Nostradamus e as Centúrias

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Nostradamus
Nostradamus

«Esvaziei o meu coração, alma e cabeça de toda a preocupação e atingi um estado de tranquilidade e paz que são pré-requisitos para predizer através do tripé de bronze.»

Nostradamus, epístola a Henrique II.

«Ele assomará, malvado, ruim, infame / Tiranizando a Mesopotâmia / Todos os aliados de um espírito adúltero / A terra medonha, negra de aspecto.»

– Profecia de Nostradamus, por vezes interpretada como o papel de Saddam Hussein na Guerra do Golfo.

«A morte súbita da primeira pessoa / Trará a mudança e elevará uma outra ao governo / Mais tarde ou mais cedo, lá chegará em tão verdes anos / Que será temido por terra e por mar.»

– Profecia de Nostradamus, por vezes interpretada como o assassinato de Kennedy.

Nostradamus é talvez o mais famoso profeta secular de todos os tempos, porém a sua vida está envolta em tantas lendas que é difícil separar a verdade da ficção nos relatos publicados. No entanto, o contorno básico da sua biografia é, no geral, consensual. Nasceu em Saint-Rémy-de-Provence, no sul da França, em 1503, e morreu em Salon, a cerca de 30 quilómetros, no ano de 1566. Nostradamus viajava muito por França e Itália, mas regressava regularmente à terra natal de Provence, onde acabou por se fixar. O facto de a sua reputação como profeta ter sido firmemente estabelecida em vida não é alvo de contestação. Nos seus últimos vinte anos, atraiu discípulos a Salon, recebeu a atenção da corte francesa, ganhou fortunas e respeito em idade avançada, dispondo até de fama a nível internacional.

De nome Michel de Nostredame, sendo Nostradamus a forma latina, o futuro vidente nasceu no seio de uma família de origem judaica convertida ao catolicismo pouco antes do seu nascimento. O avô era um comerciante de cereais, que também trabalhava como notário. Era aparentemente um homem erudito, tendo, segundo se consta, proporcionado uma educação sólida ao jovem Nostradamus, não só no que diz respeito ao estudo dos clássicos e da matemática, mas também da Astronomia.

Durante a juventude, Nostradamus começou por estudar em Avignon e transferiu-se, mais tarde, para Montpellier, cidade famosa pela faculdade de medicina, onde se licenciou como médico em 1529. Nas duas décadas seguintes, ganhou a vida precisamente como médico viajante, atingindo reputação pelos métodos humanos e pouco convencionais: recusava recorrer à sangria nos doentes, embora fosse, na época, o tratamento usado para muitos males, e preferia recorrer a ligaduras como forma de estancar o sangue de ferimentos ao invés da cauterização. A sua carreira profissional teve como pano de fundo a peste, que era, então, endémica no sul de França e lhe vitimou a primeira esposa – descrita como uma jovem «de alto estatuto, muito bonita e notável» – e os dois filhos de ambos ainda pequenos.

Um dom para a profecia

Nostradamus
Nostradamus

A acreditar nas histórias, Nostradamus construiu gradualmente uma reputação de possuidor de uma clarividência inexplicável no decurso das suas viagens. Certa ocasião, em Itália, ajoelhou-se perante um jovem monge na rua, dirigindo-se a ele como «Sua Santidade». O jovem era Felice Peretti, um guardador de porcos que se tornou Papa Sisto V em 1585, dezanove anos após a morte de Nostradamus. Outra história conta que, certa vez, Nostradamus foi convidado para um jantar e um anfitrião tentou refutar as suas capacidades ao pedir-lhe que predissesse o futuro de dois porcos, um branco e um preto. Nostradamus respondeu que comeriam o porco preto, ao passo que um lobo devoraria o branco. O anfitrião deu instruções secretas ao cozinheiro para preparar o porco branco para o jantar e, quando a refeição foi servida, confrontou o convidado com a prova comestível do seu erro. Porém, Nostradamus manteve a sua posição. O cozinheiro acabou por ser chamado e desconcertou o patrão ao confessar que servira, de facto, o porco preto: preparava-se para cozinhar o branco quando uma cria de lobo mantida presa na propriedade entrara na cozinha e o levara.

Nostradamus começou a construir uma sólida reputação como profeta somente depois de se instalar em Salon, em 1547. A partir de 1550, começou a publicar almanaques anuais com previsões para o ano seguinte e, em 1555, lançou a primeira edição de «Centúrias», obra pela qual é lembrado ainda hoje. O título não se referia a eras vindouras; foi escolhido porque Nostradamus decidiu reunir as profecias, escritas em versos rimados de quatro linhas, em grupos de cem. A primeira edição continha três centúrias e uma parte da quarta, perfazendo um total de 353 versos. Foi publicada uma segunda edição três anos depois, chegando ao número 642, e a terceira, impressa postumamente, totalizava 942 versos. Por motivos ainda por esclarecer, a sétima centúria não foi terminada.

Talvez porque a reputação de Nostradamus já começara a difundir-se, «Centúrias» fez sucesso imediato. Um ano depois da primeira publicação, Nostradamus foi chamado à corte à presença do rei Henrique II e da sua famosa mãe, Catarina de Médicis, que pediu ao profeta provençal que lhe preparasse os horóscopos dos quatro filhos. Numa viagem pelas províncias em 1564, ela chegou a visitá-lo em Salon.

A atenção real garantiu que a reputação de Nostradamus se espalhasse, ultrapassando até as fronteiras de França. Quando a rainha Isabel I subiu ao trono inglês, em 1559, apenas quatro anos após a primeira edição de «Centúrias», toda a Inglaterra, segundo consta, se deslumbrava com «profecias cegas, enigmáticas e diabólicas daquele contemplador dos céus, Nostradamus».

O poder da ambiguidade

Existem boas razões para as profecias de Nostradamus continuarem a exercer tamanho fascínio quase meio milénio após a sua morte. Poucos foram os videntes que deixaram uma obra tão sólida: 942 previsões isoladas, e para todas a autoria é razoavelmente certa. O poder das previsões não parece diminuir com a forma sedutoramente confusa em que são apresentadas. Somente algumas mencionam uma data específica, embora Nostradamus garantisse que poderia, se quisesse, datar todas elas. (Disse, porém, temer fazê-lo, com receio de ser acusado de bruxaria.) A falta de qualquer cronologia fixa torna as profecias propensas a infindáveis interpretações; na presença de um acontecimento importantíssimo em qualquer parte do mundo, há aproximadamente 900 quadras que podem ser associadas.

Nostradamus e as suas profecias
Nostradamus e as suas profecias

A imprecisão estende-se até à linguagem que Nostradamus escolheu utilizar. Os seus versos gnómicos são pequenas obras-primas de ambi-guidade. Até a gramática e a pontuação são raramente claras. A própria linguagem é alegórica e obscura, empregando ou inventando palavras derivadas do grego, latim, hebraico e outras línguas, para além do francês nativo de Nostradamus. O resultado são previsões que, em certos aspectos, se assemelham a pistas para palavras cruzadas extraordinariamente complicadas. Algumas pessoas passaram metade da vida a examinar as quadras em busca de anagramas e sentidos codificados, mas, até hoje, ninguém lhes atribuiu uma interpretação logicamente satisfatória.

Reis e tragédias

Apesar da ambivalência de grande parte da sua obra, muitos dos versos de Nostradamus são apetecivelmente evocativos de acontecimentos que ocorreram muito tempo depois: talvez nenhuma outra como a quadra que lhe consolidou a reputação. Nesta podemos ler: «O leão jovem dominará o velho / No campo de batalha num só combate / Ele perfurar-lhe-á os olhos através de uma gaiola dourada / Dois ferimentos e sofrerá uma morte penosa». Os contemporâneos do profeta não hesitaram em associar os versos à tragédia ocorrida em 1559, quatro anos após a publicação da quadra. O rei francês Henrique II participou num torneio para comemorar dois casamentos reais e a lança do seu oponente, bem mais jovem, trespassou acidentalmente o visor da armadura do rei (a «gaiola dourada» da profecia) atingindo-o nos olhos. O rei morreu em grande sofrimento uma semana depois.

Outras profecias de Nostradamus têm sido associadas, de modo menos convincente, a alguns dos grandes acontecimentos da história europeia futura. «A fortaleza junto ao Tamisa ruirá / Quando o rei lá for encarcerado / Perto da ponte será visto em camisa / Um condenado à morte, depois trancado no forte», por exemplo, é muitas vezes tida como a previsão da morte de Carlos I da Inglaterra, famosamente decapitado de camisa. Contudo, nenhuma fortaleza ruiu e a ponte de Westminster, a mais próxima do local da execução, somente foi construída muitos anos depois, reduzindo, ainda mais, a precisão da profecia.

Algumas previsões parecem ter uma maior associação. A quadra 38 da quinta centúria diz-nos que: «Aquele que subirá ao trono pela morte do grande monarca / Levará uma vida ilícita e sensual / Através do desmazelo, a todos fará concessões / Até que, por fim, será necessária a lei sálica.» Este verso refere-se na perfeição ao herdeiro do Rei Sol Luís XIV, Luís XV, cuja vida de prazeres e governo irresoluto abriram caminho para a Revolução Francesa. A lei sálica proibia mulheres de serem rainhas; a referência, neste caso, parece aludir à influência excessiva das amantes do rei, em particular de Madame de Pompadour.

A ascensão e queda do império britânico

A última profecia de «Centúrias» é uma das mais marcantes de todas, parecendo prever, com uma precisão impressionante, a criação e o fim do Império Britânico. Lê-se: «O grande império será [criado] pela Inglaterra / Omnipotente por mais de trezentos anos: / Grandes exércitos movimentar-se-ão por terra e mar, / Os Lusitanos não aprovarão.» Escrito numa altura em que a Inglaterra não possuía colónias e os navegadores portugueses dominavam a exploração do ultramar, este é um exemplo notável de previsão. O espaço de tempo também se adequa. As primeiras colónias britânicas bem sucedidas foram criadas no início do Século XVII e a maior parte ganhou independência em meados do Século XX.

Nostradamus e Napoleão

Na primeira das dez centúrias, Nostradamus parece igualmente prever o governo de Napoleão. É possível ler num verso: «Um imperador nascerá perto da Itália / Que muito custará ao império. / Ao verem quem o apoia, as pessoas dirão / Que acabou por ser mais carniceiro do que príncipe.» Napoleão nasceu na ilha da Córsega, a menos de 100 quilómetros da costa italiana. A descrição desencantada da futura carreira do imperador seria compreensível o suficiente para quem avaliasse as simpatias revolucionárias de Napoleão sob uma perspectiva do Século XVI.

Nostradamus
Nostradamus

O final da carreira de Napoleão é, talvez, sugerido numa outra quadra que diz: «O grande império logo se transformará / Num lugar pequeno que depressa começará a crescer; / Um lugar minúsculo num diminuto condado / No meio do qual ele pousará o seu ceptro.» Aqui há uma referência óbvia ao exílio de Napoleão, primeiro na ilha de Elba e, de seguida, em Santa Helena, a sul no Oceano Atlântico. Elba adequa-se ao segundo verso, pois Napoleão fugiu de lá para retomar o controlo de França. Porém, Santa Helena, sob posse inglesa, seria mais apropriada ao terceiro verso: Nostradamus utilizou, aqui, a palavra comté, que em francês significa condado inglês.

O atentado ao World Trade Center

Em relação a acontecimentos mais recentes, Nostradamus é mais evocativo e ambíguo do que nunca. Surgiu grande interesse pela sua obra na sequência do atentado terrorista ao World Trade Center, em Nova Iorque, a 11 de Setembro de 2001. Versões incompreensíveis das profecias de Nostradamus apareceram na Internet horas após os acontecimentos trágicos. Grande parte recorreu a duas profecias diferentes, por vezes dissimuladamente combinadas para aumentar a sua relevância.

Uma delas é datada, mas com 26 meses de erro: «No ano de 1999 e sete meses / Do céu virá um poderoso rei do terror / Para ressuscitar o grande rei de Angolmois / Antes e depois, Marte reinará serenamente.» Aqui, o primeiro, segundo e último versos parecem adequados, se considerarmos o «rei do terror» como descrevendo Osama bin Laden e Marte desempenhando o seu papel clássico de deus da guerra.

Contudo, as dificuldades de interpretação do terceiro verso são imensas. A referência óbvia é à cidade de Angoulême, em França. Neste caso, a pessoa em questão seria, provavelmente, Francisco I, que governou o país durante grande parte da vida de Nostradamus. O rei fora duque de Angoulême antes da ascensão ao trono e pareceria adequar-se bem às palavras, mas não tem qualquer ligação concebível aos ataques de 11 de Setembro. Contudo, alguns interpretam a palavra em destaque como um «quase-anagrama» para «mongois», sugerindo uma tentativa de reviver um império oriental reminiscente do império de Gêngis Khan (uma interpretação que seria mais adequada, se não fosse tão forçada).

Na outra profecia é revelado: «A 45 graus, o céu arderá em chamas / O fogo aproxima-se da grande cidade nova / Num instante, elevar-se-ão enormes chamas disseminadas / Quando alguém quererá testar os normandos.» Nova Iorque, a «grande cidade nova», está situada, na verdade, a uma latitude entre 40 e 41 graus a norte. Neste caso, a relevância do último verso depende da consideração de «normandos», não como habitantes da Normandia, mas sim no sentido menos evidente de «homens do norte». Os dois versos do meio são típicos de Nostradamus: as palavras são inquietadoramente sugestivas, mas é quase impossível dar-lhes um único sentido claro.

Os métodos de Nostradamus

As primeiras duas estâncias da primeira centúria são diferentes de todas as demais. Nelas, Nostradamus não faz previsões, mas, ao invés, retrata uma imagem dissimulada e alusiva dos seus próprios métodos de trabalho. Na primeira, é possível ler-se: «Etant assis de nuit secret étude / Seul reposé sur la selle aérienne; / Plambe exigué sortant de solitude/ Fait prospérer qui n’est à croire vain.» («Sentado à noite, entrego-me a estudos secretos / Descansando sozinho no tripé de bronze / Uma chama tímida assoma da solidão / Faz prosperar o que não se acredita em vão.») A segunda prossegue: «La verge en main mise au njilieu des branches / De l’onde il mouille & les limbes & les pieds / Un peur & voix frémissant par les manches: / Splendeur divine. Le divin près s’assied.» («A vara na mão no meio dos ramos / Com água ele borrifa a bainha da roupa e os pés / Medo e uma voz; tremendo na sua túnica: / Divino esplendor. O deus senta-se por perto.») Analisadas em conjunto, ambas as estâncias sugerem a invocação de um ser divino. Os eruditos compararam o método com o utilizado pelo neoplatónico lâmblico, do Século IV da Era Cristã, cuja obra «De Mysteriis Egyptorum» fora reeditada em Lyon, em 1547.

Uma profecia não realizada sobre Nova Iorque?

Considera-se que outros versos de Nostradamus são, muitas vezes, referentes a Nova Iorque. Pode ler-se: «O jardim do mundo perto da nova cidade / No caminho das montanhas ocas / Será tomado e submerso na água / Obrigado a beber águas sulfurosas envenenadas». Como acontece sempre com Nostradamus, o sentido é ambíguo, mas as palavras parecem sugerir um qualquer desastre ambiental que ainda não ocorreu. Intérpretes mais engenhosos garantem, inclusivamente, que «montanhas ocas» seria a forma como um vidente do Século XVI descreveria os arranha-céus da cidade.

Fonte: Livro «As Profecias que Abalaram o Mundo» de Tony Allan

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