculo de amigos que, naquele tempo, constituíam a classe média dominante daquele que chegou a ser um dos mais importantes centros industriais do país. Imperava a força do dinheiro e das grandes fortunas rapidamente acumuladas durante a guerra.
Enquanto fui crescendo, num ambiente imensamente feliz e despreocupado, nunca vi os meus pais participarem em qualquer tipo de actividades políticas. Eram um perfeito modelo da reduzida classe média que o regime salazarista produzira. A minha mãe,hoje com 82 anos, vivia mais preocupada com a Educação dos seus quatro filhos e com o bem-estar da família embora, ao contrário do que acontecia com meu pai, não fosse muito dada às práticas da igreja. Depois de ter sido comerciante, durante os primeiros anos da minha infância, o meu pai associar-se-ia a uma empresa de tecelagem que, em virtude da adesão de Portugal à EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre), viria a conhecer um período de grande prosperidade, exportando a quase totalidade da sua produção. À semelhança do que acontece em muitas famlias, eu idolatrava o meu irmão mais velho, mas a nossa relação seria interrompida quando, a partir dos doze anos, ele foi estudar para Lisboa. Naquele tempo só era possível estudar no liceu local até ao segundo ano. A minha irmã tinha menos cinco anos do que eu e o meu irmão mais novo menos dez. Eu desejava ardentemente seguir as pisadas do meu irmão mais velho e estudar em Lisboa, mas logo que iniciei o primeiro ciclo passou a ser possível estudar no liceu da Covilhã até ao quinto ano. Ainda pensei que teria uma oportunidade quando, no início do terceiro ano, me envolvi numa pequena briga como filho de um deputado da União Nacional. Numa situação de evidente injustiça só eu seria punido com quinze dias de suspensão tendo o meu pai decidido tirar-me do liceu. A minha esperança de ir para o Colégio Portugal, na Parede, onde estava internado o meu irmão não seria entretanto concretizada. Tinha aberto um colégio particular na cidade, o Colégio Moderno, onde eu então passaria a estudar. Acontece que o seu director e meu professor de Português, era ferozmente anti-salazarista e o ambiente no seio do colégio para a época agradavelmente progressista.

Quando Humberto Delgado visitou a Covilhã em campanha eleitoral, tinha eu apenas catorze anos. A sua caravana eleitoral foi desviada pela polícia para evitar a sua entrada na cidade pelo local onde o aguardava a maior multidão que eu jamais vira concentrada. Na cidade sentia-se uma grande tensão mas também grande entusiasmo e esperança e, sem entender muito bem o que estava em jogo, vivi intensamente aquela curta campanha distribuindo panfletos e manifestos de porta em porta. Não me recordo dos discursos, mas creio que foi então que se iniciou a minha paixão pela Política.
Três anos depois, seguindo as pisadas de meu irmão mais velho, obtive uma bolsa do American Field Service para estudar e viver com uma família norte-americana na pequena cidade de Cedar Rapids, no midwest dos Estados Unidos. Com esta família, com o seu filho Jon, da minha idade, e a filha Toni, dois anos mais nova, e com os meus professores e colegas da Thomas Jefferson High School aprenderia o á-bê-cê da democracia e a felicidade de viver numa Sociedade livre e descomplexada. As gentes com quem ali convivi e com quem, em muitos casos, trinta e cinco anos depois, ainda mantenho estreitas relações, tinham uma prática de vida na sua comunidade e convicções baseadas na liberdade, na igualdade de oportunidades e na defesa intransigente dos direitos humanos que, sem o afirmarem, tem mais que ver com o socialismo democrático descomplexado em que acredito, do que as expressões panfletárias de muitos dos nossos socialistas «oficiais». Vivi, pela tv, a fascinante experiência do presidente John Kennedy, que viria a conhecer no Verão de 1962 nos jardins da Casa Branca em recepção por ele oferecida aos bolseiros finalistas do American Field Service. Seriam, aliás, John Kennedy, Olof Palme e Leopold Senghor as principais referências políticas da minha juventude. Embora em condições tão diferentes e condicionados por realidades tão distintas desenvolveram, cada um à sua maneira, experiências de progresso, justiça social e cultura que permanecem a esperança do socialismo democrático neste fim de século. Tive a invulgar honra de conhecer os três, se bem que em épocas e de maneiras diferentes. O meu contacto com Kennedy, no meio de estudantes ávidos de o conhecer, foi meramente circunstancial, mas para mim a sua carismática liderança representava a juventude, o humor e o informalismo que tanto iria marcar o estilo dos novos dirigentes sociais-democratas europeus dos anos 70. Com a sua «Aliança para o Progresso» parecia querer quebrar com o estilo pesado da diplomacia dos anos 40, criando esperanças renovadas nos povos do Terceiro Mundo que lutavam pela sua auto-determinação. Também não disfarçava a sua simpatia pela social-democracia europeia e parecia «disposto a repensar argumentos e posições tradicionais para pôr fim ao avanço comunista (tendo) muitos dos patriotas liberais que se sentiram intensamente atraídos pela mensagem de Kennedy pertencido à Central Intelligence Agency». [1]
Apesar do impacto da cultura americana na minha formação e das insistências da minha «família» americana, só não fiquei então nos Estados Unidos por me recusar a fazer serviço militar, que me obrigaria a um «estágio» na Guerra do Vietname. Após o meu regresso a Portugal em finais de 1963, senti que a obsessão com as guerras coloniais tinha mergulhado o nosso país num clima de indescritível isolacionismo e histeria. Senti enorme dificuldade em falar com as pessoas da minha geração, para quem falar das minhas experiências na América era o mesmo que falar de ficção científica. Anos mais tarde, viria a notar a curiosa coincidência de Humberto Delgado, cuja campanha eleitoral tanto marcara as minhas opções políticas, também ter compreendido pela primeira vez o significado da democracia durante a sua estadia nos Estados Unidos.
Após a inspecção militar consegui autorização para uma viagem a Inglaterra de onde decidi não regressar a Portugal.
Tinha então vinte anos e aquele país vivia um excitante período de euforia libertária e de criatividade. O governo trabalhista de Harold Wilson, de que James Callaghan era então ministro do interior, fechava os olhos aos que se recusavam a participar na Guerra do Vietname e, no caso português, nas guerras coloniais. Embora normalmente não oficializasse a concessão de asilo político aos refractários e desertores norte-americanos e portugueses que iam chegando à Grã-Bretanha, permitia o prolongamento dos seus vistos de estadia, mesmo com passaportes caducados, até que ao fim de quatro anos pudessem ser considerados residentes naquele país.
No seio dos portugueses, onde proliferavam minúsculos grupos de extrema-esquerda, a única actividade democrática de relevo organizava-se então, sem exigências de rigidez político-partidária, à volta do jornalista e escritor António Figueiredo, antigo companheiro de Humberto Delgado e mais conhecido pelas suas crónicas na BBC. Pessoa muito respeitada por ingleses e portugueses em geral, foi graças à amizade que estabeleci com ele e aos seus contactos com o Labour Party que foi possível criar, em Londres, o primeiro núcleo organizado da Acção Socialista Portuguesa (ASP) no estrangeiro. Mas, apesar da sua desinteressada colaboração e de se considerar socialista, António Figueiredo nunca aderiria à Acção Socialista e só entraria para o Partido Socialista após o 25 de Abril. O primeiro núcleo de Londres da Acção Socialista foi lançado no início de 1970 por mim, com Alberto Lagoa, Carlos Alves, Pedro Ferreira de Almeida, Eduardo Silva e, mais tarde, Aurea Rego, José Neves e Seruca Salgado. Em Roma estavam Tito de Morais e Gil Martins, em França Mário Soares, Ramos da Costa, Coimbra Martins, Liberto Cruz e, mais tarde, Jorge Campinos e, na Bélgica, Bernardino Gomes. O Fernando Loureiro vivia na Suíça e na Alemanha estavam o Carlos Novo, o Desidério Lucas do Ó, o Carlos Queixinhas e o Gomes Pereira. Em 1971 fui viver para a Suécia onde lançaria um novo núcleo com metalúrgicos da construção naval dos estaleiros da Kockums, entre os quais Mário Nobre, Armindo Carrilho e o José de Matos. Estes e mais ou menos meia centena de pessoas residentes em Portugal constituíam então a totalidade do movimento socialista português embora, anos mais tarde, num sintomático gesto da grande maleabilidade histórica que tem caracterizado o Partido Socialista, a lista de fundadores fosse refeita para não ferir susceptibilidades, passando a integrar cento e onze nomes. Foi-me então atribuído o número quarenta e três, embora à data da minha adesão não existisssem na ASP, que precedeu o Partido Socialista, mais de vinte elementos.
A corajosa campanha de Humberto Delgado, no final dos anos 50, criara uma grande esperança no seio da maioria dos portugueses. Era a primeira vez, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, que simultaneamente Salazar, o Partido Comunista (PC) e a generalidade dos portugueses verificavam ser possível substituir a ditadura por um regime pluralista, semelhante ao dos outros países da Europa Ocidental. A humilhante expulsão de Portugal de Goa, Damão e Diu em 1961 e o início das lutas armadas de libertação na Guiné, em Angola e Moçambique, em simultâneo com a ignorante teimosia de Salazar em não querer compreender os «ventos de mudança» da descolonização, conduziriam inevitavelmente ao êxodo de dezenas de milhares de jovens portugueses para uma oposição activa à ditadura, longe do alcance da PIDE, e ao crescente isolamento internacional do país. Por outro lado, a crescente contestação maoista ao comunismo soviético viria a pôr fim ao «monopólio» que o PC detinha sobre a oposição portuguesa. Existiam, finalmente, condições para o aparecimento de um partido socialista em Portugal, apesar do clima político, então dominado pela histeria do «terrorismo no Ultramar», não parecer favorável à criação de estruturas organizadas.

O nascimento da Acção Socialista, em 1964, representa assim um acto de grande intuição política, que só a dedicação militante de Manuel Tito de Morais, a generosidade e os contactos internacionais de Francisco Ramos da Costa e o conhecido optimismo de Mário Soares possibilitariam. Os ataques de que foi alvo do PC, dos inúmeros grupos de extrema-esquerda e do próprio governo, indicavam a importância que tal passo representara. Era o tempo do idealismo, da generosidade desinteressada e da solidariedade. Nenhum de nós acreditava, contudo, que a queda do regime estivesse para breve nem ninguém, então, aderia à Acção Socialista para fazer carreira política. Faziam-no porque imperavam, muito para além da esperança, as convicções, o sentimento de luta pela justiça social e pelo progresso de Portugal. Ou, como me escrevia Mário Soares de Paris em 13 de Janeiro de 1971, num momento de invulgar pessimismo: “infelizmente à desagregação do ambiente situacionista não tem correspondido um reforço do trabalho da oposição. Após o entusiasmo eleitoral, a oposição, tanto a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD) como a Comissão Democrática Eleitoral (CDE), entrou numa espécie de hibernação. As pessoas têm medo e não querem fazer nada, pelo menos no plano propriamente político”.
Quando Albert Carthy, secretário-geral da Internacional Socialista, visitou Portugal em 1966, estabeleceria os primeiros contactos com democratas portugueses e recomendaria ao bureau daquela organização a necessidade de contactos regulares com as forças democráticas de Portugal, da Espanha e da Grécia. A Internacional Socialista (IS) era então um «pequeno clube político» dominado pelo Partido Trabalhista Britânico. Limitava as suas actividades à coordenação de posições dos partidos do norte e centro da Europa [2] e vivia psicologicamente balizado entre o drama da República de Weimar e o pavor da guerra-fria. O seu prestígio estava em vias de extinção por desempenhar, no pós-guerra, um papel exclusivamente euro-centrista e ter resignado a sua vocação internacionalista a um comprometedor low-profile.
Foi durante este período que Ramos da Costa iniciou uma série de contactos internacionais, com o apoio de Manuel Tito de Morais que, a partir de Roma, onde se exilara, contava com o patrocínio do pequeno mas sempre solidário Partido Socialista de Pietro Nenni e Francesco De Martino. Em 1969, o secretário das relações internacionais do Partido Socialista Austríaco, Hans Janitschek, fora eleito secretário-geral da Internacional Socialista. A sua eleição fazia parte de um esforço concertado para dinamizar a organização entre Olof Palme, que nesse mesmo ano ascenderia à liderança do Partido Social-Democrata e primeiro-ministro da Suécia e dois dirigentes que os suecos tinham acolhido e protegido durante a guerra: o líder do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), Willy Brandt, que na altura era vice-chanceler e ministro dos negócios estrangeiros da República Federal da Alemanha e Bruno Kreisky, líder do Partido Socialista Austríaco e então candidato a primeiro-ministro do seu país. Falavam em comum a língua sueca e acreditavam militantemente no «modelo» político escandinavo.
A eleição de Hans Janitschek, apoiada por estes dirigentes que constituíam a chamada «Trindade Socialista» [3], viria a representar uma verdadeira revolução, durante os seis anos em que ele permaneceu à frente das iniciativas da IS. Grande parte do novo ímpeto da organização seria dedicado ao contacto e apoio promovido por Hans Janitschek a grupos periféricos como a Acção Socialista, o PASOK da Grécia e outros movimentos afins do Terceiro Mundo, como foi o caso da União Progressista Senegalesa de Leopold Sedar Senghor, que viria dar lugar ao Partido Socialista do Senegal. Esta política de abertura e de solidariedade internacional, que caracterizou o mandato do jovem secretário-geral austríaco, seria contudo rodeada de controvérsia. Alguns dirigentes não concordariam com a abertura «ao sul», outros acusá-lo-iam de excesso de protagonismo e, quando, em 1976, Brandt foi nomeado presidente da Internacional Socialista, no congresso de Genebra, Janitschek seria afastado para um lugar de segundo plan0. [4]

Foi exactamente Hans Janitschek, no próprio ano em que tomaria posse dos destinos daquela organização, quem chefiou a missão da Internacional Socialista para observar as eleições legislativas de 1969 o que lhe valeu, assim como aos seus companheiros [5] a detenção pela PIDE e a expulsão do país, que Marcello Caetano justificaria como «ingerência na política interna de Portugal». Janitschek conhecera Mário Soares no 11.° Congresso da IS em Eastbourne, em que fora eleito secretário-geral, e lembra que este usou da palavra «durante seis minutos» e era então um «ilustre desconhecido» das lides internacionais, referido na lista de participantes como «senhor Soares, proeminente socialista português» [6]. Foi ainda graças aos esforços de Janitschek que a Acção Socialista veio a integrar a Internacional Socialista em 1972. Não sem alguma contestação interna na minúscula ASP e, sobretudo, na própria Internacional Socialista.
Foi também nesta ocasião que conheci Mário Soares, no pequeno hotel em St. John’s Wood onde aquela organização habitualmente hospedava os seus convidados de menor relevo. Também nesta altura eu demonstraria vontade de aderir à ASP, em virtude dos contactos que vinha mantendo com Manuel Tito de Morais e com o Portugal Socialista. A formalização da minha adesão só teria, contudo, lugar em Janeiro de 1970, quando Manuel Tito de Morais me escreveu dizendo que a conversa que com eles tivera fora o “suficiente para mostrar a nossa afinidade ideológica, até e sobretudo, nas críticas e dúvidas que (eu apresentara) sobre a ASP“. Confesso não me recordar das dúvidas então abordadas, mas se tivermos em conta a predominância dos grupos de extrema-esquerda entre os jovens que, como eu, se tinham exilado em Londres, então essas dúvidas incidiam certamente sobre questões como se a ASP se propunha mesmo lutar pelo «verdadeiro» socialismo democrático ou se, à semelhança do que depreciativamente denominávamos «social-democracia», a ASP não passaria de uma mera organização «neo-marcelista» [7]. Esta era a linguagem utilizada pelos grupos políticos da emigração, em que predominavam jovens da extrema-esquerda que se viram forçados a abandonar uma confortável classe média no nosso país para «lavar pratos» por essa Europa fora.
Segundo Manuel Tito de Morais,todas as respostas que eu procurava estavam contidas no livro que era forçoso ler e divulgar, de Vitorino Magalhães Godinho, «O Socialismo e o Futuro da Península». Vitorino Magalhães Godinho era considerado, em 1970, «o nosso teórico» [8] mas, curiosamente, acabaria por cair praticamente no «esquecimento». Não será alheio a isto, mais do que o seu radicalismo, a sua oposição a Mário Soares, que ele considerava «não ter uma ideia consistente» [9]. Mas contribuiu para a confusa definição ideológica da Acção Socialista, cujo oportuno lançamento não assenta em bases muito sólidas, nem define com rigor as suas origens. Reclama-se herdeira de Marx e da Primeira Internacional, do minúsculo e elitista Partido Socialista criado em 1875 por Antero de Quental e José Fontana e até do Movimento Republicano que dominaria de forma anárquica a cena política portuguesa até ao aparecimento da ditadura em 1926.

O fundador da ASP e primeiro líder do movimento, Mário Soares, reconhece para ele próprio a influência do socialismo humanista e cooperativista de António Sérgio e até o pensamento estalinista do seu antigo professor, Álvaro Cunhal. A verdade é que, contrariamente ao que acontecia pelo resto da Europa, e até na vizinha Espanha com o Partido Socialista Operário fundado por Pablo Iglésias, em Portugal, a Acção Socialista, primeiro, e o Partido Socialista, a partir de 1973, para além dos textos de Mário Soares que iriam sendo «oficializados», nada têm que ver com os grandes movimentos socialistas da classe operária do fim do Século Dezanove.
A precursora do Partido Socialista não tinha qualquer passado histórico. Nascera na década de 60 um pouco como quem regista uma patente por iniciativa de um grupo de conspiradores e de «operacionais» na sua maioria ligados à Maçonaria, e de alguns teóricos influenciados pelo PCP, como foi o caso de Salgado Zenha e do próprio Vitorino Magalhães Godinho. A evolução teórica do movimento, mais de três décadas após a sua constituição, é assim essencialmente caracterizada mais por razões empíricas de conveniência dos seus operacionais do que pelas teses dos seus «ideólogos» ou pelos princípios doutrinários que emanam do socialismo democrático. Esta caracterização, que viria a ficar célebre quando o líder da oposição, Francisco Sá Carneiro, acusou o então primeiro-ministro Mário Soares de «meter o socialismo na gaveta» com a finalidade de se manter no poder através de uma coligação com o Partido democrata-cristão, CDS, verifica-se frequentemente na prática seguida desde 1964. Seria mesmo motivo de algum desdém por parte dos sociais-democratas norte-europeus que consideravam verdadeiramente ridícula a constante necessidade de demarcação dos socialistas portugueses em relação à social-democracia, a cuja família queriam pertencer embora afirmassem ser socialistas democratas e não sociais-democratas. Era um maneirismo influenciado por François Mitterrand, que a Internacional Socialista considerava uma expressão de retórica e pura hipocrisia, com o objectivo de parecerem mais progessistas aos olhos do mundo. Era aliás um sintoma típico do sul da Europa, que um proeminente político norte-americano, anos mais tarde, comentaria com ironia, em termos semelhantes aos de Sá Carneiro [10].
Mas não obstante a «subtil» distinção e a demarcação progressista dos seus principais dirigentes, a verdade é que a adesão dos socialistas portugueses à Internacional Socialista representa o ponto mais alto do movimento no período que antecedeu o 25 de Abril de 1974. Na história do PS, a sua filiação internacional sobressai destacadamente da manifesta «probreza» do seu passado. O PS, “sobrevivente apagado dos anos 30, que não resistiu, como organização autónoma, à repressão e clandestinidade, que no final da Segunda Grande Guerra era constituído apenas por um pequeno grupo de abencerragens, sem qualquer influência real no país” [11].
Em “1964, com Ramos da Costa e Tito de Morais no exílio, e os grupos de Lisboa, do Porto e de Coimbra – animados por homens como José Magalhães Godinho, Gustavo Soromenho, Raul Rego, Salgado Zenha, José Ribeiro dos Santos, Catanho de Menezes, António Macedo, Mário e Carlos Cal Brandão, Álvaro Monteiro, Costa e Melo, Fernando Vale, António Arnaut, António Campos e mais uma escassa centena de esforçados militantes, espalhados pelo país – formou-se a Acção Socialista Portuguesa. Iniciaram-se então os primeiros contactos internacionais. Em 1969, na falsa primavera caetanista, a ASP dinamizou uma campanha eleitoral semilegal e completamente frustrante. A CEUD, era apenas um embrião. Porém, em 1972, no congresso de Viena, a ASP é admitida como partido membro na Internacional Socialista” [12]. De 1964 a 1972, e mesmo até 1974, só dois acontecimentos de relevo, ambos influenciados do exterior, teriam lugar na história do movimento: A entrada na Internacional Socialista em 1972 e a fundação do Partido Socialista em Bad Munstereifel, na República Federal da Alemanha, em 1973, sob os auspícios da Fundação Friedrich Ebert. Pelo meio só a «frustrante» dinamização da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática em 1969. No entanto, esta filiação, quer pela ausência de suporte popular de movimentos de cariz socialista quer pela sua evidente falta de credenciais ideológicas, seria vital para a sobrevivência do Partido Socialista. À sua volta iriam desenrolar-se as principais e quase únicas actividades do movimento socialista português. Manuel Tito de Morais e Francisco Ramos da Costa seriam os elementos «chave» para o lançamento internacional quer da ASP quer do PS e foi por seu intermédio que Mário Soares veio a estabelecer as suas primeiras relações internacionais pelo menos na área da esquerda [13]. Apesar dessa realidade, subsistia um complexo de inferioridade dos dirigentes socialistas em relação ao PC, que os levava a fazer declarações mais para agradar à esquerda festiva pequeno-burguesa e sem qualquer “noção dos acontecimentos históricos em que participavam” [14].
Em Janeiro de 1970, Manuel Tito de Morais esclarecia-me de que “a ASP não é filiada na Internacional Socialista, havendo sérias reticências da parte de alguns companheiros nossos – e com razão – a filiarmo-nos numa organização que toma atitudes um pouco estranhas na Política internacional. Contudo, apesar de não sermos filiados eles estão sempre dispostos a ajudar-nos e alguma coisa têm já feito para desmascaração do marcelismo, influindo até junto dos governos ocidentais. Evidentemente que isto que lhe digo é inteiramente confidencial e serve só para o informar da nossa posição…”. Mas para muitos outros “até 1969, a ASP “tinha uma carga social-democrata” que não agradava a muitos sectores da esquerda (que) para ingressarem na organização de Mário Soares colocaram condições. Defendiam o marxismo como “inspiração teórica predominante” contra qualquer tentação social-democrata” [15].
Em 1970 a Internacional Socialista examina as suas ligações à Acção Socialista Portuguesa, por pressão de alguns partidos com responsabilidades governamentais, entre os quais se conta o SPD, alarmados com a desproporção entre o discurso dos seus dirigentes e o exíguo apoio popular demonstrado pela CEUD [16]. Por outro lado, Marcello Caetano, convencido das suas boas relações com a administração do presidente Nixon, tenta convencer os outros parceiros europeus da NATO de que o seu regime irá evoluir progressivamente para uma democracia política. O relatório, de 8 de Março de 1971, da viagem que o então deputado à assembleia nacional, Manuel José Homem de Mello, efectuara à R.F.A. a convite do governo alemão, enviado a Marcello Caetano, evidencia isso mesmo. Segundo este antigo «caetanista», no encontro organizado pelo ministério dos negócios estrangeiros alemão com o director das relações internacionais do Partido Social-Democrata alemão, Hans Eberhard Dingels, este “revelou imediatamente estar a par da situação portuguesa, referindo acreditar na honestidade de processos e no desejo de evoluir manifestado pelo presidente Marcello Caetano”. Ainda segundo Homem de Mello, Dingels aconselhara Mário Soares a «moderar os ímpetos», “afirmando-se partidário e admirador convicto da experiência política portuguesa em curso que, se viesse a falhar, só poderia ter como consequência a tragédia fascista ou a ditadura comunista” [17].

Tudo indica que Caetano seria convencido pelos seus «conselheiros» de que os argumentos usados por Salazar em 1945 surtiriam efeito vinte e cinco anos depois entre os sociais-democratas do centro e norte da Europa, conhecidos como eram pelas suas fortes tradições anti-comunistas. Mas, acontece que apesar de ter encontrado alguma receptividade, como revela Homem de Mello, a oposição à política colonial desenvolvida por fortíssimos lobbies norte-americanos e a posição dos governos sociais-democratas da Escandinávia, a juntar aos já mais do que evidentes avanços militares e diplomáticos dos movimentos de libertação em Moçambique e na Guiné, contribuiriam para impedir que a história se repetisse.
Nesse ano, após reunião realizada em Paris, no mês de Maio, para eleger a sua comissão directiva, [18] a ASP decidiria fazer uma consulta aos seus parcos militantes sobre a clarificação «exigida» pela IS. Manuel Tito de Morais, então o principal responsável pela organização, admite mesmo existir «um problema com a Internacional Socialista». Existiam então “relações com a IS de pura camaradagem (sem) nenhum compromisso nem nenhuma ligação orgânica”. Mas, “somos solicitados para esclarecer a nossa posição (não obstante as) muitas incógnitas no campo ideológico” [19]. Para Manuel Tito de Morais a “nossa adesão (implicaria) transformar a ASP em partido”, apesar de ele ter, então, as maiores “dúvidas de que sejamos capazes de o fazer, considerando um partido a sério, que não seja uma mistificação” [20].
O então responsável pelas relações internacionais tinha uma posição semelhante, se bem que muito menos sincera, que a de Manuel Tito de Morais. Era claramente influenciada pelos mitos anti-social-democratas do PCP e da esquerda francesa de então, camuflando as características do «burguês respeitável» e do enfant gaté [21] que era, não lhe satisfazendo “nenhum dos modelos socialistas [então] em aplicação no mundo”, [22] uma vez que acusava as “experiências para-socialistas dos sociais-democratas que, sozinhos ou através de coligações, conquistaram o poder em vários países da Europa Ocidental… de falta de consequência e de vigor doutrinário que os conduziu quase sempre à situação de leais gestores do capitalismo” [23]. Para ele, o modelo de verdadeiro socialismo democrático, que se propunha aplicar em Portugal, deveria ser muito diferente daquele conduzido pela família social-democrata, a que pediria adesão um mês depois, e passava por uma Sociedade “na qual os meios de produção (seriam) colectivizados ao serviço de todos, ao mesmo tempo que os poderes de decisão (seriam) democraticamente controlados pela base” [24].
Vivíamos numa época em que os primeiros fundadores do movimento socialista contemporâneo português, com relevo para Mário Soares, defendiam um papel subalterno em relação ao Partido Comunista. O que em grande parte só não acontecia por razões que, penso, se prendiam mais com a arrogância e miopia de Álvaro Cunhal e com a sua, já então, gerontocrática direcção política, do que com a oposição lúcida dos percursores do PS.
Nas três décadas que separam a ditadura militar de 1926 da candidatura do general Humberto Delgado, em 1958, a oposição portuguesa seria exclusivamente dominada pelos comunistas, sobretudo após a reorganização do Partido Comunista Português liderada por Álvaro Cunhal, em 1941. O total afundamento dos socialistas portugueses após a implantação da República, e a ausência de outras alternativas democráticas credíveis, impediriam que a vitória dos Aliados na Segunda Grande Guerra jogasse a favor da implantação de um regime democrático em Portugal. Os grupos de oposição ao regime salazarista encontravam-se totalmente dispersos e destituídos de objectivos. As suas poucas iniciativas não encontrariam o menor eco junto dos portugueses e todos os contactos com forças democráticas internacionais permaneceriam interrompidos. As organizações de oposição à ditadura, como Movimento de Unidade Nacional Anti Fascista (MUNAF) criado em 1943 e, depois, o Movimento de Unidade Democrática (MUD), eram impulsionados pelo Partido Comunista e não resistiriam à tentação de apressarem a queda da ditadura por métodos violentos ao mesmo tempo que, utilizando o nome de alguns democratas, aspiravam a uma vida legal que proclamava a mudança pela via eleitoral. Assim, o ex-ministro da primeira República e prestigiado grão-mestre da Maçonaria, general Norton de Matos, enquanto presidente do MUNAF encabeçaria em Agosto de 1945 o falhado golpe de estado constituído por oficiais fiéis ao Partido Comunista e reapareceria, em 1949, como candidato às eleições presidenciais sob a bandeira da «Oposição Democrática Unificada». O MUD, entretanto, tinha sido dissolvido no ano anterior, em 1948, após várias tentativas falhadas de golpes de estado e revoltas militares. O longo período de isolamento internacional dos socialistas e a impotência dos grupos da chamada oposição democrática para se autonomizarem em relação aos comunistas impediria os aliados de descortinarem no nosso país a existência de forças democráticas alternativas e o próprio MUD juvenil seria «acusado alguns anos mais tarde de ser a emanação pura e simples do Partido Comunista». [25]

A situação de marginalidade e de profundas contradições em que vivia a chamada oposição democrática seria exemplarmente tipificada por um dos seus dirigentes que garante poder “afirmar, com conhecimento de causa, que (aquele movimento juvenil) não o foi, apesar de um número dos seus dirigentes estar ligado ao Partido Comunista. É verdade que (o PC) foi um dos seus motores essenciais, mas não foi o único… De facto, a maior parte dos aderentes não tinha posição ideológica definida e situava-se numa perspectiva unitária antifascista!” [26] É óbvio que, no limiar da «guerra fria», entre o brilhante golpe estratégico de Salazar posicionando-se, aos olhos dos aliados vencedores, a Grã-Bretanha e os EUA, como um «bastião da luta contra o comunismo» e as afirmações do “pequeno grupo de abencerragens, sem qualquer influência real no país” [27] de que a oposição a Salazar era constituída na sua maior parte por aderentes que “não tinham posição ideológica definida e se situavam numa perspectiva unitária anti-fascista”, era mais convincente a posição do matreiro ditador.
Na realidade, a incapacidade dos socialistas e dos democratas portugueses para se organizarem e manterem relações com os seus congéneres europeus, após o desalento em que caíram com as divisões da primeira República, permitiram a quase «exclusiva» implantação do Partido Comunista e inviabilizaram o estabelecimento de um regime democrático em Portugal, em 1945. E, não obstante a grande desilusão da chamada «oposição democrática» portuguesa perante a opção dos vencedores da guerra, nem a vitória de Clement Attlee [28] e dos trabalhistas britânicos, em 1945, valeu aos socialistas portugueses. É que, se os havia, ninguém no resto da Europa sabia onde estavam. Mesmo assim, em 1973, a consciência do seu passado de relações subalternas em relação aos comunistas e a evidência dos maus resultados a que esse relacionamento conduzira Portugal anteriormente não seriam motivos suficientes para demover a direcção do ainda jovem movimento socialista de um acordo com o Partido Comunista. Mário Soares, desiludido com as promessas da «primavera marcelista» e com o resultado da CEUD nas eleições de 1969, iniciaria uma longa viagem à volta do mundo, acabando por se exilar em França, em 1970, após garantida a sua sobrevivência económica enquanto «consultor» do grupo económico de Manuel Bullosa [29]. Neste país acabaria por ser profundamente influenciado pela plataforma unitária que Mitterrand viria a estabelecer com Marchais, passando então a ser o principal defensor de um acordo entre os socialistas portugueses e o Partido Comunista, segundo o modelo francês e a que chamaria «contrato político». E, sem grandes consultas ao seu pequeno grupo político, este contrato transformar-se-ia num «pacto de governo», após reunião «clandestina» dos dois partidos que teve lugar em Paris, em Setembro desse ano. Do qual, por sua vez, só não resultou um programa de acção comum, porque o PC desconfiava das expectativas que os fundadores da ASP tinham manifestado em relação à chamada «primavera marcelista» e estava convencido de que os socialistas não tinham o menor peso no que eles consideravam ser o «conjunto do movimento democrático» português.
De facto, o único trunfo dos socialistas era o terem sido admitidos, um ano antes, na Internacional Socialista. Organização que a União Soviética pretendia penetrar, apesar das «críticas» às suas características «social-democratas»! Mas o PCP, embora seguindo as superiores directivas do PCUS [30] em matéria de política externa, estava desfasado da realidade nacional e preferiria desenvolver a sua relação de domínio sobre o MDP/CDE, em detrimento do potencial e das «virtualidades» da aliança desejada por Soares. Mas, para o líder socialista, sob fogo cruzado da propaganda do regime e da extrema-esquerda, o acordo com o PC seria uma credencial preciosa que dissiparia algumas dúvidas no seio da Internacional Socialista. Dúvidas semelhantes às que existiam em relação a François Mitterrand. O acordo de Soares com o PC jamais seria, contudo, um acordo honroso para os socialistas, dada a evidente subalternidade em que se colocavam. Tão pouco vinha ao encontro da orientação seguida pela esmagadora maioria dos partidos «irmãos» da Europa. Mas, apesar disso, Soares desenvolveria todos os esforços para o dar a conhecer junto dos parceiros da IS, pedindo-me mesmo que o traduzisse para sueco, o divulgasse e o mostrasse ao Partido Social-Democrata Sueco [31].
Como analisarei mais à frente, o sonho unitário da maioria do PS só terminaria em 1975, após a célebre declaração de Salgado Zenha contra a unicidade sindical. Mário Soares demoraria, contudo, bastante mais tempo a assumir esse divórcio.
A transformação do pequeno grupo que constituía a Acção Socialista no Partido Socialista era, acima de tudo, mais do que uma necessidade sentida, uma exigência da Internacional Socialista. Demonstrava o empenhamento e generosidade do secretário-geral Hans Janitschek e o crescente sentimento da social-democracia europeia de que era necessário a todo o custo romper com a sua tradicional filosofia «euro-centrista». Apesar disso, as relações internacionais iniciadas por Ramos da Costa e Tito de Morais a partir de 1964 só seriam elevadas a um nível prestigiante bastante depois da revolução do 25 de Abril e em virtude da percepção de alguns dos principais dirigentes da Internacional Socialista de que o que estava em jogo, em Portugal, era a possibilidade de, pela primeira vez na História, os «mencheviques» poderem derrotar os «bolcheviques»
Aliás, a própria sobrevivência do socialismo democrático estava em jogo. À data da fundação da Acção Socialista, os primeiros contactos internacionais foram efectuados por Francisco Ramos da Costa que vivia exilado em Paris e que, pela sua natureza generosa e extrovertida, criaria grande simpatia entre alguns dirigentes socialistas. Participaria, nomeadamente, na reunião da Internacional Socialista que teve lugar em Estocolmo em 1968 e foi presidida pelo popular primeiro-ministro sueco, Tage Erlander. A sua deslocação fizera-se a convite do já mencionado secretário-geral da Internacional Socialista, Albert Carthy. Em Estocolmo conheceria, entre outros, Willy Brandt, Olof Palme, Golda Meir, Bruno Kreisky e o então presidente da IS, o austríaco Bruno Pitterman. Vindo de Argel, onde deixara os conflitos pessoais e políticos em que os membros da Frente Patriótica de Libertação Nacional se vinham envolvendo cada vez mais, também Manuel Tito de Morais viria a encontrar em Roma a protecção do Partido Socialista italiano, então dirigido por Francesco de Martino. O que lhe facilitaria, igualmente, importantes contactos junto dos partidos socialistas europeus. Em Lisboa, também Mário Soares tinha, desde o início da década de 60, estabelecido contactos com um funcionário da embaixada da Dinamarca, simpatizante do Partido Social-Democrata dinamarquês, Axel Buus [32] e com um funcionário da embaixada dos Estados Unidos, de nome Diego Ascensio. Um outro contacto internacional do início dos anos 60, que provaria vir a ter grande utilidade para a carreira de Mário Soares, foi a amizade que estabeleceu com Marvin Howe, jovem correspondente itinerante do New York Times em Lisboa e na capital marroquina, Rabat. Depois de algumas menções na Imprensa internacional, Marvin Howe conseguiria junto de um grupo de «liberais» norte-americanos, seus amigos, que se reclamavam das tradições de Norman Thomas [33], juntar alguns correspondentes estrangeiros no Overseas Press Club de Nova Iorque com quem Soares comentaria os seus pontos de vista sobre a política colonial de Marcello Caetano. E, graças à assustadora mediocridade e provincianismo dos governantes de então, Mário Soares, ainda em Nova Iorque, seria aconselhado a não regressar a Portugal.

O governo português conhecia de antemão as suas posições sobre a guerra colonial, mas desconhecia por completo o funcionamento da Comunicação Social internacional, confundindo telegramas das agências noticiosas com campanhas anti-portuguesas na Imprensa internacional. Marcello Caetano não se conteve e, deixando cair a última máscara de tolerância e de abertura que evidenciara quando tomara posse pouco mais de um ano antes, mandou instaurar um processo-crime ao dirigente socialista. A verdade é que, apesar do empenho de Marvin Howe, os telegramas dos correspondentes que participaram na dita «conferência de imprensa» do Overseas Press Club pouco eco teriam então na Imprensa internacional. Segundo o ex-ministro dos negócios estrangeiros de Salazar, Franco Nogueira, revelaria ao historiador José Freire Antunes, Marvin Howe “não era ainda uma correspondente, mas uma principiante” [34]. Tal não corresponde, contudo,. à verdade. Tendo em conta que sobre ela já na altura recaíam suspeitas «de ser uma conexão da CIA» [35] e conhecidas as ligações de grandes órgãos de Comunicação Social americanos com os serviços secretos como viria a ser confirmado pela comissão de inquérito a que presidiu o congressista norte-americano Edward Boland [36], então não só ela não seria uma principiante, como seria mesmo uma grande profissional e foi por obra e graça dos seus esforços que Mário Soares começou a ser conhecido da Imprensa internacional. Foi, aliás, através “dos seus textos públicos e das suas recomendações à margem do jornalismo, que a CIA – pouco atenta à oposição portuguesa durante os anos de Johnson – aprendeu a soletrar o nome de Mário Soares” [37]. De qualquer modo, foi a partir das iniciativas da correspondente do New York Times e, em particular, de uma carta que ela enviaria ao «Special Assistant to the President», Bill Moyers [38], em Outubro de 1965, que Mário Soares iniciaria uma série de contactos com um dos membros da delegação da CIA em Lisboa. Mário Soares refere-se a esses contactos no seu livro «Portugal Amordaçado» como contactos com “um secretário da embaixada americana em Lisboa” [39] mas tudo leva a crer que já se trataria de Diego Ascencio, que o então chefe de informações da PIDE Álvaro Pereira de Carvalho, identificaria como sendo “um dos membros da pequena estação da CIA em Lisboa” [40]. Ascencio seria uma das relações mais precisosas de então de Soares e ainda hoje continuam a manter relações de amizade.
Não admira, portanto, que ainda hoje muitas pessoas continuem a ter uma imagem distorcida do que uma certa Imprensa difundiria em tons dourados, após 1974, sobre os chamados contactos internacionais dos socialistas portugueses e do Partido Socialista. Com as incessantes romarias políticas do pós 25 de Abril e a constante exibição de grandes figuras da cena política europeia e norte-americana, como Harold Wilson, James Callaghan, Olof Palme, Willy Brandt, Bruno Kreisky e, entre muitos mais, Edward Kennedy, ficar-se-ia com a ideia de que estes não só protegiam e apoiavam a Acção Socialista Portuguesa com mundos e fundos como recebiam, de braços abertos, os seus dirigentes no exílio ou na clandestinidade. Nada poderia ser mais diferente, se bem que esta «distorção da história» tivesse então algo de premeditado.

Em circunstâncias que descreverei noutros artigos, eu teria a grande honra de conhecer em 1983 o então presidente de Moçambique, Samora Machel. Era injustamente conhecido em Portugal pelas «anedotas» racistas que o transformavam sempre no «intérprete vítima», ignorando totalmente os seus grandes dotes humanos. Acontece que Samora Machel gostava de contar ele mesmo «histórias» sobre os portugueses e às vezes, com grande sentido de fair play, transformava-se a si próprio na «vítima»da anedota. Uma noite, numa conversa que teve comigo em Maputo, satisfaria a minha curiosidade sobre pormenores da transição dizendo-me, meio a sério meio a brincar, que, quando assumiu o poder pela primeira vez, uma das suas primeiras medidas foi só sair à rua com pelo menos o dobro dos motards da escolta policial que o antigo governador colonial utilizava. Para a população – diria perante o meu ar de divertido espanto – era um sinal de que o novo presidente moçambicano era duas vezes mais importante que o ex-governador colonial! Ora vem esta maravilhosa história a propósito da imagem que, no nosso país, se «vendeu» com êxito à empobrecida população, farta do seu longo isolamento internacional. A ideia, a partir do momento que se sabe que os portugueses querem seguir um destino comum ao dos seus congéneres europeus, de que quem tinha amigos ricos na Europa era rei! Chegar-se-iam mesmo a descrever relações internacionais sem o menor sentido de modéstia e das proporções, tendo o líder socialista afirmado até ser «evidentemente… amigo pessoal do Schmidt, do Willy Brandt, do Callagham, do Olof Palme, do Yoergensen [41], do Kreisky, do Mitterrand, etc. “Posso pegar em qualquer momento no telefone e falar com eles” [42]. Mesmo que fosse verdade em 1979 e que, com excepção de Mitterrand, Mário Soares conseguisse falar com qualquer desses «amigos pessoais» numa linguagem comum, esta afirmação visava o mesmo objectivo dos motards de Samora Machel. A realidade era contudo muito diferente, sobretudo, antes do 25 de Abril de 1974!
Desde o lançamento da ASP que os socialistas portugueses encontravam imensas dificuldades em ser reconhecidos em termos de igualdade pelos seus congéneres europeus e o acolhimento político e logístico aos dirigentes portugueses – com excepção da ocasional foto protocolar em reuniões internacionais – estava longe de ser solidário e, muito menos, caloroso. Enquanto exilado, o líder do movimento socialista português nunca seria recebido oficialmente, nunca participaria em nenhuma conferência de imprensa conjunta, em nenhuma conferência de líderes ou reunião bilateral pública com nenhum dos dirigentes da Internacional Socialista. Não há registo de declarações conjuntas de Soares com nenhum dos «amigos» acima mencionados e não se conhece um único acto conjunto, nem sequer um simples almoço, que revele aquela intimidade. À excepção de Mitterrand, jamais conseguiria encontrar nos escritos de Palme, Kreisky, Brandt ou Wilson, nem tão pouco nas suas biografias, uma única referência ao líder português comprovativa daquela autoproclamada amizade. E estes são os exemplos da família socialista. Em contraste, por exemplo, Felipe González, apesar de pertencente a uma geração mais jovem, é frequentemente referenciado por todos eles. No seu livro de memórias, o ex-chanceler alemão e presidente da Internacional Socialista, Willy Brandt, diz mesmo que “com o jovem Felipe González (sentiu) uma forte ligação desde o princípio” [43]. A situação de desconsideração pelo nosso esforço, enquanto dirigentes políticos no exílio, era tal que Mário Soares chegaria a ter mesmo momentos de desespero com os seus «anfitriões» do Partido Socialista Francês que, apesar de estar na oposição e ser, na cena internacional, um partido relativamente insignificante, raramente o recebia e só em casos excepcionais se encontrava com o então secretário das relações internacionais, Robert Pontillon. E, apoio material, nem vê-lo! Por outro lado, como já se disse, para além da foto ou aperto de mão protocolares, os contactos do líder português faziam-se de uma posição humilde e algo humilhante com funcionários dos partidos da IS ou, como grande conquista, com os secretários das relações internacionais desses partidos. Estes exemplos de falta de solidariedade eram generalizados, mas para isso é evidente que contribuía o conhecimento dos partidos «estabelecidos» da exiguidade da nossa influência na sociedade portuguesa, que contrastava, no tamanho, com o radicalismo à francesa dos dirigentes da Acção Socialista.
Os socialistas europeus tinham a sensação de que o recém-nascido movimento socialista português era uma criação artificial pequeno-burguesa ou, como diria mais tarde o conhecido e radical ex-ministro britânico, Tony Benn, referindo-se ao líder do PS, “bastava olhar para ele para ver que nada tinha que ver com o socialismo da classe operária” [44]. As dificuldades eram tais, que os poucos financiamentos teriam que ser arrancados quase à força. Perante um pedido de ajuda para o núcleo da Acção Socialista que acabara de ser constituído em Londres, o primeiro núcleo devidamente organizado no exílio, o Partido Trabalhista respondia lamentar, mas não estar “em posição de poder contribuir para a manutenção duma sede. Contudo, se conseguirem obter um espaço talvez possamos contribuir com uma máquina de escrever, estantes, secretárias, etc., de que nós próprios já não necessitemos” [45].

No mesmo ano, Bernt Carlsson, secretário internacional do partido irmão da Suécia escrevia a Mário Soares em Paris: “que a direcção [do PSD sueco] considerou o seu pedido de ajuda financeira de 15 de Outubro, 1971. Foi decidido dar uma contribuição de 10 mil coroas suecas” [46], tendo, após novo pedido de Mário Soares, no ano seguinte, o referido funcionário anunciado uma nova “contribuição de 10 mil coroas suecas” [47]. Mesmo assim esta fonte, que tendo em conta os valores cambiais da altura, e as contribuições dos outros partidos, era extremamente solidária, parece ter secado.
Manuel Tito de Morais escrever-me-ia em Novembro de 1973, pedindo-me para “ir a Estocolmo falar ao Carlsson. Ficou de se encontrar (com ele) aqui em Roma mas não deu sinal de vida, depois de ter recusado a ajuda material que lhe pedíramos. Devias vê-lo e falar também ao Schori [48] , não para pedir nada mas para manter o contacto, falar nos nossos assuntos e veres se descobres a razão do afastamento que se verifica”. [49]
Estávamos assim bem longe do tempo em que bastava pegar no telefone e falar como Brandt, o Palme ou o Kresiky. E, se as quantias que o PSD sueco enviava para Paris a Mário Soares eram generosas em relação ao tamanho da ASP e das nossas expectativas, elas eram, na realidade, insignificantes se comparadas com o financiamento sueco a outras organizações consideradas importantes. A título de comparação, bastaria dizer que na altura o apoio financeiro da Suécia à luta da FRELIMO era 7500 vezes superior ao enviado a Mário Soares, para Paris. Após divulgação pelo The Times de Londres, a 10 de Julho de 1973, do massacre de Wiriyamu relatado pelo padre católico Adrian Hastings, o ministro sueco dos negócios estrangeiros do governo de Olof Palme, Krister Wickman anunciaria que o aumento da ajuda sueca à FRELIMO seria aumentado de 3 para 5 milhões de coroas [50]. O malogrado ex-primeiro-ministro da Suécia tinha, aos 22 anos e enquanto secretário da União de Estudantes Suecos, promovido uma colecta a favor de bolsas de estudos para estudantes africanos. Um dos primeiros a serem beneficiados, já no ano de 1949, fora exactamente o fundador da FRELIMO, Eduardo Mondlane, de quem Palme viria a tomar-se grande arnig0. [51]
Até à fundação do Partido Socialista e para além da filiação da ASP na Internacional Socialista em 1972, a actividade dos socialistas portugueses limitar-se-ia a uma frustrante monotonia. Conseguira, após a minha adesão em 1970, constituir em Londres o primeiro núcleo, com mais meia dúzia de pessoas. Por outro lado, através da exígua solidariedade do Partido Socialista italiano e dos partidos sociais-democratas sueco e alemão, Mário Soares e Manuel Tito de Morais iam conseguindo algum financiamento para marcar presençanos conclaves da Internacional Socialista. Mas foi graças ao núcleo de Londres, que eu constituiria em 1970, que a grande oportunidade política surgiu no contexto da visita oficial de Marcello Caetano à Grã-Bretanha de 16 a 18 de Julho de 1973. Três meses antes, em Abril de 1973, estava prevista uma reunião, na República Federal da Alemanha, de quadros da ASP do interior com os elementos no exílio. As passagens e a estadia num centro de formação do SPD seriam em parte financiados pela fundação Friedrich Ebert, graças ao empenhamento de uma sua funcionária, Elke Esters, que acompanhava a situação na Península Ibérica para aquele instituto. Era casada com um funcionário superior da fundação e tinha uma grande simpatia, quer pelo Partido Socialista Popular de Espanha e por Tierno Galván, quer pelos socialistas portugueses, graças à amizade que estabelecera com Gustavo Soromenho. A reunião na Alemanha, prevista para a Páscoa de 1973, não passava de um mini-congresso da ASP ou, como Tito de Morais lhe chamaria, uma «assembleia de quadros» cujo “número de participantes (estava) limitado a 20 por razões financeiras” [52]. Os participantes poderiam levantar os seus bilhetes nos escritórios da Lufthansa e deveriam encontrar-se no restaurante do aeroporto de Colónia no dia 16 de Abril, entre as 17 e as 18 horas da tarde. Mas, algumas semanas antes, Mário Soares decidiria abordar a questão da transformação da ASP em Partido. A reacção dos elementos que viviam em Portugal foi inicialmente contra tal decisão. A sua tese, para além de justificadamente poderem alegar que meia dúzia de cavaleiros andantes não faziam um partido político, baseava-se essencialmente no receio que tinham das represálias da PIDE, se soubesse que tinham estado na fundação de um partido político, crime então punível com uma pena de prisão!
Em Bad Munstereifel compareceriam vinte e sete fundadores, dos quais onze residentes em Portugal. Mário Soares, Ramos da Costa e Liberto Cruz viviam em Paris. Soares vivia desafogadamente, leccionando instituições portuguesas na universidade de Vincennes e, sobretudo, enquanto consultor do Banco d’Outre Mer de Manuel Bullosa. Este emprego, que era a sua principal fonte de rendimento só seria revelado, pelo próprio, em 1983. Jorge Campinos leccionava na universidade de Poitiers e Francisco Ramos da Costa era considerado um homem abastado que vivia de rendimentos que tinha em Portugal. Manuel Tito de Morais e Gil Martins viviam em Roma. O primeiro era financeiramente apoiado pelo Partido Socialista Italiano e o segundo estudava arquitetura. Fernando Loureiro era licenciado em medicina e vivia na Suíça, onde trabalhava para uma empresa farmacêutica. Bernardino Gomes vivia na Bélgica e estudava na universidade católica de Louvaina. De Londres vinham José Neves que era funcionário de uma empresa de equipamentos de escritório e Seruca Salgado que tinha participado,enquanto militante da LUAR, na tentativa de golpe de Beja refugiando-se primeiro em Argel. Da Alemanha vinham Gomes Pereira, que lá trabalhava como metalúrgico, assim como Lucas do Ó, Carlos Novo e Carlos Queixinhas. De Portugal estariam presentes os advogados Catanho de Menezes, Gustavo Soromenho, Fernando Vale, Fernando Borges e António Arnaut. Arons de Carvalho, Nuno Godinho de Matos e Roque Lino eram licenciados em direito e Maia Cadete, Mário Mesquita e Carlos Carvalho eram jornalistas. A única mulher presente seria Maria Barroso que, na Alemanha, representaria essencialmente o grande ausente, Francisco Salgado Zenha. Também outros, à data reconhecidamente ligados à fundação do Partido Socialista, não estariam presentes pelas mais variadas razões. Áurea Rego que vivia em Londres e muito fez para dinamizar o núcleo de Londres, Raul Rego, António Macedo, Jaime Gama, António Campos, José Luís Nunes, Magalhães Godinho e Vasco da Gama Fernandes, são alguns dos ausentes de maior relevo.
Em qualquer dos casos o partido que fundámos na Alemanha, no dia 19 de Abril de 1973, não teria mais de cinquenta filiados em todo o mundo e a polémica que viria à luz, aquando das celebrações do vigésimo aniversário da fundação, sobre quem votara a favor quem era contra a transformação da ASP em partido é realmente pouco relevante. E apesar do meritório esforço jornalístico de Mário Mesquita, nem a fundação do PS teria a «benção» de Willy Brandt [53] nem os que votaram contra a fundação do PS, como foi o caso de Salgado Zenha, através de Maria Barroso, e do próprio Mário Mesquita, o fizeram por razões doutrinárias. Willy Brandt não esteve presente nem enviou qualquer mensagem a este congresso fundador e os únicos representantes do SPD seriam a funcionária da fundação Ebert para as questões ibéricas, Elke Esters e, no último dia, o secretário internacional Hans Eberhard Dingels que é igualmente funcionário e não pertence aos quadros dirigentes daquele partido.
O SPD não acreditava então, nem na viabilidade do Partido Socialista enquanto partido de massas, nem na queda do regime. As razões que levariam sete congressistas a votar contra explicam-se em alguns casos pelo receio das consequências de tal acto, noutros casos porque também havia quem achasse que para se ser um partido político era necessário ter mais que meia centena de dirigentes. Havia ainda os que viam na fundação do PS uma manobra apressada e camuflada de Mário Soares para poder negociar com o PCP o acordo que viria, aliás, a assinar cinco meses depois, sem mandato das «exíguas» bases.

Depois da filiação da Acção Socialista na Internacional Socialista, em 1972, a fundação do PS passaria despercebida, não tivesse sido a revelação pelo The Times, no dia 10 de Julho de 1973, do massacre perpretado em Wiriyamu, Moçambique, pelas forças armadas portuguesas. Na base deste enorme escândalo, que o conhecido diário britânico revelaria uma semana antes da chegada de Marcello Caetano a Londres para uma visita oficial destinada a celebrar os 600 anos da aliança Anglo-Portuguesa, estava um relatório da ordem dos padres de Burgos, que o padre inglês Adrian Hastings fizera chegar àquele jornal. O primeiro-ministro britânico, o conservador Edward Heath seria colocado numa posição insustentável tendo, Harold Wilson, então líder da oposição trabalhista, exigido o cancelamento da viagem de Marcello Caetano. Wilson diria, num claro aproveitamento da situação, que apesar de Portugal ser aliado da Grã-Bretanha há 600 anos e seu parceiro na NATO, nem se justificava festejar a visita do primeiro-ministro de Portugal nem, “depois do que (fora) relatado, se justificava a presença de Portugal na NATO” [54]. As pressões não convenceriam, contudo, Heath a cancelar a visita oficial do primeiro-ministro português e o Partido Trabalhista organizaria uma série de manifestações de rua contra a visita, convidando para o efeito o núcleo de Londres (que então era dirigido por José Neves), e Mário Soares a estarem presentes. Seria, então, visível o enorme embaraço do governo português, cujos desmentidos não convenceriam ninguém, muito menos porque persistia em apelidar a FRELIMO de «organização terrorista».
Os dirigentes trabalhistas boicotariam todas as cerimónias, tendo Harold Wilson recebido uma delegação do PS, chefiada por Mário Soares, o que provocaria grande histeria no seio do governo português. Este participaria ainda numa importante sessão solene organizada pelo padre Adrian Hastings em Chattham House, com a presença da fina flor da esquerda britânica. Pela primeira vez, aparecia o nome de Mário Soares na Imprensa britânica e em toda a Imprensa mundial, enquanto Marcello Caetano era apresentado, com desdém e sem subterfúgios, como um ditador. O próprio primeiro-ministro Edward Heath não escondia o desconforto com que recebia o seu homólogo português. Pode-se afirmar, sem margem para dúvidas, que o ano de 1973 seria o anno horribilis de Caetano.
o aumento dos custos materiais e humanos das operações militares em África, a revelação dos sucessos da luta armada dos movimentos de libertação, o descrédito internacional que derivaria da revelação de Wiriyamu, a declaração de independência da Guiné por parte do PAIGC e as posições assumidas por Sá Carneiro em Portugal eram por si só premonitórias do fim do regime. Mesmo assim, Marcello Caetano não percebera que existiam agora outras alternativas perfeitamente aceitáveis para o mundo ocidental, que não passavam pela continuidade do regime salazarista! O Partido Socialista com os seus cinquenta militantes e o seu acordo de governo com o Partido Comunista iriam ser, sem o imaginarem e sem terem para isso contribuído, os grande beneficiários da miopia do sucessor de Salazar e da revolta militar que culminaria com o 25 de Abril.
NOTAS:
[1] «The Agency- The Rise & Decline 0f the ClA, John Ranelagh», p. 352, Cambridge Publishing Limited, 1987
[2] O Partido Trabalhista de Israel era também um importante partido da Internacional Socialista
[3] Hans Janitschek, «Mário Soares – Portrait of a Hero», p. 26, Widenfeld & Nicolson, Londres, 1985
[4] Hans Janitschek seria convidado por Kurt Waldheim para consultor da ONU, em Nova Iorque, lugar que ainda detém.
[5] Pierre Schori da Suécia, Brendan Halligan da Irlanda, Tom McNally da Grã-Bretanha, Vera Mathias da IS e dois italianos, do PSI e do PSDI
[6] Hans Janitschek, ob. cit., p. 31
[7] Corriam rumores entre os exilados de que Mário Soares só não aceitara o convite do director de campanha de Marcello Caetano, Guilherme de Mello e Castro, para integrar as listas da ANP, em 1969, porque pretendia a garantia de um lugar no governo
[8] Carta de Manuel Tito de Morais de 24 de Janeiro de 1970
[9] Entrevista de Vitorino Magalhães Godinho, Semanário de 20 de Outubro de 1984
[10] George Schultz, secretário de estado dos E.U.A. durante a presidência de Ronald Reagan, afirma que no seu primeiro encontro com González este lhe terá dito ter aprendido com o presidente francês, François Mitterrand, a “não implementar o programa socialista e a utilizar a política de mercado”. George Schultz, Turmoil & Triumph,p. 151, Mac Millan Publishing Co., Nova Iorque, 1993
[11] «Cem Anos de Esperança», Edições Portugal Socialista, Lisboa, 1979
[12] «Cem Anos de Esperança», Edições Portugal Socialista, Lisboa, 1979
[13] Mário Soares, «Le Portugal Bailloné», p. 206, Calmann-Levy, Paris, 1972
[14] Tony Benn («The End of an Era» – Diaries 1980-1990, p. 108, Arrow Books, Londres, 1994) diria, após um encontro com Mário Soares em Lisboa, tê-lo achado, ao contrário do que esperara, “um pobre vaidoso sem uma verdadeira noção dos acontecimentos históricos em que participava”
[15] António Reis ao Diário de Notícias de 16 de Abril de 1993
[16] Conversa com o então secretário-geral da Internacional Socialista, Hans Janitschek, em Lisboa, no dia 5 de Outubro de 1993
[17] José Freire Antunes, «Cartas Particulares a Marcello Caetano», 2.° vol., pp. 334 a 340, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985
[18] Seriam eleitos para a C.D. da ASP, Tito de Morais (organização), Mário Soares (relações internacionais), Ramos da Costa (tesouraria), Gil Martins (imprensa) e Fernando Loureiro e Rui Mateus (juventude)
[19] Circular confidencial da ASP de 28 de Setembro de 1971
[20] Circular confidencial da ASP de 28 de Setembro de 1971
[21] Mário Soares, «Portugal: Que Revolução ?», p. 9, Perspectivas e Realidades, Lisboa,1976
[22] «Le Portugal Bailloné», p. 287
[23] «Le Portugal Bailloné», p. 287
[24] Idem,p. 288
[25] «Le Portugal Bailloné», p. 58
[26] «Le Portugal Bailloné», p. 58
[27] Mário Soares no prefácio do livro «Cem Anos de Esperança»
[28] Clement Attlee foi líder do Partido Trabalhista e primeiro-ministro da Grã-Bretanha de 1945 a 1955. A emergência dos trabalhistas após a Segunda Grande Guerra chegou a convencer muitos anti-salazaristas de que esse simples facto seria o suficiente para a queda do ditador português
[29] Manuel Bullosa foi um dos principais empresários portugueses de antes do 25 de Abril. Era dono do Crédito Predial Português, Sacor e Banco Franco-Português, de Paris
[30] Partido Comunista da União Soviética
[31] Carta particular de Mário Soares, de 28 de Setembro 1973
[32] Axel Buus seria nomeado embaixador da Dinamarca em Portugal em 1985
[33] Norman Thomas, seria o grande pioneiro do Movimento Socialista dos Estados Unidos da América
[34] José Freire Antunes, «Os Americanos e Portugal», vol. 1 , p. 90, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1986
[35] José Freire Antunes, ob. cit., p. 91
[36] Na sequência do inquérito sobre as relações da CIA com os Meios de Comunicação Social a que presidiu o congressista Edward Boland, o famoso colunista Cyros Sulzberger, da família proprietária do jornal New York Times, admitiria que era normal a existência de contactos regulares entre correspondentes daquele diário no estrangeiro com agentes da CIA. Entre outras actividades apuradas encontrava-se o financiamento de editoras, o reconhecimento de que dezenas de agentes da CIA tinham trabalhado como correspondentes estrangeiros de jornais americanos e agências noticiosas. Um artigo sobre o assunto, da autoria de Cyrille Fali, «The CIA and the Media: An Overview», seria publicado pela primeira vez em 20 de Fevereiro de 1978 na revista Ajrique-Asie, de Paris
[37] José Freire Antunes, ob. cit., p. 91
[38] Marvin Howe escreveria uma carta ao acessor do presidente Lyndon Johnson a oferecer-se para por a administração americana em contacto com «porta-vozes qualificados» da oposição. José Freire Antunes, ob. cit., p. 90.
[39] Mário Soares, «Portugal Amordaçado» p. 540, Arcádia, Lisboa, 1974
[40] José Freire Antunes, ob. cit., p. 56
[41] Trata-se, segundo creio, do ex-primeiro-ministro da Dinamarca, Anker Joergensen
[42] Mário Soares, «O Futuro Será do Socialismo Democrático», p. 134, Publicações Europa-América, Lisboa
[43] Willy Brandt, «Minnen», p.324, Bergh & Bergh, Estocolmo, 1990
[44] Tony Benn, «Against the Tide. Diaries 1973-1976», p. 445, Arrow Books, Londres, 1989
[45] Carta do secretário internacional do Partido Trabalhista Britânico de 20 de Julho 1971
[46] Carta do secretário internacional do PSD sueco a Mário Soares de 26 de Outubro de 1971
[47] Carta do Secretário Internacional do PSD sueco a Mário Soares de 14 de Abril de 1972
[48] Refere-se a Pierre Schori, na altura assessor de Olof Palme e actualmente ministro da cooperação. Schori fez parte da missão da IS chefiada por Hans Janitschek a Portugal em 1969, detida pela PIDE e, depois, expulsa por Marcello Caetano
[49] Carta de Tito de Morais de 14 de Novembro de 1973. Embora os suecos me mantivessem ao corrente dos financiamentos que faziam à ASP através de Mário Soares, o responsável pela organização da ASP, Manuel Tito de Morais, não tinha aparentemente conhecimento desses financiamentos. Este estilo de «organização» seria típico do PS também após o 25 de Abril
[50] «Keasing’s Contemporary Archives», 17-23 de Setembro de 1973
[51] Olof Palme, «Le Rendez-vous Suédois», pp. 14-15, Editions Stock, Paris, 1976
[52] Circular da ASP de 7 de Março de 1973
[53] No extenso trabalho sobre a fundação do PS publicado pelo Diário de Notícias de 16 de Abril de 1994, Elke Esters afirma a Mário Mesquita que foi “a relação entre Willy Brandt e Mário Soares (que) esteve na base da “benção” oeste-alemã à fundação do PS”. Em 19 de Abril de 1973, Willy Brandt era chanceler do seu país e mal conhecia Mário Soares. No seu livro de memórias Minnen, já citado, nunca se refere a este acontecimento nem ao seu empenhamento para a fundação do PS português. Também não refere qualquer relacionamento com o líder do PS, depreendendo-se, aliás, o contrário
[54] Intervenção de Harold Wilson na Câmara dos Comuns, em 17 de Julho de 1973. «Kiesing’s Contemporary Archives», 17-23 de Setembro p. 26099
Fonte: Livro «Contos Proibidos – Memórias de um PS Desconhecido» de Rui Mateus