O mecanismo de Antikitera: um computador ancestral?

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A chamada máquina de Antikitera é um artefacto que se acredita tratar de um antigo mecanismo para auxílio à navegação
A chamada máquina de Antikitera é um artefacto que se acredita tratar de um antigo mecanismo para auxílio à navegação

Na Páscoa de 1900, Elias Stadiatos e um grupo de pescadores gregos de esponjas estavam a pescar ao largo da costa da pequena ilha rochosa de Antikitera, entre a Grécia continental e Creta. Ao emergir após um dos seus mergulhos, Stadiatos balbuciou algo acerca de um «monte de mulheres nuas mortas» no leito marinho. Após mais alguns mergulhos, os pescadores descobriram os destroços de um navio de carga romano com cinquenta metros de comprimento, afundado a cerca de quarenta e dois metros de profundidade. Entre os objectos do navio que estavam enterrados na areia encontravam-se estátuas de mármore e bronze do Século I antes de Cristo (as mulheres nuas mortas), moedas, jóias de ouro, cerâmica e o que parecia uma amálgama de bronze corroído, que se partiu em pedaços pouco depois de vir à superfície.

Os achados deste naufrágio foram posteriormente examinados, registados e enviados para o Museu Nacional de Atenas, para serem expostos ou armazenados. Em 17 de Maio de 1902, o arqueólogo grego Spyridon Stais estava a examinar a amálgama estranha vinda do naufrágio, coberta por algas e sedimentos acumulados ao longo de dois mil anos no fundo do mar, quando reparou que uma das peças tinha uma roda dentada e o que lhe pareceu uma inscrição em grego. Tinha existido uma caixa de madeira associada ao objecto, mas, bem como as pranchas de madeira do próprio navio, tinha acabado por secar e desfazer-se. Um exame mais minucioso e uma limpeza meticulosa dos pedaços de bronze corroídos revelaram mais peças no misterioso objecto e em breve foi revelado um elaborado mecanismo de engrenagens de bronze, que media cerca de trinta e três por dezassete por nove centímetros. Stais acreditava que o mecanismo era um relógio astronómico antigo, mas a opinião dominante na época era que o estranho objecto seria demasiado intrincado para pertencer a um naufrágio que fora datado do início do Século I antes de Cristo, pela cerâmica encontrada a bordo. Muitos investigadores pensaram que o mecanismo era o que restava de um astrolábio medieval, um aparelho astronómico para observar os movimentos planetários utilizado para a navegação (o exemplar mais antigo de que há conhecimento é do Século IX d. C., no Iraque). Mas não se chegou a um acordo geral quanto à data e à utilização do artefacto e pouco depois o enigma foi esquecido.

Mecanismo de Antikitera
Mecanismo de Antikitera

Em 1951, Derek De Solla Price, um físico inglês que na época era professor de História da Ciência na Universidade de Yale, ficou fascinado com a complexidade do mecanismo retirado do naufrágio e iniciou o que viria a ser um período de oito anos de estudo minucioso utilizando fotografia por raios X. Em Junho de 1959, as conclusões das suas análises foram publicadas na Scientific American com o título «Um Computador Grego da Antiguidade». Os raios X feitos ao mecanismo revelaram pelo menos vinte engrenagens individuais, incluindo uma engrenagem diferencial, que se pensara até então que apenas havia sido inventada no Século XVI. A engrenagem diferencial permitia a rotação de dois eixos a velocidades diferentes, como a que é utilizada no eixo traseiro dos automóveis. Price deduziu pelas suas investigações que o Mecanismo de Antikitera era o que restava de um «grande relógio astronómico» que tinha laços estreitos «com o moderno computador analógico». Estas conclusões foram recebidas de forma pouco favorável por alguns académicos. Um certo professor recusou-se a acreditar na possibilidade de um tal aparelho e colocou a hipótese de o objecto ter certamente caído ao mar na época medieval e de alguma forma chegado até ao navio naufragado.

Em 1974, Price publicou os resultados de uma investigação mais completa, baseada em posteriores raios X e radiografias gama feitas pelo radiologista grego Christos Karakalos, como uma monografia chamada Engrenagens dos Gregos. O Mecanismo de Antikitera, um calendário-computador de cerca de 80 a. C. O estudo mais aprofundado de Price demonstrou que o antigo instrumento científico continha na verdade pelo menos trinta engrenagens, apesar de a maioria destas estarem incompletas. Contudo, permaneceu intacta uma parte do mecanismo suficiente para Price deduzir que, quando a manivela era rodada, o mecanismo mostraria o movimento da Lua, do Sol, provavelmente dos planetas e a subida das estrelas principais. O aparelho era com efeito um complicado computador astronómico, um modelo funcional do sistema solar, que outrora estivera no interior de uma caixa de madeira com portas que fechavam para proteger o mecanismo no seu interior. A partir das inscrições e da posição das engrenagens, Price concluiu que o mecanismo tinha uma ligação estreita com Gémino de Rodes, um astrónomo e matemático grego que viveu aproximadamente entre 110 a. C. e 40 a. C. Price acreditava que o Mecanismo de Antikitera fora concebido e construído em Rodes, uma ilha grega ao largo da costa da Turquia, provavelmente pelo próprio Gémino, por volta de 87 a. C. De facto, o barco naufragado continha na sua carga vasilhame da ilha de Rodes e pensava-se que estava a fazer uma viagem de Rodes para Roma quando se afundou. A data do naufrágio foi calculada de forma bastante precisa, algures por volta de 80 a. C. Assim, presumindo que o objecto já tivesse alguns anos quando foi perdido, a data de 87 a. C. é agora geralmente aceite para a construção do Mecanismo de Antikitera.

É então concebível – em termos cronológicos – que o aparelho pudesse ter sido feito por Gémino na ilha de Rodes, especialmente devido ao facto de sabermos que Rodes foi nessa época um centro de investigação astronómica e tecnológica. O grego Filo de Bizâncio, que escreveu sobre mecânica, descreveu o polybolos, que vira em Rodes. Esta fantástica catapulta tinha a capacidade de disparar repetidamente, sem precisar de ser recarregada, e possuía duas engrenagens ligadas por uma correia de distribuição que era impulsionada por um molinete (um aparelho que consiste num cilindro horizontal rodado por uma manivela). Rodes foi também o local onde o filósofo estóico, astrónomo e geógrafo grego Poseidónio (135 a. C. –  51 a. C.) estabeleceu a natureza das marés. Além disso, Poseidónio fez uma medição bastante precisa (para a época) do tamanho do Sol e também calculou o tamanho e distância da Lua. O astrónomo Hiparco de Rodes (190 a. C. –  120 a. C.) é tido como o inventor da trigonometria e foi o primeiro a catalogar cientificamente as posições das estrelas. Mais ainda: ele foi um dos primeiros europeus a utilizarem observações e informações da astronomia babilónica para as suas próprias investigações sobre o sistema solar. Terão alguns elementos do conhecimento e das ideias de Hiparco sido utilizados na construção do Mecanismo de Antikitera?

Mecanismo de Antikitera
Fragmentos do Mecanismo de Antikitera

O aparelho é o mais antigo item sobrevivente de tecnologia mecânica complexa. A utilização de engrenagens há mais de dois mil anos não é nada menos do que surpreendente e a qualidade da sua manufactura é tão desenvolvida como em qualquer relógio do Século XVIII. Em anos recentes foram montadas algumas réplicas funcionais deste computador, uma delas sendo uma reconstrução parcial feita pelo cientista informático australiano Allan George Bromley (19472002), da Universidade de Sydney, juntamente com o relojoeiro Frank Percival. Bromley também efectuou imagens mais precisas do objecto em raios X, que foram a base de um modelo em 3D do mecanismo, produzido pelo seu aluno Bernard Gardner. Alguns anos mais tarde, John Gleave, um fabricante inglês de modelos mecânicos do sistema solar, construiu um modelo completamente funcional em que o mostrador frontal mostrava o trajecto anual do Sol e da Lua através do Zodíaco sobre uma representação do calendário egípcio.

Os mais recentes estudos e reconstrução do objecto foram feitos em 2002 por Michael Wright, o curador de engenharia mecânica no Museu da Ciência, em Londres, juntamente com Aliam Bromley. Apesar de algumas das conclusões do novo estudo de Wright divergirem com alguns aspectos do trabalho de Derek De Solla Price, Wright deixou implícita a ideia de que o mecanismo é ainda mais engenhoso do que Price pensava. Para chegar às suas teorias, Wright utilizou imagens do objecto feitas através de um método conhecido como tomografia linear. Esta técnica pode mostrar pormenores de um único plano ou área de um objecto com uma focagem muito precisa. Wright foi assim capaz de estudar as engrenagens com grande minúcia e descobriu que o aparelho tinha sido capaz de reproduzir fielmente não só os movimentos do Sol e da Lua como também de todos os planetas conhecidos pelos Gregos da antiguidade: Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno. Assim, é possível que, pela utilização de apontadores de bronze sobre um mostrador circular, que tem o desenho do Zodíaco ao longo da extremidade, o mecanismo tenha sido capaz de calcular (com grande precisão) as posições dos planetas conhecidos em qualquer data específica. Em Setembro de 2002, a reconstrução completa de Wright foi apresentada numa exposição de Tecnologia da Antiguidade no Technopolis, um museu em Atenas.

Apesar dos anos de estudo e das várias teorias e reconstruções, ninguém sabe ao certo como era utilizado o aparelho de Antikitera. Foi sugerido que tinha uma função astrológica e era usado para fazer horóscopos computadorizados, ou que funcionava como um planetário com fins pedagógicos, ou até que era um brinquedo sofisticado para os ricos. Derek De Solla Price acreditava que o mecanismo era a prova de uma antiga tradição grega na produção de Tecnologia mecânica altamente intrincada. A sua opinião era de que estas capacidades e conhecimentos não foram perdidos quando a Grécia antiga entrou em declínio, mas foram passados para o mundo árabe, que possuiu mecanismos semelhantes em datas posteriores, que se tornaram nos alicerces das técnicas europeias de construção de relógios na Idade Média. Price achava que o aparelho estaria originalmente montado e exposto em permanência, talvez numa estátua. Talvez estivesse no interior de uma estrutura semelhante à intrigante Torre dos Ventos, uma torre octogonal de mármore, que funcionava como um relógio de água na ágora romana de Atenas.

Mecanismo de Antikitera
Antikitera, um computador ancestral

A descoberta e a reconstrução do Mecanismo de Antikitera também levaram os estudiosos a olhar de uma forma diferente para as descrições deste tipo de aparelho em textos antigos. Anteriormente acreditava-se que as referências a modelos astronómicos mecânicos espalhados pelas obras de vários escritores antigos não deveriam ser interpretadas literalmente. Os Gregos, pensava-se, tinham a teoria mas não os conhecimentos de mecânica. Contudo, depois da descoberta e dos testes feitos ao Mecanismo de Antikitera, esta forma de pensar terá de ser alterada. O orador e escritor romano Cícero, que escreveu no Século I a. C. e que viveu na época do naufrágio de Antikitera, mencionou uma invenção do seu professor e amigo Poseidónio, que já foi referido anteriormente. Cícero escreveu que Poseidónio havia construído recentemente um aparelho «que a cada volta reproduz os movimentos do Sol, da Lua e dos cinco planetas que aparecem no céu todos os dias e noites». Cícero também mencionou que o astrónomo, engenheiro e matemático siciliano Arquimedes (287 a. C. –  212 a. C.) «supostamente construiu um pequeno planetário». Em associação a este aparelho, o orador também sublinhou que o cônsul romano Marcelo tinha grande orgulho em possuir um planetário concebido e construído pelo próprio Arquimedes, que tinha obtido durante o saque da cidade de Siracusa, na costa oriental da Sicília. Com efeito, foi durante este cerco à cidade, em 212 a. C., que Arquimedes foi morto por soldados romanos. Alguns investigadores chegaram até a propor que o mecanismo resgatado do naufrágio de Antikitera era um aparelho astronómico desenhado e construído por Arquimedes. Sem dúvida que este é um dos mais espantosos e intrigantes artefactos do mundo antigo. O Mecanismo de Antikitera original está actualmente em exposição na colecção do Museu Arqueológico Nacional em Atenas, acompanhado por uma reconstrução. Também existe uma réplica do aparelho em exposição no Museu Americano do Computador em Bozeman, no Montana. A descoberta do Mecanismo de Antikitera desafiou a nossa percepção das capacidades científicas e tecnológicas do mundo antigo. As reconstruções provaram que o aparelho funciona como um computador astronómico e demonstra que os cientistas do mundo grego e romano, no primeiro século antes da nossa era, eram perfeitamente capazes de conceber e construir mecanismos complexos que não viriam a ser igualados durante mais de mil anos. Derek De Solla Price comentou que uma civilização que possuía a Tecnologia e a sabedoria para conceber tal mecanismo «poderia ter construído quase tudo o que quisesse». Infelizmente, a maior parte do que criaram não sobreviveu. O facto de o Mecanismo de Antikitera não ser mencionado especificamente em qualquer dos textos antigos que chegaram até nós é a prova do quanto se perdeu deste importante e fascinante período da História europeia. De facto, se não fosse pela curiosidade dos pescadores de esponjas gregos há mais de cem anos, nunca teríamos visto esta prova eloquente dos avançados feitos científicos dos Gregos de há dois mil anos.

Fonte: Livro «História Oculta» de Brian Haughton

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