Introdução
Livro dos Mortos (cujo nome original, em egípcio antigo, era «Livro de Sair Para a Luz») é a designação dada a uma colectânea de feitiços, fórmulas mágicas, orações, hinos e litanias do Antigo Egipto, escritos em rolos de papiro e colocados nos túmulos junto das múmias. O objectivo destes textos era ajudar o morto na sua viagem para o outro mundo, afastando eventuais perigos que este poderia encontrar na viagem para o Além.
A ideia central do «Livro dos Mortos» é o respeito à verdade e à justiça, mostrando o elevado ideal da sociedade egípcia. Era crença geral que diante da deusa Maat de nada valeriam as riquezas, nem a posição social do falecido, mas que apenas os actos seriam levados em conta. Foi justamente no Egipto que esse enfoque de que a sorte dos mortos dependia do valor da conduta moral enquanto vivo ocorreu pela primeira vez na História da humanidade. Mil anos mais tarde, — diz Kurt Lange – essa ideia altamente moral não se espalhara ainda por nenhum dos povos civilizados que conhecemos. Na Babilónia, como entre os hebreus, os bons e os maus eram vítimas no além, e sem discernimento, das mesmas vicissitudes.
Não resta dúvida de que o julgamento dos actos após a morte devia preocupar, e muito, a maioria dos egípcios, religiosos que eram. Para os egípcios esse conjunto de textos era considerado como obra do deus Thoth. As fórmulas contidas nesses escritos podiam garantir ao morto uma viagem tranquila para o paraíso e, como estavam grafadas sobre um material de baixo custo, permitiam que qualquer pessoa tivesse acesso a uma terra bem-aventurada, o que antes só estava ao alcance do rei e da nobreza. Em verdade, essa compilação de textos era intitulada pelos egípcios de Capítulos do Sair à Luz ou Fórmulas para Voltar à Luz (Reu nu pert em hru), o que por si só já indica o espírito que presidia a reunião dos escritos, ainda que desordenados. Era objectivo desse compêndio, nos ensina o historiador Maurice Crouzet, fornecer ao defunto todas as indicações necessárias para triunfar das inúmeras armadilhas materiais ou espirituais que o esperavam na rota do “ocidente”.
O «Livro dos Mortos» não era um “livro” no sentido coevo da palavra. A actual ideia de livro sugere a existência de um autor (ou autores) que redigiram propositadamente um texto com um princípio, meio e fim. Em vez disso, os textos que integram o que hoje se denomina por Livro dos Mortos não foram escritos por um único autor nem são todos da mesma época histórica. Um dos escritores mais conhecido por colaborar com uma parte desse livro foi Snefferus S. Karnak.
Os antigos egípcios denominavam a esta colectânea de textos como Prt m hru, o que pode ser traduzido como «A Manifestação do Dia» ou «A Manifestação da Luz». A actual designação «Livro dos Mortos» é disputada entre duas origens. A primeira refere-se ao título dado aos textos pelo egiptólogo alemão Karl Richard Lepsius quando os publicou, em 1842 – «Das Todtenbuch der Ägypter» (Todtenbuch, Livro dos Mortos). Afirma-se igualmente que o título possa ser oriundo do nome que os profanadores dos túmulos davam aos papiros que encontravam junto às múmias – em árabe, Kitab al-Mayitun (Livro do Defunto).
Primeiros facsimilares
Quatro anos após a campanha francesa no Egipto (1798–1801) é publicado em Paris o primeiro facsimilar de um exemplar do «Livro dos Mortos». Trata-se do «Papyrus Cadet», feito durante a dinastia Ptolemaica para o egípcio Padiamonebnésuttauy. Seguidamente, esse facsimilar é colocado com outros no segundo volume do monumental Descrição do Egipto. Essa obra foi publicada entre 1809 e 1828.
Traduções
A primeira tradução do «Livro dos Mortos» foi publicada em 1842. Foi uma edição em língua alemã, fruto do trabalho do egiptólogo alemão Karl Richard Lepsius, traduzida com base no «Papyrus de Iuef-Ânkh», da época Ptolomaica e guardada no museu egiptólogo de Turim. Lepsius dividiu esse papiro, um dos mais completos, em 165 capítulos numerados (um capítulo por cada fórmula mágica distinta). Por razões práticas, essa numeração mesmo que arbitrária é sempre actual no meio da filologia egípcia .
Em 1881 o holandês Willem Pleyte publica 9 capítulos adicionais (166 a 174)5 mas que foram ignorados pelo suiço Henri Édouard Naville. Este último revelou os seus próprios capítulos adicionais (166 a 186) baseado em diferentes papiros do Novo Império egípcio .
Em 1898 o inglês sir E. A. Wallis Budge publicou uma sua tradução baseado nos papiros que remontam da XVIII.ª Dinastia Egípcia à Dinastia Ptolomaica. A sua edição cresce com os capítulos 187 a 190 retirados do «Papyrus de Nu», salvaguardados no British Museum de Londres.
Mais recentemente o americano Thomas George Allen (em 1960) fez uma tradução em língua inglesa com dois capítulos adicionais (191 e 192)
Estrutura
As edições modernas do «Livro dos Mortos» são compostas por cerca 200 “capítulos”, nome que os egiptólogos dão às fórmulas encontradas nos papiros preservados ao longo dos séculos. Nenhum dos papiros conhecidos apresenta o mesmo número de capítulos e de ilustrações (vinhetas). Entre os mais conhecidos, encontra-se o «Papiro de Ani», com um total de 24 metros, que se encontra actualmente no British Museum em Londres.
Formação
O «Livro dos Mortos» data da época do Império Novo, período da história do Antigo Egipto que se inicia por volta de 1580 a.C. e termina em 1160 a.C.. No entanto, a obra recolhe textos mais antigos – do «Livro das Pirâmides» (Império Antigo) e do «Livro dos Sarcófagos» (Império Médio).
No Império Antigo foram gravadas várias fórmulas mágicas sobre os muros dos corredores e das câmaras funerárias das pirâmides de Sakara, pertencentes a vários reis da V e da VI Dinastias (Unas, Teti, Pepi I, Merenré e Pepi II). Estes textos são conhecidos como «Textos das Pirâmides». Nesta altura a possibilidade de uma vida depois da morte era apenas acessível aos reis.
A partir da VII Dinastia egípcia verifica-se uma “democratização” da possibilidade de ascender a uma vida no Além. Esta não será mais reservada apenas ao soberano, mas será também possível para os nobres e os altos funcionários, e progressivamente estender-se-á a toda a população. Durante o Império Médio os textos usados pelos reis foram modificados, ao mesmo tempo que surgiram novos textos que mantinham a sua função de ajudar o morto no caminho do Além. Os textos passaram a ser escritos no interior dos sarcófagos (na madeira) dos nobres e dos funcionários, sendo por isso conhecidos como «Textos dos Sarcófagos».
Durante o Império Novo reuniram-se textos funerários de períodos anteriores («Textos das Pirâmides» e «Textos dos Sarcófagos»), ao mesmo tempo que se redigiram novos textos, escritos em rolos de papiro e colocados junto das múmias nos túmulos. A colectânea destes textos é hoje conhecida como «Livro dos Mortos».
Existem algumas versões locais do «Livro dos Mortos», que apresentam pequenas diferenças.
A chamada “recensão tebana”, escrita em hieróglifos (e mais tarde em hierático) sobre papiro, encontra-se dividida em capítulos sem uma ordem determinada, embora a maioria deles possua um título. Esta versão foi utilizada entre a XVII e a XXI Dinastia egípcia não apenas pelos faraós, mas também pelas pessoas comuns.
Na “recensão Saíta“, usada a partir da XXVI Dinastia (Século VII a.C.) e até o fim da era ptolemaica, fixou-se de forma definitiva a ordem dos capítulos.