A nossa Democracia é uma Democracia de espectadores

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Outro grupo influenciado pelos acontecimentos que deram origem à propaganda, conforme apresentado no artigo «O Começo da História da Propaganda» foi o dos teóricos liberais democráticos e das figuras importantes dos Meios de Comunicação Social, como, por exemplo, Walter Lippmann, que era o decano dos jornalistas norte-americanos, um destacado comentarista da política interna e externa norte-americana. Se se olhar para os seus ensaios ver-se-á que o subtítulo geral poderia ser algo como «Uma Teoria Progressista do Pensamento Liberal Democrático». Lippmann esteve envolvido naquelas comissões de propaganda e reconheceu os seus êxitos. Afirmou que aquilo a que ele chamava um «revolução na arte da democracia», podia ser usado para «fabricar consentimento», isto é, para conseguir a concordância das pessoas para coisas que não queriam, recorrendo às novas técnicas de propaganda. Pensava também que isto não só era uma boa ideia, como era mesmo necessária. Era necessária porque, como observou, «a opinião pública não distingue os interesses comuns» que só podem ser compreendidos e orientados por uma «classe especializada» de «homens responsáveis», suficientemente inteligentes para apreender as coisas. Este teoria afirma que só um pequeno escol, a comunidade intelectual de que falavam os seguidores de Dewey, pode compreender os interesses comuns, aquilo que nos preocupa a todos, e que «o público em geral deixa-se iludir». Trata-se de uma opinião com centenas de anos. E também um ponto de vista tipicamente leninista. Com efeito, assemelha-se muitíssimo à concepção leninista segundo a qual uma vanguarda de intelectuais revolucionários toma o poder político, usando as revoluções populares como a força que os levam ao poder. Aí chegados, orientam as massas estúpidas para um futuro que elas, sendo demasiadamente estúpidas e incompetentes, não conseguem antever por si próprias. A teoria liberal democrática e o marxismo-leninismo estão muito próximas uma do outro nas suas concepções ideológicas. Penso que essa é uma das razões por que, ao longo dos anos, as pessoas têm achado tão fácil mudar de uma posição para outra sem qualquer sentido especial de mudança. É apenas questão de determinar onde é que está o poder. Talvez haja uma revolução popular, o que nos poria na mão do Estado; ou talvez não haja e nesse caso trabalharíamos para as pessoas que detêm o verdadeiro poder: a comunidade empresarial. Mas faríamos a mesma coisa: Guiaríamos as massas ignaras para um mundo que, irracionais como são, não poderiam compreender por si mesmas.

Lippmann apoiava esta posição com uma bonita e elaborada teoria de democracia progressiva. Argumentava que numa democracia que funcione devidamente existem classes de cidadãos. Em primeiro lugar, a classe de cidadãos que tem de desempenhar um papel activo, qualquer que seja, na condução dos assuntos em geral. Esta é a classe especializada. São as pessoas que analisam, executam, tomam decisões e dirigem as coisas nos campos político, económico e ideológico. Trata-se de uma pequena percentagem da população. Naturalmente que, quem quer que pretenda pôr em prática essas ideias faz sempre parte desse pequeno grupo que fala do que fazer com os outros. Esses outros, que se encontram fora do pequeno grupo, constituem a grande maioria da população, são aquilo a que Lippmann chama «o rebanho tolo». Temos que nos proteger do «tropel e do fragor de um rebanho tolo» Ora, existem duas «funções» numa democracia: à classe especializada, aos homens responsáveis, compete a função executiva, o que quer dizer que lhes cabe pensar, planear e perceber quais são os interesses comuns. Depois, existe o rebanho tolo que também tem uma função em democracia. A sua função numa democracia, diz Lippmann, é ser «espectador» e não participante activo. Todavia, a sua função é mais do que a de mero espectador. Ocasionalmente, o rebanho é autorizado a emprestar o seu peso a um ou outro membro da classe especializada. Por outras palavras, é-lhe permitido dizer «Queremos que seja o nosso líder» ou «Queremo-lo a si para nosso líder». Isto porque estamos numa democracia e não num Estado totalitário. Chama-se a isso um eleição. No entanto, uma vez usado o seu peso a favor de um ou outro membro da classe especializada, é suposto que se submerja outra vez e se torne espectador da acção, mas não participante. As coisas passam-se assim numa democracia que esteja a funcionar devidamente.

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E tudo isto tem uma lógica. Existe mesmo uma espécie de princípio moral compulsivo por detrás. Esse princípio moral compulsivo é que as pessoas, a grande massa, são demasiadamente estúpidas para perceberem as coisas. Se tentam participar na condução dos seus próprios assuntos, vão mesmo causar perturbações. Portanto, seria imoral e inconveniente permitir-lhes que o façam. Temos que domesticar o rebanho tolo e não consentir que este se enfureça, vagueie e destrua coisas. É a mesma lógica segundo a qual não estaria bem deixar uma criança de três anos atravessar sozinha a rua. Ninguém dá a uma criança de três anos esse tipo de liberdade por que essa criança não saberia como gerir tal liberdade. Na mesma linha de pensamento, ninguém deve consentir ao rebanho tolo que se tome participante da acção. Só ia provocar sarilhos.

Por isso, necessitamos de alguma coisa para domesticar o rebanho tolo e essa alguma coisa é a nova revolução na arte da democracia: a fabricação do consentimento. Os Meios de Comunicação Social, as escolas e a cultura popular têm de ser divididos. À classe política e aos decisores tem de se lhes dar algum sentido tolerável da realidade, embora eles também tenham de inculcar lentamente as suas próprias convicções. Recorde-se, porém, que existe aqui uma premissa não declarada. A premissa não declarada — e até mesmo os homens responsáveis têm de escondê-la de si próprios — tem a ver com a questão de como conseguir chegar a uma posição em que tenham autoridade para tomar decisões. Claro que a maneira como o fazem é servindo as pessoas com real poder, são elas que influenciam a Sociedade, mas trata-se de um grupo bastante pequeno. Se a classe especializada chega e diz, eu posso servir os vossos interesses, então essas pessoas passam a fazer parte do grupo executivo. Conseguiu-se que tudo se mantivesse calmo. Isto significa que elas tiveram de inculcar-lhes crenças e doutrinas que servirão os interesses do poder específico. Se não forem capazes de fazê-lo, não farão parte da classe especializada. Assim temos uma espécie de sistema educativo dirigido aos homens responsáveis, a classe especializada. É preciso que estejam profundamente impregnados dos valores e dos interesses do poder específico e do nexo estatal que o representa. Se forem capazes de consegui-lo, então podem fazer parte da classe especializada. Quanto ao resto do rebanho tolo, basicamente tem de ser entretido. Chamar a sua atenção para qualquer outra coisa. Afastá-lo de perturbações. Garantir que, quanto muito, se mantenha espectador da acção, inclinando-se ocasionalmente a favor de um ou outro dos verdadeiros líderes, entre os quais lhe é permitido escolher.

Esta posição tem sido desenvolvida por muitíssimas outras pessoas. Na realidade, é bastante convencional. Por exemplo, o importante teólogo e analista de política internacional Reinhold Niebuhr, às vezes chamado «o teólogo do establishment», o guru de George Kennan e dos intelectuais de Kennedy, considera que essa racionalidade é uma qualidade muito rara. São muito poucas as pessoas que a possuem. A maior parte das pessoas rege-se por emoções e por impulsos. As que são racionais, têm de criar «ilusões necessárias» e «ultrasimplificações» emocionalmente poderosas para conservar os simplórios mais ou menos sossegados. Isto tomou-se numa parte substancial da ciência política contemporânea. Nos anos 20 e nos princípio dos anos trinta, Harold Lasswell, o fundador do campo de comunicações moderno e um dos cientistas políticos norte-americanos de topo, explicou que não devemos vergar-nos a «dogmatismos democráticos acerca de os homens serem os melhores juízes dos seus próprios interesses». Porque não são. Nós somos os melhores juízes dos interesses públicos. No entanto, mesmo no limite da vulgar moralidade, temos de ter a certeza de que eles não têm qualquer oportunidade de proceder de acordo com os seus juízos erróneos. Naquilo a que hoje em dia se chama um Estado totalitário, ou um Estado militar, é fácil. Mantém-se um bom cacete em cima da cabeça das pessoas e se elas saírem da linha dá-se-lhes com ele. Todavia, como a Sociedade se tornou mais livre e mais democrática, perdeu-se essa capacidade. É necessário, portanto, recorrer às técnicas de propaganda. A lógica é evidente. A propaganda está para uma democracia como o cacete está para um Estado totalitário. Trata-se de um procedimento acertado e judicioso porque, mais uma vez, os interesses comuns ultrapassam o entendimento do rebanho tolo. As pessoas não conseguem comprendê-los.

Fonte: LIVRO «A Manipulação dos Media» de Noam Chomsky

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