Num dia límpido em Setembro de 1991, bem no cimo dos inóspitos Alpes de Otztal, perto da fronteira entre a Itália e a Áustria, dois caminhantes alemães (Helmut e Erika Simon) fizeram um achado que veio a ser considerado um dos mais incríveis do Século XX. Deitado no gelo estava um corpo congelado, com a cara virada para baixo. Pensando que tinham encontrado os restos mortais de um alpinista que morrera numa queda, o casal informou as autoridades, que trataram de visitar o local no dia seguinte. Devido ao degelo do glaciar, não era pouco usual encontrar os corpos de alpinistas que haviam morrido em acidentes nessa zona. Três semanas antes tinham sido descobertos os restos mumificados de um homem e de uma mulher que partiram para uma caminhada em 1934 e nunca mais foram vistos. No dia seguinte à descoberta de Helmut e Erika, a polícia austríaca chegou ao local e começou, de uma forma algo desastrada, a extrair o corpo da sua sepultura gelada. Durante a extracção do gelo alguma roupa do cadáver foi rasgada, uma anca foi furada por uma picareta e o braço esquerdo foi quebrado ao tentarem forçar o corpo para o interior de um caixão.
Na Universidade de Innsbruck, para onde o corpo foi transportado, fez-se um cuidadoso exame que revelou que não se tratava de um alpinista moderno. Os testes de radiocarbono mostraram que o corpo era de um homem que tinha morrido por volta de 3200 a. C. (no final do período Neolítico) e era assim o corpo humano preservado mais antigo alguma vez descoberto. Exames posteriores feitos a Ötzi, como ficou conhecido (por ter sido encontrado nos Alpes de Ötztal), determinaram que ele tinha cerca de 1,6 metros de altura e tinha entre quarenta e cinquenta anos quando morreu, apesar de a causa de morte ter permanecido um mistério. A análise do conteúdo do seu estômago revelou os restos de duas refeições: a última a ser ingerida cerca de oito horas antes da morte consistia num pedaço de pão de trigo não fermentado, algumas raízes e carne de veado. A análise do pólen extremamente bem preservado nos seus intestinos revelou que Ötzi morreu entre o final da Primavera e o início do Verão.
Ötzi tinha um total de cinquenta e sete tatuagens no corpo, compostas por pequenas riscas paralelas e cruzes feitas com pigmentos de carvão. Como as tatuagens estavam concentradas perto da coluna vertebral, na região lombar, nos joelhos e nos tornozelos, acredita-se que podem não ter sido decorativas. Exames feitos ao esqueleto do Homem do Gelo revelaram que ele sofrera de artrite e o posicionamento das tatuagens em pontos utilizados na acupunctura levou muitos investigadores a pensar que as tatuagens de Ötzi tinham uma finalidade terapêutica.
O que restou da roupa do Homem do Gelo estava bastante bem preservado pelo gelo. Quando morreu, Ötzi usava sapatos feitos com solas de pele de urso e um topo de couro de veado e casca de árvore, com erva no interior para aquecer. Também usava um manto de erva entrelaçada, que provavelmente servia de cobertor, um colete de couro e um chapéu de pele. Ao longo do corpo foram também descobertos vários artigos que Ötzi transportara consigo na última viagem. Estes itens incluíam um machado de cobre com uma pega de teixo, um arco de teixo por acabar, uma aljava de pele de veado com duas flechas com pontas de pedra e doze hastes por acabar, uma faca de pedra e a respectiva bainha, uma bolsa de usar à cintura em pele de carneiro, um saco de medicamentos que continha fungos medicinais, uma pedra de isqueiro e pirite para criar faíscas, uma mochila de pele de bode e uma borla com uma conta de pedra. Todos estes objectos foram inestimáveis para se poder imaginar a vida e a morte do Homem do Gelo.
Mas quem era este misterioso viajante e o que o levou a aventurar-se a dois mil e oitocentos metros de altitude nos desolados Alpes de Ötztal? A análise do seu ADN demonstrou que Ötzi era parente dos europeus que viviam à volta dos Alpes. A análise aos isótopos nos dentes e nos ossos feita pelo geoquímico Wolfgang Müller, da Universidade Nacional da Austrália, juntamente com colegas dos Estados Unidos e da Suíça, restringiu o local do nascimento de Ötzi a uma área perto da aldeia de Feldthurns, no Tirol italiano, a norte da actual cidade de Bolzano, cerca de quarenta e oito quilómetros a sudeste do local onde morreu. As altas concentrações de cobre e arsénico encontradas no cabelo de Ötzi demonstram que ele fundia cobre, provavelmente para fazer as suas próprias armas e ferramentas.
A primeira teoria aceite para o que levou o Homem do Gelo a viajar sozinho nos Alpes de Ötztal (e como teria morrido) era de que ele era um pastor que tomava conta do seu rebanho nas altas pastagens. A hipótese colocada é de que foi apanhado por uma tempestade inesperada e abrigou-se na vala rasa onde foi encontrado. Uma variação desta teoria, proposta pelo Dr. Konrad Spindler, chefe da investigação científica sobre o Homem do Gelo, baseou-se em raios X que foram tirados ao corpo, em Innsbruck. Estes raios X parecem mostrar costelas partidas no lado direito, que Spindler acreditava terem resultado de algum tipo de luta em que Ötzi se envolvera antes de regressar ao seu povoamento com o rebanho. Apesar de Ötzi ter escapado ao combate com vida, acabou por morrer dos ferimentos no local onde os caminhantes o encontraram cinco mil anos mais tarde. Mas novos exames feitos ao corpo em 2001 por cientistas num laboratório em Bolanzo revelaram que as costelas tinham sido quebradas depois da morte, devido ao peso da neve e do gelo contra o tórax. Outra teoria associava o Homem do Gelo aos vários corpos dos pântanos, como o Homem de Tollund e o Homem de Lindow, recuperados nos lamaçais de turfa do Norte da Europa. Muitos dos exemplares destes corpos vindos do primeiro milénio antes de Cristo mostravam que as vítimas tinham comido uma refeição semelhante à do Homem do Gelo antes de morrerem e parecem ter sido sacrificadas num ritual antes de serem atiradas ao pântano. Poderia o Homem do Gelo ter sido sacrificado num ritual? Os achados dramáticos feitos nos exames de Bolanzo sugerem outra realidade.
Uma TAC feita ao corpo mostrou um objecto estranho alojado perto do ombro, com a forma de uma flecha. Exames posteriores confirmaram que Ötzi tinha uma ponta de flecha alojada no ombro. O Homem do Gelo fora assassinado. Um pequeno rasgão descoberto no manto de Ötzi parece indicar o local de entrada da flecha. Em Junho de 2002, a mesma equipa de cientistas descobriu uma ferida profunda na mão do Homem do Gelo e vários outros ferimentos nos pulsos e no peito, aparentemente feridas defensivas, todas infligidas apenas algumas horas antes de morrer. Outra descoberta fascinante foi feita através de análises ao ADN. A roupa e as armas de Ötzi tinham vestígios de sangue de quatro pessoas diferentes: uma sequência na lâmina da sua faca, duas sequências diferentes na mesma flecha e uma quarta no colete de couro. À luz destas descobertas recentes foram avançadas várias novas teorias para explicar o que aconteceu exactamente ao Homem do Gelo.
O facto de no corpo se encontrar apenas a ponta de uma flecha indica que Õtzi ou um companheiro devem ter retirado a haste. A TAC revelou que a flecha fatal foi disparada de baixo para cima e rasgou nervos e vasos sanguíneos importantes antes de se alojar na omoplata esquerda, paralisando o seu braço esquerdo. O sangue no colete pode indicar que um companheiro de Ötzi também estaria ferido e teve de ser carregado ao ombro. Um cenário que foi sugerido é que Ötzi e um ou dois companheiros constituíam um grupo de caçadores que entraram em combate com um grupo rival, talvez por questões territoriais. O sangue nas armas de Ötzi ilustra graficamente que ele deve ter matado dois membros do grupo inimigo, retirando a sua preciosa flecha de um corpo para a utilizar de novo, antes de sofrer o seu próprio ferimento mortal.
Contudo, nem toda a gente concorda com esta versão. De acordo com Walter Leitner, do Instituto de História da Antiguidade da Universidade de Innsbruck, Ötzi pode ter sido um xamã. Leitner acredita que, como o cobre era um material escasso no final do período Neolítico, só alguém de grande importância na comunidade possuiria um machado de cobre. Os xamãs também são conhecidos por comunicarem com o mundo dos espíritos em locais remotos, tais como as altas montanhas. Leitner pensa que Ötzi foi provavelmente assassinado, não numa disputa territorial mas antes por um grupo rival da mesma comunidade que desejava ascender ao poder. Se matassem o xamã para afirmarem que ele morrera num acidente, esse objectivo poderia ser atingido. Uma outra hipótese alternativa é a de uma morte num sacrifício ritual, em que a vítima era perseguida e atingida nas costas por uma flecha. Estas mortes rituais foram registadas por cronistas romanos como uma prática dos Celtas, da qual existem provas na forma de um esqueleto que foi encontrado na vala exterior de Stonehenge, onde este tipo de sacrifícios eram praticados (ver capítulo sobre Stonehenge).
Recentemente foi feita uma afirmação surpreendente por Lorenzo Dal Ri, director do gabinete de Arqueologia da província de Bolzano. Dal Ri acredita que a morte do Homem do Gelo pode ter sido registada numa esteia de pedra antiga. A pedra decorada, mais ou menos da mesma idade que o Homem do Gelo, fora utilizada na construção do altar de uma igreja em Laces, uma vila perto da região onde Ötzi foi descoberto. Uma das muitas gravações da esteia mostra um arqueiro pronto a disparar uma flecha sobre as costas de um homem desarmado que parece estar a fugir. Apesar de não existirem provas que liguem a pedra ao homicídio do Homem do Gelo, a semelhança entre a imagem gravada na pedra e a morte de Ötzi é estranha.
Em Fevereiro de 2006, uma nova luz foi lançada sobre o mistério do Homem do Gelo quando o Dr. Franco Rollo (da Universidade de Camerino, em Itália) e alguns colegas examinaram ADN mitocondrial (o ADN que é herdado apenas da mãe) retirado de células do intestino do Homem do Gelo. A conclusão da equipa foi que Ötzi pode ter sido infértil. O Dr. Rollo colocou a hipótese de que as implicações sociais da incapacidade de procriar podem ter sido um factor nas circunstâncias que o levaram à morte.
Desde a sua descoberta em 1991, Ötzi atingiu uma tal popularidade que até possui a sua própria versão da «maldição de Tutankamon». Temos de admitir que parece existir uma alta taxa de mortalidade entre os investigadores que estão ligados à descoberta do Homem do Gelo. Aparentemente, a sua última vítima foi Tom Loy, o arqueólogo molecular de sessenta e três anos que descobriu sangue humano na roupa e nas armas de Ötzi, morreu em circunstâncias misteriosas na Austrália, em Outubro de 2005. Dois outros nomes bem conhecidos na história do Homem do Gelo e que faleceram recentemente são do Dr. Konrad Spindler, chefe da equipa de investigação do Homem do Gelo na Universidade de Innsbruck, que morreu em Abril de 2005, aparentemente devido a complicações derivadas de uma esclerose múltipla; e o descobridor original de Ötzi, Helmut Simon, de sessenta e sete anos, que morreu ao sofrer uma queda de noventa metros nos Alpes autríacos, em Outubro de 2004. Por coincidência, Dieter Warnecke, um dos homens que encontraram o corpo gelado de Helmut Simon, morreu de ataque cardíaco pouco depois do funeral de Simon. No entanto, os cépticos argumentam que a morte de cinco ou seis pessoas ligadas ao Homem do Gelo num período de catorze anos não é um número particularmente anormal e também apontam que os alpinistas têm uma taxa de mortalidade naturalmente alta devido aos perigos inerentes à sua actividade.
Ainda existem muitas questões por responder sobre a vida e a morte de Ötzi, agora em exposição no Museu de Arqueologia do Sul do Tirol, em Bolzano, Itália. Esperamos que as respostas a algumas destas questões apareçam quando os cientistas fizerem uma autópsia para retirar a ponta de flecha do ombro do Homem do Gelo. Parece que teremos de esperar até então para obtermos mais informações sobre como e porquê Ötzi encontrou a morte nos gélidos Alpes há mais de cinco mil anos.