Depois de um medicamento ser aprovado, é muito raro um regulador retirá-lo do mercado, sobretudo se o único problema é a falta de eficácia, e não a morte de doentes devido a efeitos secundários. Quando os reguladores recorrem por fim a essa medida, fazem-no normalmente com um atraso considerável.
A midodrina é um medicamento usado para tratar a “hipotensão ortostática”, uma diminuição da tensão arterial que causa tonturas quando a pessoa se levanta. Embora seja uma situação indubitavelmente desagradável para quem passa por ela, podendo aumentar o risco de queda, não é geralmente o que a maioria das pessoas consideraria grave ou potencialmente fatal. Além disso, nem todos os países e culturas a consideram um problema médico isolado nem lhe atribuem idêntica importância. Mas, porque não havia Fármacos disponíveis para a tratar, a midodrina conseguiu ser aprovada através de um processo acelerado, em 1996, com provas fracas mas com a promessa de mais e melhores estudos no futuro.
Concretamente, a midodrina foi aprovada com base em três ensaios muito pequenos e curtos (dois deles com uma duração de dois dias apenas) em que muitas das pessoas a quem foi ministrado o fármaco abandonaram completamente o estudo. Esses ensaios mostraram um pequeno benefício num desfecho substituto (alterações no registo da tensão arterial quando os participantes se levantavam), mas sem quaisquer benefícios nos desfechos do mundo real, como por exemplo tonturas, qualidade de vida, quedas, etc. Em consequência, depois de a midodrina ter sido aprovada num processo urgente, o fabricante, a Shire, teve de prometer que realizaria mais investigações logo que o medicamento fosse comercializado.

Foram-se passando os anos sem que surgissem ensaios satisfatórios. Em Agosto de 2010, catorze anos depois, a FDA anunciou que retiraria o medicamento do mercado de uma vez por todas a não ser que a Shire apresentasse finalmente alguns dados sólidos que comprovassem que a midodrina melhorava os verdadeiros sintomas e o dia-a-dia dos doentes, em vez dos números registados num aparelho de medir a tensão após um dia de medicação. Parecia uma atitude assertiva que iria finalmente provocar o cumprimento do que havia sido acordado, mas o resultado foi o oposto. Na verdade, a empresa disse: “Está bem.” A patente do medicamento tinha expirado: qualquer pessoa o podia fabricar e, na verdade, neste momento, a Shire só produz 1% da midodrina que é vendida, sendo os restantes 99% produzido pela Sandoz, a Apotex, a Mylan e outras empresas. Num mercado tão superlotado, não se podia ganhar muito com a venda deste medicamento, e decerto que não existia qualquer incentivo para investir em investigações que só ajudariam outras empresas a vender cem vezes mais do mesmo produto. Catorze anos depois da aprovação original da midodrina, a FDA descobriu o que um simples atraso era verdadeiramente.
Porém, a história não fica por aí. De repente, surgiu um grande número de utilizadores de midodrina e de grupos de doentes com interesses especiais, encabeçados por políticos: só em 2009, o medicamento tinha sido receitado a 100.000 doentes. Para eles, o comprimido era um salva-vidas e o único que existia para tratar o seu estado. Com o medicamento fora do mercado, se todas as empresas fossem proibidas de o fabricar, seria o desastre. O facto de nenhum ensaio ter demonstrado qualquer benefício concreto era irrelevante: charlatanices como a homeopatia continuam a manter uma base de admiradores extraordinariamente leais, apesar de as pílulas homeopáticas não conterem, por definição, quaisquer ingredientes, e apesar de a investigação demonstrar, em geral, que o seu desempenho não é superior ao de um placebo. [1] Esses doentes que tomavam midodrina não se preocupavam com resultados de ensaios: “sabiam” que o seu medicamento resultava, com a convicção de autênticos crentes. E agora o governo planeava retirá-lo por causa de uma qualquer transgressão administrativa complexa. Que é isso de “desfecho substituto”? Para a posição que estavam a tentar defender, deve ter-lhes parecido um jogo de palavras irrelevante.

A FDA foi forçada a recuar e a permitir que o medicamento se mantivesse no mercado. Continuaram a decorrer negociações lentas sobre a questão dos ensaios pós-comercialização, mas a FDA tem, neste momento, muito pouca influência sobre qualquer empresa no que toca a este medicamento. Quase duas décadas depois de a midodrina ter sido aprovada pela primeira vez com carácter urgente e excepcional, as empresas que a fabricam ainda continuam a prometer que realizarão ensaios adequados. Em 2012, ainda não se tinha conhecimento de nenhum.
Trata-se de um problema sério que vai muito além da história deste medicamento simples e bastante comum. Em 2009, a Direcção de Auditoria do Congresso Americano investigou a incapacidade de a FDA controlar estes tipos de estudos posteriores à aprovação e as suas descobertas foram assustadoras: entre 1992 e 2008, noventa Medicamentos tinham sido alvo de uma aprovação acelerada apenas com base em desfechos substitutos, havendo o compromisso por parte dos fabricantes de realizar 144 ensaios no total. Em 2009, ainda estavam por realizar um em cada três destes ensaios. Nenhum medicamento foi alguma vez retirado do mercado por o fabricante não ter entregue os dados de ensaio em falta.
O académico britânico John Abraham é um cientista social que tem feito mais que qualquer outra pessoa pelo esclarecimento das tradições e processos dos reguladores em todo o mundo. Concluiu que a aprovação acelerada se limita a fazer parte de uma tendência consistente no sentido da desregulação, em benefício da Indústria. Basta ler um dos estudos de casos em que tem trabalhado, juntamente com o colega Courtney Davis, para perceber como os reguladores em todo o mundo lidaram com os melhores candidatos possíveis a estas avaliações urgentes.
O gefitinib, cuja denominação comercial é Iressa, é um medicamento contra o cancro fabricado pela AstraZeneca, para doentes em situação desesperada que chegaram ao fim da linha. Está aprovado para o cancro do pulmão de células não pequenas, um diagnóstico gravíssimo, potencialmente fatal, e constitui um tratamento de “terceira linha”, depois de tudo o mais ter falhado. A sua aprovação acelerada foi obtida em parte devido a campanhas de doentes, tal como aconteceu com os doentes da sida que foram os primeiros a exigir legislação neste sentido. Também é um bom estudo de caso, porque o fabricante realizou de facto estudos de seguimento, o que é bastante invulgar (só 25% dos Medicamentos para o cancro, que Abraham estudou, o fizeram).

Para um processo comum de aprovação de uma terapêutica para o cancro do pulmão, é necessário comprovar melhorias significativas quer na sobrevivência quer nos sintomas. Mas a “resposta tumoral” uma redução nas dimensões do tumor, visível num exame radiológico — é um desfecho substituto bastante típico para os Medicamentos contra o cancro, que pode ser utilizado para se conseguir uma aprovação acelerada; depois disso, só é necessário realizar mais ensaios para descobrir se essa redução se traduz em benefícios que realmente interessem ao doente.
Inicialmente, a AstraZeneca forneceu provas de um pequeno ensaio que comprovavam uma diminuição de 10% nas dimensões do tumor em doentes a tomarem Iressa. Este resultado não impressionou a FDA, sobretudo porque os doentes que participaram no ensaio eram invulgares, com tumores de crescimento mais lento do que é usual. Mas a empresa pressionou e começou a realizar ensaios muito maiores que mediam o impacto na sobrevivência. Esperava terminar esses estudos depois de o medicamento ser aprovado mas, na realidade, completou-os antes. Os ensaios sobre o desfecho no mundo real não comprovaram quaisquer benefícios em termos de sobrevivência. Além disso, contrariando o estudo anterior, mais pequeno, tão-pouco comprovaram melhorias nas dimensões do tumor. Um cientista da FDA resumiu os achados de uma forma bastante seca: “São 2000 doentes a dizer que o Iressa não resulta contra 139 que dizem que resulta muito pouco.”
Entretanto, a empresa também estava a ministrar o medicamento a 12.000 doentes moribundos, sem qualquer outra opção, no âmbito daquilo a que por vezes se chama “autorização temporária de utilização”. É uma situação comum quando os doentes não respondem a nenhuma outra medicação, e são considerados demasiado inaptos para ensaios clínicos (embora eu pudesse argumentar que os ensaios deviam, idealmente, incluir todas as pessoas elegíveis para tratamento, porque só os realizamos para tentar apurar se um medicamento resulta ou não em doentes do mundo real). Estas “autorizações temporárias” custam dinheiro às empresas, mas também geram imensa boa vontade por parte dos doentes desesperados, das famílias e dos grupos organizados de doentes.
Neste momento, os reguladores, à semelhança de muitos organismos públicos, consideram extremamente importante o “envolvimento público”, o que é uma meta admirável, se a actuação for correcta. Mas o que vemos aqui não é um exemplo de bom envolvimento público.

Ensaios grandes, bem conduzidos e imparciais tinham revelado que o Iressa não era melhor que um comprimido sem substância activa. Contudo, muitos doentes moribundos que participavam nos programas de “autorização temporária de utilização”, estando a tomar o medicamento gratuitamente, viajaram com grupos de defesa para testemunhar a favor do Iressa perante a FDA. Na sua perspectiva, era um “medicamento maravilhoso”, explicaram, “a anos-luz para melhor em comparação com o tratamento anterior”. “Começou por eliminar os sintomas do cancro em sete dias.” “90% do tumor desaparecera em três meses”, disse um dos doentes. Exagero ou sorte, a verdade é que testes imparciais não revelaram qualquer benefício. Mas os doentes desesperados discordavam e defendiam o seu caso com simplicidade e poucas palavras: o Iressa “salva vidas”. Estes testemunhos pessoais são, quase decerto, uma combinação do efeito placebo e da flutuação natural nos sintomas que todos os doentes sentem. Mas isso não parecia ser importante.
Quando a comissão encarregada de aprovar o medicamento votou, os resultados foram 11 a favor e 3 contra.
É difícil saber o que fazer deste processo, pois a votação contrariou não apenas os dados relativos aos desfechos substitutos mas também os achados de ensaios muito grandes que não haviam provado qualquer benefício em desfechos do mundo real ou na sobrevivência.
Mas somos todos humanos, e é difícil rejeitar um medicamento quando se enfrentam testemunhos comoventes de vida e morte. Um cientista da FDA disse a John Abraham durante o seu trabalho de campo: testemunhos dos doentes influenciam definitivamente as comissões consultivas. O Iressa é prova disso. Vários doentes receberam apoio financeiro da AstraZeneca para participarem na reunião da comissão consultiva da FDA. Só podemos perguntar se as pessoas que tomaram Iressa sem êxito teriam sido transportadas pelo país fora para contar a sua verdade pessoal. Talvez não. Talvez tivessem falecido.

A FDA teria podido rejeitar a opinião da sua comissão de especialistas e talvez tivesse sido sensato fazê-lo. É que não havia só ausência de provas de benefício, havia relatos provenientes do Japão de pneumonia fatal associada ao Iressa, afectando 2% dos doentes, um terço dos quais morreu em quinze dias. Mas a FDA aprovou o medicamento.
A AstraZeneca foi obrigada a realizar mais um estudo com 1700 doentes, que voltou a não encontrar quaisquer benefícios em comparação com o placebo. O Iressa continuou no mercado. Surgiu outro tratamento, desta vez eficaz no tratamento de terceira linha do cancro do pulmão de células não pequenas. O Iressa continuou no mercado.
A FDA enviou uma circular afirmando que nenhum novo doente devia começar a tomar Iressa, mas os Medicamentos que estão no mercado são receitados por médicos, muitas vezes bastante ao acaso, por uma questão de marketing, por hábito, familiaridade, rumores e falta de informações claras actuais. O Iressa continuou a ser receitado a novos doentes. E mesmo assim continuou no mercado.
As percentagens nos inquéritos mostram-nos que os ensaios pós-comercialização pedidos pelos reguladores são muitas vezes negligenciados, e os médicos cínicos dir-nos-ão amiúde que há Medicamentos ineficazes que se vendem comummente. Mas a midodrina e o Iressa são, em meu entender, dois casos que acrescentam realmente algo à situação. A aprovação acelerada não é usada para introduzir no mercado Medicamentos urgentes para utilizar em situação de emergência e de avaliação rápida. Os estudos de seguimento não estão a ser feitos. Estas autorizações temporárias de utilização são uma cortina de fumo.
NOTA:
[1] Se este assunto lhe desperta um interesse particular, trato-o pormenorizadamente no meu livro anterior, «Ciência da Treta».