Quando o golpe militar dos operacionais do Movimento das Forças Armadas (MFA) começa a dar sinais de ter êxito, primeiro com a fraca resistência, senão mesmo ausência dela, por parte do Governo e dos seus apoiantes e, depois, com a rendição de Américo Tomás e de Marcello Caetano, ninguém, nem mesmo os próprios «capitães de Abril», tinham qualquer noção do rumo que o acto que acabavam de desencadear iria ter. O Partido Comunista Português (PCP), embora a força mais bem implantada no seio dos sindicatos e das forças de oposição, não estava, contrariamente ao que por vezes é feito constar, no segredo dos «capitães». As forças que apoiavam o regime debandariam em pânico, sem o menor esboço de solidariedade com Marcello Caetano. A este propósito, vale a pena constatar tal falta de coragem através do «humor» de Freitas do Amaral, cujo pai era então deputado da Acção Nacional Popular (ANP). Este, apesar de saber que Marcello Caetano já se tinha «refugiado» no quartel do Carmo, resolveu, no próprio dia 25 de Abril ir marcar o ponto à Assembleia Nacional, num gesto que muito abona a seu favor e não foi em vão, uma vez que serviu para constatar que a esmagadora maioria dos ditos «representantes» do povo tinha «desaparecido». Como afrnna Diogo Freitas do Amaral, essa “sessão não se realizou por falta de quórum! Não foram muitos, naquele dia, os bravos de S. Bento“. [1]
Os liberais, simbolicamente representados pelos deputados contestatários, com destaque para Francisco Sá Carneiro, que talvez mais do que ninguém criaram as condições psicológicas propícias à aceitação generalizada da mudança brusca do regime, não estavam minimamente organizados para ocuparem, no aparelho de estado, as oportunidades que lhes viriam a ser proporcionadas. Tivesse aliás Francisco Sá Carneiro legal ou ilegalmente, conseguido criar em Portugal um partido social-democrata, filosofia que ele, de facto, perfilhava, e não haveria dúvidas de qual o único movimento que se poderia então considerar o mais provável «herdeiro» do 25 de Abril. Os militares, como afirma o próprio Otelo, tinham então como meta «a restauração do prestígio das forças armadas» [2] e não são aparentes quaisquer indícios de que, por detrás do Movimento das Forças Armadas, existisse um plano politicamente concertado e ideologicamente fundamentado. Spínola era um anti-comunista convicto e, no fundo, considerava-se um patriota com a missão de reestabelecer em Portugal uma democracia mais ou menos liberal e manter a possível unidade do «império colonial» em moldes que os Movimentos de Libertação pudessem aceitar. Os socialistas, à semelhança do PCP, seriam completamente apanhados de surpresa, estando mesmo Mário Soares em viagem pela República Federal Alemã, na penosa e, até então, pouco frutífera missão de angarição de fundos junto do Partido Social Democrata da Alemanha (SPD) e da fundação Friedrich Ebert. Ambos, Partido Socialista (PS) e PCP estavam, aliás, perfeitamente preparados, quando ainda em Abril chegaram a Portugal os seus líderes, para aceitar uma democratização progressiva do regime português, tipo «De Gaulle», sob a orientação de um general Spínola.
Quando as primeiras notícias do golpe foram divulgadas na Suécia, pelas 7 da manhã, encontrava-me no meu carro a meio caminho entre Malmoe e Lund, bela cidade medieval onde preparava a minha licenciatura em ciências políticas. Ouvi, estupefacto, que a revolução estava na rua e que os soldados revoltosos estariam a encontrar pouca resistência. Escusado será dizer que nesse dia fiz gazeta, regressando a casa onde fiquei pregado ao rádio e tentanto, por todos os meios, conhecer mais pormenores por via telefónica. O que não foi muito fácil já que, com toda a gente na rua, os de Portugal não respondiam e dos outros, do Ramos da Costa em Paris, do Tito em Roma ou do Fernando Loureiro que entretanto tinha passado a viver na Bélgica, a única notícia que chegava é que «andavam todos à procura do Mário», que estava na Alemanha. Este, alertado por um dirigente do SPD de que «está a haver uma tentativa de golpe de estado em Portugal» [3], regressa a Portugal via Paris onde, com Ramos da Costa e Tito de Morais, apanha o comboio que chegaria a Santa Apolónia no dia 28 de Abril.

Mas é evidente que para todos, mesmo para o Partido Comunista, não obstante as confidências de um anónimo ex-dirigente do PCP ao prof. Freitas do Amaral de que em 25 de Abril de 1974 o PCP tinha “conseguido infiltrar amplamente as forças armadas. Mais de metade dos capitães, tenentes, sargentos pensavam como (o PCP) e seguiam as (suas) instruções” [4], o 25 de Abril apanhou todas as forças políticas, a PIDE, o corpo diplomático e todos os serviços de informações estrangeiros de surpresa. E para além da reveladora surpresa generalizada, também não parece credível que o PCP fosse o motor do golpe e que o movimento dos «capitães de Abril» tivesse então sido infiltrado por aquele partido. Para além das reticências iniciais quanto à natureza do golpe, demonstradas pelo Dr. Álvaro Cunhal, este, após encontro com o general Spínola “prontificou-se a colaborar com a Junta na estabilização do regime”. [5]
Uma simples análise dos factos demonstraria que a impreparação dos liberais, o colaboracionismo inicial dos socialistas, a dispersão e pavor da direita e a pavorosa mediocridade política do general António de Spínola terão sido os factores que conduziram à supremacia dos comunistas, a qual em matéria de organização Política, rapidamente se tomou evidente. Esta supremacia organizativa induziria inúmeros militares «politicamente analfabetos», de repente convencidos dos seus gloriosos actos revolucionários e das promessas de um futuro pleno de fortuna e glória, ao seu alinhamento com o PCP. Uma arte de sedução Política em que, aliás, o PCP se revelaria mestre. Perante a impreparação das forças democráticas no seu conjunto e até, como aconteceu com o PS, com as manifestações de subalternidade destas, sem dúvida que muitas pessoas viriam também a ficar deslumbradas com os enormes meios materiais que o Partido Comunista Português exibia. Desde o início da «revolução» que eram perfeitamente visíveis os enormes meios demonstrados pelo Partido Comunista Português a todos os níveis, incluindo o diplomático, que se traduzia num apoio sólido e unânime ao PCP por parte de todos os países do bloco de leste, liderado pela União Soviética e com o qual a Política externa do general Spínola, inexplicavelmente, consideraria ser prioritária a normalização! Pelo contrário, e embora isso não fosse tão evidente, após o 25 de Abril, o Partido Socialista nem sequer tinha a certeza do apoio dos principais partidos da Internacional Socialista, quanto mais o dos Estados Unidos da América que viria, postreriormente, a motivar, em grande parte, o primeiro!
A Junta de Salvação Nacional dificilmente poderia, no dia 25 de Abril, ser considerada de esquerda e muito menos associada ao Partido Comunista. Quaisquer extrapolações posteriores só se compreendem para justificar a incapacidade, quer da direita, quer da esquerda democrática, para então fazer compreender aos homens do MFA as vantagens e superioridade da via democrática. O general Spínola que, enquanto presidente da Junta de Salvação Nacional, seria nomeado presidente da República, Silvério Marques, Pinheiro de Azevedo, Galvão de Meio, Diogo Neto, Costa Gomes eram todos homens de direita. Por outro lado, pouco se conhecia a respeito da personalidade de Rosa Coutinho, apesar de bem visto pelos americanos após um curso que frequentara naquele país. Costa Gomes, que posteriormente viria a ser aliciado para o campo comunista, atingindo mesmo o mais baixo grau de subserviência ao dar cobertura às actividades da estratégia soviética através do Conselho Mundial da Paz, [6] era inicialmente parte do establishment ocidental, tendo mesmo sido ele o primeiro a propor o general Spínola para presidente da Junta.
O primeiro-ministro escolhido em segunda mão para chefiar o primeiro governo provisório, prof. Adelino da Palma Carlos, era um republicano «maçon», de pendor mais conservador que liberal. Os membros do primeiro governo provisório eram igualmente, na sua sua grande maioria, liberais e conservadores nomeados com base nas propostas e recomendações dos chefes partidários, com excepção de Raul Rego e Firmino Miguel [7]. O general Spínola convidaria inicialmente Raul Rego para primeiro-ministro uma vez que “os capitães (estavam) convencidos de que (deviam) muito ao República, única voz da oposição democrática ao fascismo” [8]. De facto, Spínola escolhera Raul Rego pessoalmente graças à amizade que os unia e à cobertura e «legitimação» que Rego lhe dera no jornal República, na fase que antecedeu o golpe do 25 de Abril. Mas, “atendendo a que Mário Soares lhe não inspirava confiança” [9], seria também Rego quem aparentemente convenceria Spínola a incluir o líder do PS no governo. Raul Rego era um distinto jornalista socialista. Acabaria, em circunstâncias nunca devidamente explicadas, por lhe ser retirado o convite, sendo então nomeado ministro para a Comunicação Social. Um convite que o próprio Mário Soares, enquanto primeiro-ministro, nunca repetiria. Contudo, a História e a curta passagem de Raul Rego pelos governos provisórios está por contar. É que, no quadro das suas afinidades políticas e «maçónicas», seria Rego quem mais influenciaria o general Spínola nas suas primeiras escolhas políticas. Quer para primeiro-ministro, em sua substituição, quer para ministro dos negócios estrangeiros. Mas, apesar da sua influência, não terá partido, como tudo indica, de Raul Rego a iniciativa de sugerir a inclusão do PCP no primeiro governo. Era uma decisão gravíssima e inédita num país da NATO, que só se compreendia no quadro do complexo de esquerda do secretário-geral do PS e no âmbito do acordo que tinha assinado com aquele partido, meses antes, em Paris.
Valerá talvez a pena analisar aqui, tanto quanto é possível a mais de vinte anos de distância, se a ideia da inclusão do Dr. Álvaro Cunhal no primeiro governo provisório parte realmente do general, como ele próprio admitiria em entrevista de fim de carreira (e já admirador do Dr. Mário Soares), em 1984, ao historiador e jornalista José Freire Antunes [10], ou se ela parte do primeiro encontro com Mário Soares. Ora, dados os sentimentos anti-comunistas do general Spínola, dada a sua amplamente demonstrada ignorância Política e o facto de se saber que Mário Soares teria dito ao general que se Cunhal não entrasse ele também não entrava para o governo, parece evidente que a decisão foi influenciada decisivamente pelos socialistas. Aliás, Soares diria a Dominique Pouchin de forma peremptória que Spínola não era então favorável “à presença dos comunistas no governo” [11]. Também me parece duvidoso, e nenhum registo existe que o confirme, que tenha sido o próprio secretário-geral do PCP a reivindicar tal lugar! O que implica que estando à partida excluída a hipótese de terem sido os comunistas a insistir na sua participação – e não devemos esquecer que o PCP em Abril de 1974 ficaria satisfeito com a sua mera legalização – estamos perante a probabilidade de ter sido o próprio Mário Soares, na sua primeira entrevista com Spínola, graças ao apoio de Raul Rego, quem lançou Cunhal para o primeiro governo, a fim de ele próprio se tomar indispensável na pasta dos negócios estrangeiros!
O ex-embaixador de Portugal em Washington, João Hall Themido, confirma que Mário Soares “não inspirava confiança” [12] ao general Spínola, que terá simplesmente comentado que Soares não era «um génio» mas daria «um ministro aceitável» [13]. “Sá Carneiro estava no governo, como ministro sem pasta, para acompanhar de perto os problemas da Política externa” [14] necessitando o general apenas de alguém para abrir «as portas» [15] do reconhecimento à Revolução, convencido das «ligações europeias do líder do PS» [16]. Do ponto de vista do Partido Socialista – tanto quanto me seria dado a conhecer posteriormente – não havia nenhuma vantagem em que a pasta dos negócios estrangeiros fosse ocupada por Mário Soares, havendo outros dirigentes, como por exemplo Ramos da Costa, que não tendo que se ocupar com a organização do partido, era quem melhores relações internacionais detinha no PS de então, além de dominar razoavelmente o idioma inglês! Não seria essa, evidentemente, a opinião do próprio Mário Soares, que considerava que “ninguém mais do que (ele) tinha então a possibilidade de conquistar rapidamente a simpatia da Europa e do Mundo para uma revolução tão repentina, que inquietava o estrangeiro” [17]. Contudo só Mário Soares teria essa opinião, com a falta de modéstia que todos lhe conhecem. O mundo inteiro recebera o anúncio do 25 de Abril com grande regozijo e quem dava garantias e tranquilizava os governos aliados de Portugal na NATO era exactamente o general Spínola e não o socialista Mário Soares, co-signatário de um «inquietante» acordo de governo com o Partido Comunista.
Teremos contudo que admitir que o 25 de Abril encontrara o país e os seus dirigentes (quer os cessantes, quer grande parte dos emergentes) num estado de grande provincianismo e isolamento internacional, o que explicaria a grande necessidade que Spínola sentia de ter alguém que lhe abrisse portas e alguém que controlasse as actividades do «porteiro»! O Partido Socialista achava o seu secretário-geral fundamental para organizar um partido que a 25 de Abril não existia «de facto» e que, como se veria alguns meses depois, ia sendo «entregue» ao PCP no seu primeiro congresso. Os socialistas, em 1974, não só não queriam que Soares fosse o ministro dos negócios estrangeiros do general Spínola como exigiam “que ficasse em Lisboa a fim de organizar o mais rapidamente possível as infraestruturas do partido” [18]. Este, no entanto, não seguiria os conselhos dos amigos, admitindo mesmo que nenhuma atenção dava ao seu partido pois “as raras semanas que passava em Lisboa eram absorvidas por conselhos de ministros intermináveis” [19]. Mas, mais uma vez demonstrando aquela vaidade que Tony Benn [20] diz ter encontrado no líder do PS, este explica o seu «sacrifício» pela nação em detrimento do seu partido, perguntando-se “quem era suficientemente conhecido de Willy Brandt para lhe pedir uma audiência no próprio dia? Quem é que podia organizar, à pressa, um encontro com o presidente Senghor, de passagem por Paris? Quem é que tinha a possibilidade de reunir em Helsínquia com um simples telefonema, os líderes da social democracia escandinava? Quem é que Harold Wilson esperava para reconhecer, sem mais demora, o novo regime português?” [21]. Mas, acrescentaria, “é evidente que o meu partido tirou proveito dessas viagens”. [22]
A necessidade de angariação de fundos para o PS, embora fundamental naquela fase, também não justificava que fosse o secretário-geral a ocupar a pasta dos negócios estrangeiros. Francisco Ramos da Costa e Manuel Tito de Morais tinham sido no passado, e continuavam então a ser, não só angariadores de fundos como elementos bem creditados junto da Internacional Socialista, a quem tinham apresentado Mário Soares, anos antes. Por outro lado, para além da ridícula vaidade demonstrada, a sua auto-promoção não passaria de uma operação de branqueamento que só o provincianismo reinante deixaria passar em claro.
De facto, Willy Brandt, que à semelhança de qualquer outro chefe de governo socialista receberia com o maior prazer qualquer enviado especial do novo regime português, estava demissionário após a prisão, a 24 de Abril de 1974, do seu conselheiro Gunther Guillaume, acusado de ser espião do Comité de segurança do estado russo (KGB). Seria já Helmut Schmidt, que Soares não conhecia, a reconhecer o novo regime português. Senghor, embora ainda não ligado à Internacional Socialista, ao que parece receberia com igual prazer qualquer enviado do general Spínola. E só por grande pretensão se poderia imaginar que o telefonema do ministro dos negócios estrangeiros português (MNE) levaria os líderes da social-democracia escandinava a reunir em Helsínquia para um encontro com ele. Acontece que quando Mário Soares pediu para ser recebido pelo então primeiro-ministro sueco, Olof Palme, lhe foi dito que seria melhor deslocar-se a Helsínquia, onde os quatro primeiros-ministros dos países nórdicos estavam reunidos numa das habituais reuniões do conselho nórdico. Eram eles o sueco Olof Palme, o dinamarquês Anker Joergensen, o norueguês Trygve Brattelli e o anfitrião, Kalevi Sorsa. Todos sociais-democrata ansiosos por ter notícias do que se passava em Lisboa.
Torna-se mais credível que ao insistir junto de Spínola na inevitabilidade da presença do Dr. Cunhal no governo se estivesse ele próprio a tornar inevitável como sendo, na altura, o socialista e, provavelmente, o português mais bem credenciado para ocupar a pasta dos negócios estrangeiros, de que necessitava para se auto-propulsionar internacionalmente. Político comprovadamente astuto, sabia que em Portugal os próximos anos passariam pela vertente internacional e que o seu futuro político teria que passar pelas necessidades. Também sabia que no Partido Socialista não existia na altura «um centavo» e que o controlo dos financiamentos representaria igualmente o controlo do partido.

O conselho de estado, que por ordem hierárquica precedia o governo, tomou posse pouco mais de um mês após o 25 de Abril e também nada tinha de esquerdista, dele fazendo parte sete elementos escolhidos pelo general Spínola: o seu chefe da casa militar, tenente-coronel Almeida Bruno e o coronel Rafael Durão, ambos da sua confiança pessoal, os civis eram Freitas do Amaral, Azeredo Perdigão, Henrique de Barros, cunhado de Marcello Caetano, que viria em Dezembro a aderir ao Partido Socialista, Ruy Luís Gomes e Isabel Magalhães Colaço. Da Coordenadora do MFA tinham assento no conselho de estado os majores Vítor Alves e Melo Antunes, os comandantes Vítor Crespo e Almada Contreiras, os capitães Pereira Pinto e Costa Martins e o coronel Vasco Gonçalves. De todos, só Vasco Gonçalves e Almada Contreiras estariam «ideologicamente» próximos do PCP. Otelo Saraiva de Carvalho,um dos principais, senão o principal operacional, que planeou e tornaria possível o 25 deAbril, era um homem da maior confiança do general Spínola desde os tempos da Guiné e nem ele nem, aparentemente, a maior parte dos seus companheiros percebiam nada de Política, nem mantinham contactos com o Partido Comunista. Algo semelhante me dissera em tempos Olof Palme que tivera vários contactos com Otelo Saraiva de Carvalho por quem nutria grande simpatia. Contou-me, durante um momento de boa disposição no centro de formação do movimento sindical sueco, em Bommersvik, que Otelo lhe dissera durante a sua primeira visita a Portugal, em Outubro de 1974, que antes do 25 de Abril sempre considerara a social-democracia demasiado à esquerda. Era opinião do malogrado primeiro-ministro da Suécia, que Otelo e os capitães de Abril que ele tivera oportunidade de conhecer, não passavam de militares inicialmente bem intencionados e politicamente «analfabetos», que o PCP habilmente conseguira, com apoio da Comunicação Social, transformar em «estrelas». O que infelizmente iria dificultar a sua adaptação à democracia parlamentar.
Ora não sendo o MFA à partida nem estruturado, nem politizado e permanecendo, à semelhança do que sempre foi a tradição dos militares portugueses, incapaz de governar, como foi possível deixar que o rumo da revolução passasse a ser ditado pelo PCP? Que interesses estavam em jogo e quem foi responsável por tal aventura, que ia atirando Portugal para uma terrível ditadura comunista?
O general Spínola em primeiro lugar. Não conhecia as pessoas que convidava e, aparentemente, tão pouco conhecia os seus próprios colaboradores. A sua ignorância Política e até o seu provincianismo, juntamente com a sua vaidade, impediram que a confiança depositada em si, de início, pelos capitães de Abril perdurasse. O seu primeiro erro foi estar ele próprio convencido de que lhe bastava a autoria do seu «best-seller», «Portugal e o Futuro», para ocupar o lugar de presidente da República. Depois, traindo os seus princípios de homem essencialmente reaccionário, que tinha participado na guerra civil de Espanha e no cerco Nazi a Estalinegrado, aceitar que Álvaro Cunhal e o PC tivessem assento num governo de um país da NATO, na altura mais necessitado da ajuda económica e Política dos seus aliados do que do reconhecimento diplomático dos países de leste. Foi uma medida nunca aceite pelos parceiros de Portugalna NATO, que constituiu um perigoso precedente na Europa Ocidental e que nem os italianos, onde o PC era fortíssimo e mais democrático, alguma vez ousaram pôr em prática. A decisão de incluir comunistas no primeiro governo provisório obrigaria, aliás, o então ministro dos negócios estrangeiros a desperdiçar as oportunidades que se ofereciam ao nosso país, usando todo o seu tempo para explicar a insólita decisão.
Esta medida iria custar caro ao general Spínola pouco tempo depois, quando «acordou» e tentou, num súbito golpe de autoritarismo, efectuar mudanças ao que previamente acordara com os «capitães de Abril», durante o que ficou conhecido por «crise Palma Carlos». Aí já não iria encontrar um único gesto de solidariedade internacional, nem na Europa nem dos EUA, cujo regime ele afirmara ao embaixador americano querer copiar quando lhe transmitira pretender “implantar uma democracia de tipo ocidental, segundo as linhas existentes nos Estados Unidos da América” [23]. Por outro lado, e apesar da desconfiança que Spínola tinha em relação ao líder do Partido Socialista, aceitou nomeá-lo para ministro dos negócios estrangeiros sem uma clara definição dos objectivos do seu governo em matéria de Política externa, para além da muito difusa «abertura de portas» e o estabelecimento de relações diplomáticas com os países de leste. Ainda hoje não são claros.
Mário Soares chegara a Portugal sob a influência do contrato político acordado com o PC em Paris em 1973 e, pior do que isso, perfeitamente convencido de que o PS estava predestinado a um papel subalterno em relação aos comunistas. E embora discordando dos comunistas portugueses, sobretudo em matéria de liberdades, com eles mantinha algumas afinidades derivadas da sua formação na unidade anti-fascista e, também, do seu deslumbramento com as teses de François Mitterrand sobre a matéria. Ora, sendo natural que fosse convidado para uma pasta no primeiro governo provisório, não tanto porque se pensasse, em Abril de 1974, que o jovem PS viria a ser uma grande força Política em termos eleitorais mas, sobretudo, porque em 1974, os principais governos da Europa Ocidental eram dirigidos por partidos filiados na Internacional Socialista, a pasta dos negócios estrangeiros, se bem que útil à sua promoção pessoal, só faria sentido do ponto de vista dos membros da Junta de Salvação Nacional, após decisão de que seria útil à «Revolução» incluir o PCP no governo. De outro modo, faria pouco sentido, naquela altura, quer do ponto de vista nacional quer do ponto de vista partidário.
Começando por este último, era evidente que o minúsculo Partido Socialista tinha que ser rapidamente organizado e, no ministério dos negócios estrangeiros, o seu secretário-geral não disporia de tempo para conduzir tal tarefa, como ele próprio admitiria mais tarde. Mas organizar então o PS era uma tarefa vital para a democracia.
Em termos de interesse nacional, e até do seu próprio prestígio pessoal, Spínola não compreendera que o essencial para o país e para a concretização do programa do MPA, era a mais estrita observância das relações de Portugal no quadro da NATO e de solidariedade com os seus parceiros no quadro do «conflito» Leste-Oeste, que iria, inevitavelmente, passar por África. Para além da sua estadia compulsiva em São Tomé, Mário Soares não podia ser exactamente considerado um expert em questões africanas e, em termos práticos, a responsabilidade dos contactos com os Movimentos de Libertação, viria a ser essencialmente confiada a um ministro para a então designada Administração Interterritorial. O qual, sendo um homem hábil em negociações, demonstrou ser politicamente fraco, deixando-se sempre ultrapassar pelo seu amigo. Refiro-me evidentemente a António de Almeida Santos. Por outro lado, conhecendo Spínola a opinião do secretário-geral do Partido Socialista em matéria de descolonização que, aparentemente não era, de início, a sua (embora considerasse que “a vitória exclusivamente militar [era] inviável” [24] acreditava numa solução federalista estando, no entanto, disposto a aceitar “a descolonização segundo as regras das Nações Unidas” [25]) tão-pouco se compreende aquela nomeação. A própria aceitação do cargo poderia parecer caricata dado o oportunismo que revela, não fosse a absoluta necessidade da sua ocupação para a já mencionada auto-propulsão. De facto, logo no primeiro encontro o convidado ministro dos negócios estrangeiros aceitaria o convite, não obstante se ter apercebido logo à partida das profundas divergências que tinha com o seu superior sobre uma questão que era essencial para os interesses do país: a descolonização. “Spínola fazia questão de distinguir autodeterminação e independência, julgando que poderia assim travar o curso da História. Não havia, quanto a nós, outra saída senão a da independência” [26]. Detectada a profunda divergência aceitou a pasta e convenceu alguns dos seus “camaradas a não provocarem confrontações imediatas sobre essa divergência” [27].

A generosa revolução estava evidentemente armadilhada à partida. Também a tão apregoada necessidade de contactar os governos dos países tradicionalmente aliados de Portugal na NATO e na EFTA poderia facilmente ser confiada a Sá Carneiro, que saíra altamente prestigiado aquando do rompimento com Marcello Caetano em Janeiro de 1973. Mas candidatos não faltariam e alguns até teriam maior aptidão em matéria de línguas, sobretudo o inglês, que dada a sua importância para os temas da defesa e do comércio internacional, é fundamental a qualquer ministro dos negócios estrangeiros. A abertura a leste, embora aparentemente não fosse essa a opinião do primeiro governo, tão pouco era uma questão urgente ou fundamental para os interesses de Portugal. E o argumento aduzido de que o general Spínola e a Junta de Salvação Nacional consideravam prioritário que os governos amigos reconhecessem o novo governo nascido com o 25 de Abril era ridículo e demonstrava a ignorância política de Spínola.
Embora surpreendidos com o golpe, a satisfação com a queda do regime de Marcello Caetano foi unânime em todo o mundo e nenhuma dificuldade existiria para o reconhecimento do novo governo. Aliás, antes mesmo de Mário Soares iniciar, a 2 de Maio de 1974, o seu périplo com a finalidade de alegadamente obter reconhecimento e apoio para o novo regime, já se tornara mais que evidente que a nomeação de Spínola para presidente da República, a declaração do MFA e a composição da Junta de Salvação Nacional eram mais do que indícios suficientes para tranquilizar os aliados tradicionais de Portugal. O que já lhes era mais difícil de aceitar – isso sim – era a inclusão de Álvaro Cunhal e de dirigentes comunistas no governo.
E não se pense que as objecções a tal precendente num país da NATO, eram só dos EUA. Os socialistas presentes em governos europeus de países da NATO, como os da Grã-Bretanha, Alemanha, Noruega e Dinamarca demonstraram igual perplexidade! É portanto neste contexto que se devem compreender as manobras e o círculo vicioso de contra-informação e decepção em redor da nomeação de Mário Soares para ministro dos negócios estrangeiros. A sua principal missão não era o reconhecimento internacional que estava «automaticamente» garantido, nem a abertura a leste – que aliás não era um interesse vital, excepto para o Partido Comunista. Tão pouco a de abertura de conversações com os Movimentos de Libertação, visivelmente desejada por todas as partes. Era sim, sua missão, convencer os parceiros ocidentais de que embora permanecendo fiel à NATO e a todos os compromissos internacionais de Portugal, o primeiro governo provisório iria contar com a presença de comunistas fiéis à estratégia planetária de Moscovo! Afinal as reticências com que o PCP assinara o acordo com Mário Soares não se justificavam e os soviéticos tinham fortes razões para estar satisfeitos.
Apesar da fama e prestígio que adquirira, essencialmente derivados das suas reconhecidas qualidades militares e, posteriormente, pela coragem de enfrentar Marcello Caetano, Spínola não tinha condições políticas para ser chefe de estado. E nenhum dos seus conselheiros foi capaz de o demover da ideia de incluir o PCP no governo. Que Mário Soares o tivesse feito compreende-se, dado o ainda fresco programa de acção comum e a subalternidade a que o PS parecia disposto a submeter-se. Agora que Freitas do Amaral também o tenha aconselhado nesse sentido é deveras surpreendente e mostra, de facto, as grandes responsabilidades que a direita teve no avanço comunista em Portugal. Num acto demonstrativo de grande versatilidade da direita portuguesa o ex-procurador à Câmara Corporativa e, então, conselheiro de estado da «Revolução», lembraria Spínola de que já De Gaulle tinha incluído comunistas no governo francês “a seguir à vitória dos aliados na Segunda Grande Guerra” [28]. Mas, o conselho de Freitas do Amaral nem sequer se pode comparar à situação em Portugal após o 25 de Abril. É que os Aliados saíram vitoriosos de uma Guerra devastadora contra o Nazismo e contra o fascismo graças à sua tardia aliança com a União Soviética de Estaline e, em França, os comunistas tiveram um papel decisivo na resistência e no apoio ao general De Gaulle para presidente da República. Em Portugal a «resistência» comunista, se bem que meritória, não foi decisiva para a queda do regime que, segundo o próprio Freitas do Amaral, não era um regime fascista e a designação de Spínola não seria influenciada pelo Partido Comunista.
Antes da «crise Palma Carlos», no início de Julho de 1974, quando o primeiro-ministro, a pretexto de maior exequibilidade governativa, pretendeu alterar o calendário do programa do MFA, adiando as eleições para a assembleia constituinte e antecipando as presidenciais para Outubro, já era evidente a crise de autoridade quer do primeiro-ministro, quer do general Spínola. Quando o secretário-geral do partido social democrata sueco, Sten Andersson, visitou Portugal no mês de Junho à frente de uma importante delegação dos secretários-gerais de vários partidos escandinavos, comentaria a situação que observara no Palácio de Belém, onde se encontrara com Spínola, como a de “um estado caótico com oficiais a tropeçar uns nos outros”, situação que ele associou a “uma cena tirada de um velho filme de piratas!” [29] E se a aceitação da tese de que era fundamental associar os comunistas ao governo lhe sairia cara, desprestigiando-o internacionalmente, a tentativa de alterar os calendários eleitorais ser-lhe-ia fatal, por ser interpretada pelos portugueses e, no estrangeiro, como um acto de incompreensível autoritarismo para legitimar o seu poder pessoal. Os comunistas, a quem ele abrira a porta, considerariam esta uma oportunidade única para consolidarem as suas posições que, só por estupidez, deixariam escapar.
Ora, uma vez mais ficou demonstrado que foram os erros da direita democrática e a surda colaboração dos socialistas que permitiram o avanço dos comunistas, bem inseridos na estratégia global da União Soviética. Os socialistas, embora opondo-se, e bem, ao plano de Spínola e de Palma Carlos, demonstrariam grande passividade em todo o processo, aparecendo sempre como suporte das posições de Álvaro Cunhal. Teria sido mais sensato e, certamente, no interesse da democracia e de Portugal que, dadas as afinidades «republicanas» e «maçónicas» com Palma Carlos, fossem utilizados, através das tão invocadas relações internacionais, meios de persuasão para convencerem Spínola da loucura que estava a cometer! Foi também, talvez, o primeiro grande erro político de Sá Carneiro, que se deixara arrastar pelas pretensões de Spínola. O segundo, provavelmente ainda maior, foi a sua saída do executivo em solidariedade com Palma Carlos. Foi, sem dúvida, um gesto de grande dignidade mas politicamente fútil, que abriu ainda mais o flanco à penetração comunista.
Os erros políticos de Spínola, já então internacionalmente reconhecido como politicamente incompetente, acumular-se-iam. Na tentativa de encontrar um novo primeiro-ministro de sua confiança tenta, sem primeiro preparar o caminho de aceitação junto dos homens do MFA, que por ele ainda nutriam sentimentos de amizade, lançar o tenente-coronel Firmino Miguel. Depois, perante a recusa do MFA, comete o erro fatal de preferir Vasco Gonçalves a Melo Antunes, por este “ser demasiado marxista!” [30]
No PS, entretanto, assistia-se a uma penetração galopante do Partido Comunista em virtude da ausência do seu secretário-geral, Salgado Zenha, então a única possível alternativa ao secretário-geral, era igualmente membro do governo, responsável pela pasta da justiça. Para satisfação do PC “o partido foi, desde o início, relegado para segundo plano” [31] e Tito de Morais “assegurava quase sozinho o funcionamento” [32] do PS, na sua primeira sede nacional. E se a visita ao Palácio de Belém lembrara ao sueco Sten Andersson “uma cena tirada de um velho filme de piratas”, a sede do Partido Socialista na rua de S. Pedro de Alcântara onde «reinavam», em crescente incompatibilização, Manuel Tito de Morais e Manuel Serra, fazia lembrar uma cena tirada de um saloon de um velho filme do faroeste! O tesoureiro do partido era um dos fundadores presentes em Bad Munstereifel. Carlos Carvalho, que usava como método de contabilidade a acumulação de papelinhos soltos, onde ia depositando números e com os quais passava recibos. Método aliás legado aos seus sucessores. Diplomatas e delegações estrangeiras eram recebidas nos corredores e nas escadas. Manuel Serra, Aires Rodrigues e Fernando Oneto, acompanhados dos seus «segurança», andavam numa «lufa-lufa» à procura de indícios dos «golpes de estado» que a Imprensa anunciava com antecedência, enquanto toda a gente berrava ao mesmo tempo, como se para afastar de vez os velhos fantasmas que ainda ali habitavam. 0 PS tinha assentado praça no edifício da sede da Comissão de Censura do Governo de Marcello Caetano! No meio de toda aquela barafunda, a única pessoa que parecia controlar minimamente a situação era a Maria do Carmo Maia Cadete, coordenadora do secretariado nacional.

Mário Soares ia, entretanto, aproveitando algumas das suas viagens enquanto ministro dos negócios estrangeiros para angariar alguns fundos para 0 Partido Socialista. Mas, apesar de alguns contributos iniciais dos partidos sociais-democratas escandinavos, do SPD e de uma campanha de angariação de fundos lançada na Holanda pelo PVDA (Partido Trabalhista) e pelo seu dinâmico secretário para as relações internacionais, Harry van den Berg, os apoios financeiros estavam longe de ser o que muitos imaginavam e se insinuava. Segundo se conseguiu apurar, 0 movimento sindical norueguês deu pela primeira vez ao PS, em Maio de 1974, “após visita a Oslo de Francisco Ramos da Costa” [33], cem mil coroas norueguesas. E demonstrando os seus bons contactos internacionais e capacidade de angariação do fundos, também o PSD da Dinamarca forneceria cinquenta mil coroas “enviadas através do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa” [34]. No dia 29 de Julho, após um encontro com Bernt Carlsson, fui informado de que o partido sueco tinha atribuído à sede do PS cem mil coroas, para além do apoio que enviaria preferencialmente para as organizações locais e regionais do partido. Também ofereceria uma rotativa «Solna offset» nova que, contudo, só chegaria ao PS em 1975 (mas que se tornaria imprescindível para imprimir cartazes e autocolantes a cores) além de cerca de 78 mil coroas entregues em mão na sede [35]. E, tanto quanto sei, a fundação Friedrich Ebert doaria pelo menos meio milhão de marcos alemães através da fundação António Sérgio, primeira das fundações do PS. Mas, como muitos dos donativos, sobretudo os mais pequenos, eram feitos em mão pelas delegações que vinham a Portugal ver a «Revolução» e como nada era aparentemente contabilizado – prática a que os partidos portugueses rapidamente se habituariam — é praticamente impossível saber ao certo os montantes exactos que na totalidade o PS receberia dessa «solidariedade» internacional.
Pelos meus cálculos, com base na pesquisa informal que eu próprio faria posteriormente, deduzi que, em 1974, o PS não recebeu de partidos «irmãos» montantes significativos e nem de longe minimamente comparáveis aos que os serviços de informação americanos afirmavam o PCP estar a receber! Aliás só o secretário-geral sabia exactamente quanto e de onde recebia o dinheiro sendo certo que, na prática portuguesa, o controlo financeiro dos partidos está intimamente ligado ao controlo do próprio partido. Não admira que este tipo de informação permaneça fechado e que as leis da chamada transparência, aprovadas pelos principais partidos políticos, permaneçam ainda hoje tão opacas!
Mas fazia parte da estragégia do PS desmentir sem convicção os financiamentos estrangeiros, para poder insinuar apoios massivos europeus e assim atrair para o partido os quadros de que necessitava. O contrário significaria muito provavelmente que o PS permaneceria o pequeno grupo de amigos que era no dia 25 de Abril de 1974. Mas mesmo após as visitas de François Mitterrand, de Willy Brandt, de Olof Palme e do senador norte-americano Edward Kcnnedy em 1974, os apoios ocidentais davam para «quebrar o galho», mas exprimiam claramente as reservas da Europa e dos Estados Unidos em relação ao «contrato» do PS com o Partido Comunista e em relação à influência do PS na Sociedade portuguesa.
Os americanos, que após os primeiros sinais de cooperação de Mário Soares nos anos 60 acompanhariam com grande cepticismo a sua «reassociação» aos comunistas, não queriam sequer ouvir falar do PS e a maior parte dos líderes sociais-democratas europeus, eram chefes de partidos fortemente implantados no operariado e apoiados por fortíssimos movimentos sindicais de tradição anti-comunista, que viam em Mário Soares uma espécie de reflexo da Política de François Mitterrand, em que não acreditavam. Mas, a título de curiosidade, o único partido da Internacional Socialista que nunca deu um tostão ao PS português foi precisamente o PSF de Mitterrand onde inúmeros dirigentes, como por exemplo Jean Pierre Chevenement, considerariam Mário Soares pouco progressista.
Mas, Manuel Tito de Morais, nas funções de secretário-geral «interino» ia recebendo alguns donativos e, nesta matéria, “tudo o que vinha à rede era peixe”. Mantinha-os contudo bem longe dos olhos curiosos de Manuel Serra utilizando, inicialmente, a Associação António Sérgio, como centro de angariação. No início havia muitas reticências dos partidos irmãos da Internacional Socialista em relação ao seu congénere português que eles ainda mal conheciam. Não se tratava só da impressão de que o PS tinha fraca implantação e seria uma espécie de apêndice do PCP. Para a grande maioria dos dirigentes sociais-democratas europeus, a colorida agitação da extrema-esquerda liderada pelos MRPP e UDP era um mau presságio, reminiscente do que se passara no Chile no ano anterior. E para muitas das suas bases, e até para alguns dirigentes, para quem as boas revoluções são as do Terceiro Mundo, os «capitães de Abril» eram o elemento mais chamativo da revolução portuguesa! Perante tal cepticismo, creio que até ao primeiro congresso que teria lugar em Dezembro, o único contributo significativo recebido pelo Partido Socialista tinha sido angariado no seguimento da visita de Mário Soares a Trípoli, em Novembro de 1974, onde se encontraria com o coronel Kadhafi, tendo, a partir daí. a conta da Associação António Sérgio sido rapidamente transferida para o Nederlandsche Middenstandsbank de Hilversum, na Holanda, que. posteriormente, viria a ser titulada por José Neves, também ele fundador do partido em Bad Munstereifel. Escrever-lhe-ia posteriormente, aproveitando a visita a Trípoli de José Neves e Catanho de Menezes para agradecer e exprimir a sua “admiração pelo interesse e ajuda que (Kadhafi) deu à luta e libertação do povo português” assim como para o informar de que o PS estava “de novo em condições de reabrir os nossos contactos com todas as forças que no mundo lutam pela libertação dos povos. Entre essas forças, tanto a Líbia como V. Ex.ª jogam um papel altamente fundamental. Os meus camaradas do Partido Socialista portadores desta mensagem farão todo o possível para desenvolver ainda mais as nossas relações mútuas” [36].
Antes de regressar definitivamente a Portugal, em virtude dos exames que me faltavam para concluir a licenciatura em ciências políticas na universidade de Lund, fiz frequentes viagens a Portugal. Enquanto colaborador do Partido Social-Democrata Sueco, era normalmente convidado para acompanhar quase todas as delegações políticas e sindicais que visitaram Portugal após o 25 de Abril. Também corri a Suécia de lés-a-lés a falar em escolas, sindicatos, clubes associativos e universidades dentro de um programa de apoio do PSD Sueco, que consistia essencialmente na angariação de fundos e na ligação entre federações e secções do PSD Sueco com as suas equivalentes em Portugal. Era convicção dos suecos, talvez influenciados pelo famoso livro «The Ugly American» [37], que o êxito do Partido Socialista passava sobretudo pelo apoio e reforço das suas estruturas locais e regionais e não pela entrega de dinheiro em Lisboa. Esse projecto, inédito na história da Internacional Socialista, permitiu a inúmeras secções do PS, que às vezes nem máquinas de escrever possuíam, obter dinheiro e equipamentos das suas congéneres suecas que, no relacionamento estabelecido, convidariam centenas de dirigentes locais e regionais do PS para visitar a Suécia e, assim, compreender o funcionamento daquele bem organizado partido e as suas ramificações socio-culturais.
Num partido em que faltava “mais ou menos tudo o que é necessário para pesar de uma maneira autónoma na vida Política nacional” [38], era um programa descentralizador que se mostraria imprescindível para o engrandecimento do PS, dado que incluía a abertura de contactos internacionais a nível local e regional que, de outro modo, nunca teriam tido lugar e a que os dirigentes em Lisboa não ligavam muita importância, sempre ávidos de serem eles próprios a viajar. E para além de dinheiro, equipamentos e contactos humanos foi possível mesmo adquirir uma serie de magníficas ambulâncias que acabariam por ser doadas, através das secções locais do PS, a autarquias e bombeiros voluntários de vários pontos do país. A primeira delegação sueca que veio comigo foi sindical e assistiu ao primeiro de Maio de 1974. No dia 10 de Junho chegou a segunda delegação, representando os principais sindicatos daquele país e chefiada por Bjorn Andreasson da Central Sindical Sueca LO. No seguimento dessa visita a várias secções do PS espalhadas pelo país, passaria a receber, na Suécia, inúmeras cartas com pedidos de apoio. Entre estas, uma do secretariado da zona norte do PS, que depois de muitos considerandos afirmava que “nós os socialistas da zona norte estamos tremendamente precisados de auxílio de todos os socialistas do Mundo. Da relação acima (uma enorme lista de pedidos de máquinas e equipamento), julgo que aí nesse maravilhoso país se fabricam algumas máquinas, se as puderem mandar, nós aqui conseguíamos a isenção de impostos, mas se preferirem a entrega através dos representantes dos fabricantes (…) mais rapidamente podíamos montar a nossa máquina propagandística. Caro camarada: Isto é um autêntico S.O.S.”. Transcrevo um só exemplo da situação de necessidade e desorganização em que se encontrava este partido e a importância material e psicológica que teriam os contactos do Partido Social-Democrata Sueco com o PS. Muitas outras iniciativas, que demonstrariam ser decisivas para o regime democrático em Portugal e para o Partido Socialista, seriam também lançadas pelo Partido Social-Democrata Sueco, um dos poucos que nunca esperou ou pediu quaisquer contrapartidas da sua solidariedade.
Entretanto, se os suecos tinham iniciado, por meu intermédio, o apoio directo às secções do Partido Socialista, a nível central, as coisas, pelas razões já aduzidas, pareciam mais complicadas. Em vésperas do primeiro congresso, e já depois de terem recebido pelo menos cerca de duzentas mil coroas [39]. Manuel Tito de Morais estava desesperado sem dinheiro para ganhar o congresso e deslocar-se-ia a Estocolmo “a fim de tentar estimular o auxílio que nos prometeram” [40]. Esse auxílio estava em grande parte a ser canalizado directamente para as organizações locais do Partido Socialista, dadas as dúvidas quanto à eficácia do auxílio directo à direcção nacional do partido. Entretanto o tempo se encarregaria de revelar novos episódios em matéria de financiamentos. Vinte anos após o 25 de Abril, ao ser preso por alegado desvio de fundos públicos. o ex-presidente da Venezuela, Carlos Andrès Perez, declararia que uma parte desses fundos teria sido entregue a Mário Soares. Foi a primeira vez que eu ouvi falar do assunto, que “foi confirmado à Agência Lusa por uma fonte não identificada do Palácio de Belém” [41].

O primeiro congresso do Partido Socialista na legalidade teve lugar de 13 a 15 de Dezembro, sob o espectro da perigosa mudança operada a seguir ao chamado 28 de Setembro em que Spínola tentara, de novo. através da alegada «maioria silenciosa», tomar o poder autoritariamente. O resultado foi a renúncia emocional ao cargo de presidente da República sem qualquer acto preparatório que salvaguardasse os princípios democráticos definidos no programa do MFA e, desta vez, sim, abrindo completamente o flanco ao controlo do PCP e à estratégia da União Soviética. Spínola não seguira o exemplo de Caetano, que a 25 de Abril não pretendera ver o poder «cair na rua» [42]. Mostrando-se definitivamente menos responsável que o homem que ajudara a derrubar. sairia precipitadamente da chefia do listado, permitindo ao PCP passar a controlar o processo com a cobertura de alguns elementos conservadores no conselho de estado. Costa Gomes, inicialmente considerado um pró-americano de gema, far-se-ia eleger por uma Junta reduzida a dois elementos, além dele próprio, contando para o efeito com o apoio militante do PCP e o parecer jurídico-constitucional favorável dos conselheiros Isabel Magalhães Colaço, Freitas do Amaral e Azeredo Perdigão. Além do general Costa Gomes, parte interessada na eleição, estariam presentes o almirante Pinheiro de Azevedo, que Freitas do Amaral dizia sempre manter “o conselho bem disposto” [43] e a «voz» do almirante Rosa Coutinho que. estando em Angola, votaria a nomeação de Costa Gomes por via telefónica. Uma autêntica tragicomédia, juridicamente enquadrada pela direita, num ambiente de autênticos «rolhas». Dizem os ingleses que “if you scratch my back i’ll scratch yours” [44]. Vinte anos depois, assiste-se em Portugal a uma série de elogios mútuos entre antigos «inimigos» políticos, que é, no mínimo, surpreendente.
Só quando os delegados e convidados ao primeiro congresso do PS na legalidade se reuniram na Aula Magna da reitoria da faculdade de letras da Universidade de Lisboa se percebeu que o resultado das viagens de Mário Soares, com paragens em Lisboa só para ir tomando posse, e, às vezes, participando nos diferentes governos provisórios, ia resultando em tragédia para o partido e, evidentemente, para Portugal. Não pondo em causa a liderança do Partido Socialista, o PCP e a quinta divisão do estado maior das Forças Armadas então ao seu serviço, por intermédio de Manuel Serra que Soares pessoalmente nomeara para dirigir a segurança e a propaganda do partido, estavam convencidos de assim poder ter o Partido Socialista na mão. Recuperado da sua miopia aquando da assinatura do acordo com Mário Soares em Paris, o PCP rapidamente percebera que o potencial eleitoral do PS era de longe superior ao seu e até ao seu e do MDP no seu conjunto. O caminho era-lhes entretanto altamente favorável, não só porque conseguiram lançar complexos de esquerda em toda a Sociedade portuguesa com socialistas e democratas-cristãos a baterem-se pelos seus direitos e pela sua participação no governo — mas também porque, depois dos erros de Spínola, para completar as «conquistas da revolução» só faltaria deitar mão ao Partido Socialista.
Enquanto a direita tremia e os socialistas sonhavam com a unidade antifascista do pós-guerra, o PCP seguia friamente as orientações da geo-estratégia soviética, muito atenta à «queda» de Nixon e ao subsequente enfraquecimento internacional dos EUA. Não admira que Kissinger, pouco interessado no bem-estar dos portugueses, mas consciente de que a reacção a uma tomada de poder pelos comunistas, num país da NATO, seria a desejada «vacina» que permitiria o retorno de uma mão forte nos EUA, desejasse o êxito do PCP. Pelo menos temporariamente! Não foi também por acaso que a grande estrela internacional do primeiro congresso tenha sido Santiago Carrilho, líder do Partido Comunista espanhol, assim como todos os «grupelhos progressistas» que. em claro contraste com os «irmãos» da Internacional Socialista, seriam delirantemente aplaudidos.
Os trabalhos iniciaram-se com a leitura de um telegrama de saudações enviado por Mário Soares ao P.R. Costa Gomes. O mesmo, segundo os jornais da época, foi vibrantemente aplaudido de pé pelos congressistas. Logo no início foi aprovada uma moção subscrita por Manuel Serra e Maria Barroso em que se afirmava que “o PS, defenderá o modelo constitucional democrático que melhor consolide a aliança do povo e das forças democráticas com o MFA“. Depois, tendo em conta que a ratoeira comunista passava por sensibilizar o seu conhecido egocentrismo, Mário Soares foi reconduzido na secretaria-geral sem qualquer oposição, o que já não aconteceria com a orientação do partido. Para a comissão nacional, Manuel Serra não preconizou tal unanimidade e, depois de uma autêntica guerra campal, a lista da direcção histórica do partido sairia vencedora pela escassa margem de 94 votos, tendo a lista de Manuel Serra obtido quase 44% dos votos dos congressistas. O nome de Mário Soares aparecera nas duas listas concorrentes, por ordem alfabética na lista da direcção histórica e à cabeça da lista que o PCP promovera por meio de Serra. Aliás, só por milagre Mário Soares não sairia daquele congresso como secretário-geral de dirigentes afectos a Manuel Serra e ao Partido Comunista. A confusão era tanta que ninguém se entendia e os organizadores do congresso, predominantemente pró Serra, que, vale a pena repetir, Soares encarregara da segurança do partido, utilizariam todos os meios de coacção e até força para impedir os «históricos» de exprimirem a sua voz e o seu voto. Eu próprio, que, para além de fundador, fazia parte da comissão directiva vigente e era delegado em representação do núcleo de Malmoe na Suécia, fui inicialmente pura e simplesmente impedido de entrar no local do congresso. Só depois de umas boas horas alguém conseguiu encontrar Manuel Tito de Morais no interior, para vir à porta obrigar os «gorilas» a deixarem-me entrar.
As relações entre os «militantes» socialistas estavam longe de ser solidárias e nem sequer primavam pela boa educação. Era o resultado da invasão ocorrida no PS, após o 25 de Abril, de todo o tipo de novos militantes. Com isso mesmo tinha também contado o PCP. No final, ainda inconsciente do que ali se linha passado, Soares afirmaria que nao tinha havido “vencedores nem vencidos” mas “apenas socialistas e camaradas”. Provar-se ia bem pouco depois, já em Janeiro de 1975, que assim não era. Aliás, Manuel Serra advertira já no seu discurso final, com a arrogância de quem quase conseguira o que se propusera, que saía do congresso “com a fraternidade de militantes revolucionários, de militantes da classe trabalhadora”. O primeiro secretariado nacional, eleito em 21 de Dezembro, ainda incluiu Manuel Serra que, contudo, abandonaria o partido poucos dias depois, na esperança de levar consigo os 44% dos “militantes revolucionários, da classe trabalhadora”. Se tal não aconteceu deve-se. com grande grau de probabilidade, à visão de Francisco Salgado Zenha. Mas o Partido Socialista nunca recuperaria totalmente da psicose do golpismo que se iniciou logo após o 25 de Abril e de que o primeiro congresso na legalidade seria um bom primeiro exemplo. Passaria a fazer parte da própria evolução e história do movimento socialista português.
Para muitos, o sonho de Bad Munstereifel começava a transformar-se no pesadelo de George Orwell. O reeleito secretário-geral permaneceria insensível à lição do congresso e, poucos dias depois, ao visitar Moscovo, afirmaria que “Portugal adere à Política de paz e segurança praticadas pela União Soviética“, acrescentando que o nosso país “terá de reorganizar todo o seu anterior sistema socio-económico e construir uma estrada para o socialismo” e recordando que “nesse caminho, Portugal encontrou novos amigos, dos quais um dos primeiros foi a União Soviética” [45]. Para desespero dos americanos, Mário Soares parecia ser um caso perdido e só comparável a Kerensky [46]. É que durante a sua visita a Moscovo, duas semanas após o congresso em que o PCP demonstrara as suas intenções, “desejava ir mais longe e estabelecer, em nome de Portugal e também — porque não do PS relações de sólida compreensão com o povo russo e com as instâncias dirigentes do PC soviético” [47].
Quem ironicamente tudo percebera – e digo ironicamente a pensar no que viria a acontecer, dez anos depois, em 1985 — foi Salgado Zenha que, apesar do importante trabalho que desenvolvia no ministério da justiça, passou a dar maior importância às actividades do Partido Socialista. Mas a sua total lealdade para com o sempre ausente Mário Soares era um raro exemplo nas relações entre os dirigentes socialistas. Não fosse isso e teria facilmente sido ele a liderar o Partido Socialista. É que, com algumas raras excepções, entre as quais me conto, os principais quadros de então estariam com Zenha se assim ele o desejasse. Este apercebera-se durante o congresso da manobra do PCP, sendo bastante expressiva a cerimónia de encerramento do primeiro congresso, em que Soares e Serra de pé cantam o hino do partido de mãos dadas no ar, com um Zenha «carrancudo» sentado entre ambos. Convencido de que chegara a altura de travar o avanço dos comunistas, e enquanto Soares em Moscovo se esforçava “por estabelecer com as autoridades soviéticas relações tão cordiais quanto possível” passa ao ataque empenhando, pela primeira vez, a bandeira da resistência contra o sonho bolchevique. No dia 6 de Janeiro publicaria um artigo no Diário de Noticias contra a «unicidade» sindical, decretada pelo então secretário de estado Carlos Carvalhas, que Zenha afirma ser inconstitucional. A firmeza com que foi lançada esta inesperada oposição do PS provocaria o abandono de Manuel Serra e mudaria o rumo dos acontecimentos cm Portugal. Salvaria o país da ditadura que estava na forja sem qualquer reacção até então das forças democráticas e salvaria Mário Soares de vir a desempenhar o papel de «Kerensky» que Henry Kissinger lhe preconizara em Outubro de 1974, durante a visita que fez a Washington onde acompanhou o presidente Costa Gomes. E se à posteriori a afirmação de Kissinger poderá ter parecido ridícula, a verdade é que até Zenha ter erguido a bandeira da democracia n0 seu artigo e a 16 de Janeiro, no histórico comício contra a unicidade sindical do pavilhão dos desportos, o secretário-geral do PS não levantara um dedo para travar o avanço do PCP. E, mesmo depois da posição assumida por Zenha, ainda demoraria algum tempo até que Soares despertasse. Após a renúncia de Spínola, 0 PCP, que então tivera “consciência da sua força e da fraqueza dos outros” [48], perceberia que Salgado Zenha iniciara o rompimento com 0 chamado contrato de governo com 0 PC e com 0 sonho da acção unitária.
Foi 0 grande herói socialista e aquele que, um dia, feitas todas as análises e escritas todas as memórias, os socialistas portugueses recordarão como, provavelmente, a sua maior figura do Século XX. Muitos socialistas, entre os quais eu me encontro, terão que se penitenciar em relação a Francisco Salgado Zenha. Mas como diria Mário Mesquita, em 1976, “ao fim destes dois anos de excessos vários e alguma anarquia, Salgado Zenha, pela sua visão englobante e nacional, credita-se como um dos nossos raros homens de estado. O que não é, necessariamente, boa sina, porque 0 estado ainda está por fazer e os portugueses nem sempre perdoam aos que fogem à bitola comum” [49].
No rescaldo do congresso Manuel Tito de Morais seria de certo modo responsabilizado pela situação a que tinha chegado o partido por ter sido “ultrapassado pela grandeza da tarefa que lhe estava incumbida” [50] sendo «desterrado», enquanto responsável pelas relações internacionais, para um primeiro andar na Rua D. João V, perto do Largo do Rato. O outro dirigente histórico a quem 0 partido muito devia, por ter sido ele a abrir as primeiras relações internacionais nos anos 70 e que poderia ter sido uma excelente alternativa para ministro dos negócios estrangeiros, também não seria poupado, não entrando sequer para o secretariado nacional do partido que tanto lhe devia. Francisco Ramos da Costa seria também «desterrado» para embaixador em Belgrado. Quando faleceu, em 1982, estava contra o rumo que o seu velho amigo Soares imprimia ao PS e em total sintonia com as posições de Zenha e do grupo que viria a ser conhecido por «ex-secretariado».

No dia 21 de Janeiro de 1975 regressaria a Portugal com uma delegação do Partido Social-Democrata sueco, chefiada por Rolf Theorin, o dirigente social-democrata sueco encarregado pelo primeiro-ministro Olof Palme de estudar um programa de apoio ao PS. Depois de um encontro com membros do secretariado nacional do partido, Mário Soares convidar-me-ia para uma reunião na sua casa do Campo Grande, onde estava acompanhado de Salgado Zenha. Era a primeira vez que eu visitava a sua casa em Lisboa. O secretário-geral do PS disse-me então que «queriam» que eu viesse acessorar o Manuel Tito de Morais nas relações internacionais, para ver se eu «punha mão naquilo». Salgado Zenha, com quem eu não tinha intimidade uma vez que não o conhecera pessoalmente antes do 25 de Abril, era a grande figura do PS. As bases e os dirigentes reconheciam a sua grande estatura moral e intelectual. Ao contrário de Mário Soares, era algo introvertido, comedido nas suas palavras e possuidor de um apurado sentido de humor que, quando desafiado, podia resvalar para um temível sarcasmo. Logo nesse meu primeiro contacto a sós com os dois principais dirigentes juntos, pareceu-me também que Soares se ressentia daquela evidente superioridade. Era o número dois do PS quem tinha sempre a última palavra, com frequentes arremessos de paternalismo. Enquanto Soares nunca se aventurava sozinho num raciocínio novo e recorria quase sempre à cumplicidade de «O Zenha e eu» este, pelo contrário, raramente falava a dois. Mas era frequente começar por explicar uma situação com uma farpa ao seu amigo. “Bom, dir-me-ia, aqui o Mário gosta muito de viajar e depois queixa-se de que o Tito não tem mão no partido. O que nós precisamos é de reforçar o departamento de relações internacionais uma vez que o país vai entrar em convulsão e sem apoios internacionais o partido não resiste. A nossa prioridade são as eleições para a assembleia constituinte”. Eu perguntei se Tito de Morais estava de acordo que eu o fosse acessorar, ao que me foi dito que sim. Era verdade pois, de facto, Tito de Morais, embora nunca me convidando para aquele lugar, várias vezes insistiu para que eu viesse pois «fazia cá falta».
A situação em matéria de relações internacionais não era muito brilhante porque, ate então, tinha tido uma orientação um tanto ou quanto dispersa e terceiro-mundista, o que confundia alguns dos nossos parceiros da Internacional Socialista. Muitos puderam observar, no recente congresso, que o entusiasmo em relação aos euro-comunistas e até em relação aos comunistas cubanos, romenos e jugoslavos era de longe superior ao acolhimento dado aos parceiros da família socialista, embora compreendessem que Portugal atravessava um período revolucionário em que raramente reinava o bom senso. «Compreendiam» a situação mas acusavam sempre o toque quando depois lhes pedíamos apoio financeiro!
Particularmente difícil era também a relação com os nossos parceiros espanhóis do Partido Socialista, Mário Soares considerava que os verdadeiros socialistas eram os que representavam o Partido Socialista Popular dos seus amigos Tierno Galván, Raul Morodo e Fernando Morán, enquanto Felipe González, ainda na clandestinidade, lutando contra Franco e contra a facção de Rudolfo Lloppis que se considerava a legítima herdeira do PSOE, era praticamente desprezado. O herói do primeiro congresso do Partido Socialista tinha aliás sido Santiago Carrilho, situação vexame para Felipe González que, posteriormente, me comentaria, numa visita a Lisboa em 1976, que podia imaginar “o que Mário Soares teria dito se a situação tivesse sido inversa e, num congresso do PSOE, aclamassem Cunhal e ignorassem Mário Soares“. Rudolfo Llopis considerava-se herdeiro do PSOE e tinha sido reconhecido pelo governo mexicano enquanto membro do governo republicano espanhol no exílio. Contudo, a partir de 1972 algumas federações do PSOE contestariam aquela direcção na cidade francesa de Toulouse, onde se reuniriam em congresso «clandestino». A partir de 1974, a Internacional Socialista reconheceria o PSOE saído daquele congresso, o que seria aguerridamente contestado pelo grupo de Llopis e pelo Partido Socialista Popular de Tierno Galván. Em virtude daquele reconhecimento da I.S., Felipe González seria então eleito primeiro secretário num congresso extraordinário realizado na cidade de Suresnes, também em França, em Outubro de 1974. A Internacional Socialista nomearia então uma comisssão para analisar a contestação, pronunciando-se de novo após este congresso pelo reconhecimento de González em detrimento de Rudolfo Llopis. Por outro lado, o Partido Socialista Popular liderado por Tierno Galván também não aceitaria, na altura, a decisão da I.S., reclamando-se como o legítimo herdeiro do socialismo democrático espanhol. A posição de Mário Soares, nunca nesta matéria compartilhada por Salgado Zenha, era de que “temos que os reconhecer por ser o partido da Internacional mas aqueles tipos (referindo-se aos líderes norte-europeus) nunca perceberam nada do que se passa na Espanha“.
Ao aceitar o convite que me era formulado para trabalhar com Tito de Morais, por quem nutria uma grande amizade, acrescentaria contudo que só aceitava o lugar de «funcionário» interinamente, uma vez que. com grande injustiça, o meu nome tinha sido «esquecido» dos orgãos directivos do partido no primeiro congresso. Soares pareceu ficar um tanto ou quanto perplexo, dando a entender que nem sequer tinha notado que o meu nome tinha deixado de figurar da lista da comissão nacional, garantindo-me que tal iria ser corrigido no próximo congresso. Aliás, não tinha sido só o meu nome a ser «esquecido». Todos os chamados «moderados», mesmo alguns que, como eu, tinham sido fundadores do partido, que eram então acusados de serem «sociais-democratas», tinham sido mais ou menos «saneados» das listas, nas «negociações» de corredores que decorreram durante o congresso para agradar a Manuel Serra. Alguns, como aconteceria com Bemardino Gomes e Francisco Seruca Salgado, entre os que me recordo, nunca mais entrariam nas listas da comissão nacional do PS e, como tal, dos seus orgãos directivos apesar de, posteriormente, terem continuado a prestar-lhe alguns serviços de relevo.
Sem querer retirar virtudes aos capitães de Abril, a quem se deve o regresso do nosso país à comunidade dos países democráticos e ao papel desempenhado por Francisco Sá Carneiro para a aceitação nacional de uma mudança do regime, ao fim de quase cinquenta anos de ditadura e isolamento, creio que, dados os erros da direita e do Partido Socialista, se deve a Francisco Salgado Zenha o fim das concessões gratuitas ao Partido Comunista Português. Depois, não sei se por mera casualidade histórica – o que em Política às vezes também acontece – a nomeação de Frank Carlueci para embaixador dos Estados Unidos da América em Portugal, seria a pedra de toque que mais contribuiria para garantir a sobrevivência do regime democrático português.
Frank Charles Carlueci chegou a Portugal em Janeiro de 1975 para substituir o embaixador Stuart Nash Scolt. Carlueci não era, como muitos então disseram e alguns ainda hoje pensam, dos quadros da CIA. O próprio «desertor» pró-soviético daquela agência, Philip Agee, o reconhece [51]. Era um diplomata de carreira que merecera as atenções de Nixon. Depois de ter sido subdirector do orçamento [52] ocupava o lugar de sub-secretário da Saúde quando foi designado para embaixador em Portugal. Em Washington reinava então grande confusão com o rescaldo do caso «Watergate», sendo nítida a perda de autoridade do presidente substituto, Gerald Ford, que era também em grande parte extensível ao secretário de estado, Henry Kissinger. Durante o seu primeiro mandato, o presidente Richard Nixon rapidamente se mostrara “um feroz adversário da estrutura de poder em Washington” [53]. Considerava-se marginalizado pelas estruturas de poder e pelos lobbies de Washington, “sofrendo todas as discriminações dos outsiders” [54] na campanha eleitoral de 1968 e ao chegar ao poder acusaria a elite e o “establishment” da capital federal norte-americana de terem “tendência para trabalhar uns com os outros, ano após ano, não obstante as mudanças de administração” e de serem grupos que “geralmente actuam concertadamente” [55]. Nixon decidira então fazer uma limpeza geral, começando com a CIA. Nesta surpreendente tentativa de centralizar o poder político, queria “que o conselho nacional de segurança da Casa Branca, sob a direcção de Kissinger, controlasse todos os serviços secretos e de inteligência” [56]. E como se poderá facilmente depreender, os serviços secretos americanos, com relevo para a CIA, naquela altura sob comando de Richard Helms, não consideravam exactamente Nixon como o seu presidente predilecto. Tão pouco Henry Kissinger gozaria dos favores daquela organização e, apesar do prestígio internacional que adquirira, entraria em declínio com o braço-de-ferro entre ambos.
A situação existente cm 1974 era portanto confusa e a coordenação da Política externa praticamente inexistente. O clima de suspeiçâo generalizado seria aliás bem retratado pelo general Vernon Walters [57], que “até hoje (acredita) que o Sr. Nixon mantém a ideia de que alguém na CIA o tentou tramar, ou agiu de algum modo contra ele [58], referindo-se à queda de Nixon a propósito do escândalo de «Watergate»”.
Walters, hoje figura quase lendária da diplomacia e da «inteligência» americana, estivera no nosso país em Agosto de 1974, onde se encontrara com representantes dos principais partidos, e confirmaria que o PCP eslava “a receber 10 milhões de dólares mensais da União Soviética” [59]. O astuto diplomata-espião tinha uma certa predilecção pelo nosso país e falava correctamente o português, tendo conhecido pessoalmente Salazar e Caetano. Em Paris, onde servira na qualidade de adido militar de 1967 a 1972, acompanharia de perto as declarações de Mário Soares ao pequeno grupo de correspondentes estrangeiros que Marvin Howe conseguira reunir no Overseas Press Club em Nova Iorque e os seus primeiros passos no exílio em Paris. O interesse pelo líder socialista português, que vinha já dos anos 70, seria mantido em Paris através de Irving Brown, então representante na capital francesa da AFL/CIO [60] e reconhecido internacionalmente enquanto “representante na Europa da AFL e principal agente da CIA no controlo da Confederação Europeia dc Sindicatos Livres” [61]. Mas, graças ao acordo de governo com o PCP, Brown acabaria por considerar Mário Soares “um traidor à causa ocidental” [62]. Quando Vernon Walters estivera em Lisboa, em Agosto de 1974, percebera que a contenção do PCP teria que passar pelo PS, dada a debilidade das outras forças democráticas e a fragilidade Política do general Spínola. Mas Walters, que à semelhança do PCP percebera a importância que o PS poderia ter, tinha as maiores dificuldades em aceitar que Mário Soares persistisse em “contar com a presença de um PC cuja influência sobre a classe operária e real” [63].
Mário Soares, então perfeitamente alinhado com o PC na sua verborreia anti-imperialista, ainda acreditava mais no seu antigo partido do que no seu próprio e afirmava a quem o quisesse ouvir que “se não temos, em Lisboa, um programa comum, a falta deve-se unicamente aos comunistas, que recusaram todos os convites para progredir nesse sentido” [64]. É a partir do relatório da visita de Vemon Walters a Lisboa que nasce, aliás, em Kissingcr, a ideia de que Soares seria o próximo «Kerensky» português. Mas Walters era um profissional que sabia melhor do que ninguém dar a volta às coisas e recomendara dois campos de acção imediata para Portugal: A visita de Irving Brown e Michael Boggs para ajudar a organizar a contra-ofensiva aos comunistas no campo sindical e a nomeação de Frank Carlucci, cujas qualidades ele conhecia bem do Brasil, país onde ambos tinham estado.

O embaixador Carlucci tinha o inteiro apoio de Walters bem como o do próprio director, William Colby, o que lhe permitia à partida a flexibilidade suficiente para pensar pela própria cabeça e recomendar ao conservador, e frequentemente hostil, secretário de estado, a estratégia que ele considerasse mais adequada ao «caso português» É, que a confusão reinante em Washington e à perda de autoridade da Casa Branca não equivalia necessariamente igual situação em Langley, sede da CIA, onde a visão da estratégia a aplicar a Portugal divergia consideravelmente da do secretário de estado. A divisão CIA-Kissinger sobre o caminho e as medidas a adoptar no «caso português» revelam não só dois conceitos diametralmente opostos em matéria da Política externa dos Estados Unidos mas, também, os ressentimentos daquela agência em relação ao ex-secretário de estado de Richard Nixon.
O director da CIA, William Colby, admitiria o papel daquela agência em Portugal, como muitos certamente se recordam, através da famosa jornalista italiana Oriana Fallacci [65] e em 1986, no meu primeiro e único encontro com Vemon Walters, ele próprio me afirmaria ter estado na origem das duas vertentes que garantiriam o apoio dos EUA “à democratização de Portugal” [66]. Disse-me mesmo que tinha sido ele quem sugerira o nome de Frank Carlucci, que chegou a Portugal em Janeiro de 1975 e, a delegação da AFL/CIO viria a Portugal no mês de Maio. Tudo me leva a crer, contudo, que, em virtude da evolução da situação, já tenha sido o próprio Carlucci, após o primeiro de Maio, quem considerou estarem preenchidas as condições para a vinda de Irving Brown e de Michael Boggs.
Ignorando por completo as gravíssimas declarações do então chefe do COPCON, Otelo Saraiva dc Carvalho [67], Carlucci rapidamente perceberia a lógica da «Revolução». O velho «amigo» dos americanos Costa Gomes, então presidente da República, tinha caído nas mãos dos comunistas. Vasco Gonçalves era mais radical que o próprio Álvaro Cunhal, os militares estavam ansiosos por protagonismo e, na sua ignorância Política e vaidade revolucionária, pendiam mais para o PCP, partido que, com o apoio soviético, mais condições tinha para os aliciar. O embaixador era um liberal de centro-direita e nada tinha, nem tem ainda hoje, de socialista. Mas compreendeu, para desespero injustificado de Sá Carneiro, que nem o então PPD, nem a direita democrática – uma vez perdidas todas as oportunidades durante o malogrado mandato de Spinola – tinham condições para travar o avanço dos comunistas. Só os socialistas, devidamente apoiados, poderiam desempenhar essa tarefa, desde que eles próprios estivessem dispostos a pôr de lado os velhos complexos unitários dos tempos da clandestinidade. Foi aliás essa convicção, e o apoio da CIA, que lhe permitiriam enfrentar Henry Kissinger. Este achava que Portugal poderia muito bem ser sacrificado à estratégia global para derrotar a escalada comunista mundial — o que acabaria por acontecer durante o último mandato de Ronald Reagan, sem sacrificar Portugal.
Carlucci, que à data da sua chegada a Portugal ainda só tinha de positivo a promessa de divórcio lançada por Salgado Zenha, discordava de tal tese. Para o embaixador uma derrota dos comunistas no terreno, na Europa Ocidental, seria um exemplo sem precedentes e o princípio do fim da mitologia comunista. Valia a pena, segundo ele, investir para derrotar o PCP e a União Soviética. Era a tese de que o Ocidente precisava urgentemente de uma vitória dos “mencheviques contras os bolcheviques” [68]. É muito provável que a estratégia Carlucci, ao triunfar em Portugal com o 25 de Novemhro de 1975, tenha mesmo representado o primeiro passo para a queda do muro de Berlim e para o descrédito do comunismo em todo o mundo.
O PS poderia, se quisesse, desempenhar um papel fundamental para a defesa da democracia em Portugal e dos interesses ocidentais. Os EUA estariam na disposição de ajudar o PS a atingir esse objectivo. Foi isso mesmo que o embaixador disse a Mário Soares, a Salgado Zenha e aos vários dirigentes socialistas com quem foi, rapidamente, estabelecendo contacto. Uma das suas primeiras medidas foi a substituição de todo o pessoal político-diplomático da embaixada por homens de grande «qualidade» e só habitualmente encontrados nas capitais de interesse prioritário para os Estados Unidos. A cada um cabia acompanhar um partido ou um sector que Carlucci coordenava. Todas as manhãs, segundo ele próprio me contaria, ainda o pais estava a dormir e já ele e os seus homens reuniam na Avenida Duque de Loulé para fazer o ponto da situação. Herbert Okun coordenava o trabalho do dia-a-dia da embaixada, enquanto políticos, militares e empresários em todo o país seriam diariamente «assediados» com almoços, recepções e todo o tipo de contactos por parte de Carlucci, pessoalmente, e pelos seus principais conselheiros. Nada nem ninguém escapava, nem mesmo o PCP. Em breve Frank Carlucci teria uma imagem mais perfeita do que se passava ou iria passar em Portugal do que as próprias autoridades. O homem destacado para seguir as actividades do Partido Socialista era Richard Mellon [69], enquanto Charles «Charllie» Thomas acompanhava as actividades do PSD. E das reuniões matinais sairiam informações e recomendações para Washington, para a Casa Branca, para o departamento de estado, Langley ou Pentágono no quadro do plano de acção definido para o restabelecimento da democracia em Portugal. As embaixadas dos EUA espalhadas pelo mundo tinham igualmente instruções para comunicar todos os aspectos relacionados com a situação em Portugal tendo, em 1976, Kissinger declarado que, a partir de certa altura, a maior parte das informações que lhe chegavam às mãos das suas embaixadas, em 1975, falavam do nosso país [70].
Quando vim finalmente ocupar o meu lugar como assessor de Manuel Tito de Morais no departamento de relações internacionais do Partido Socialista, no início de Março, Jean François Revel opinava no L’ Express que a situação que se vivia em Portugal se assemelhava a um cocktail que continha “um terço do Chile, um terço do Peru e um terço da Checoslováquia!” O terço chileno era “a decomposição rápida do tecido económico”, o peruano eram “os militares progressistas” que Revel apelidava de politicamente analfabetos e o terço checoslovaco seria o afastamento dos democratas “em proveito exclusivo dos comunistas” [71]. As relações internacionais do PS eram então uma autêntica manta de retalhos. Manuel Tito de Morais era um homem generoso e de uma militância desinteressada. Provavelmente, sem a sua contribuição ao longo de anos de grande dedicação não existiria um Partido Socialista antes do 25 de Abril. Estou, aliás, convencido de que sem a sua persistência e o seu trabalho haveria hoje um PS pós 25 de Abril constituído pelo PCP ou pelos actuais dirigentes do PS que viriam a acordar tarde para o socialismo. Tinha contudo ideias fixas sobre a esquerda. Quando regressou com Mario Soares a Portugal vinha convencido da exequibilidade do programa comum com o PCP e linha tantas desconfianças em relação a Spínola como o próprio Álvaro Cunhal. Depois, e apesar de ter sido utilizado por Manuel Serra como pretexto para as modificações que este queria imprimir ao PS, não acreditou que 0 PCP estivesse por detrás de Serra uma vez que não concebia como possível que o nosso país evoluísse para a democracia sem o concurso do PCP. Quando se verificou que o PS iria ter um peso eleitoral muito superior ao do PCP, acreditou que este partido iria apoiar os governos minoritários do PS. O facto de o PCP assim não proceder, atribuía-o à falta de vontade de dirigentes não marxistas como Salgado Zenha. Até à coligação do PS com o CDS, em 1978, tinha ideias muito parecidas com as de Mário Soares, embora não possuísse a sua grande flexibilidade. O 25 de Abril encontrara-o já com mais de sessenta anos e tinha algumas dificuldades de relacionamento social com os colegas das relações internacionais dos partidos da Internacional Socialista, todos bastante mais jovens. O discurso de Zenha no pavilhão dos desportos não o convencera e, como tal, permanecia perfeitamente impermeável aos encantos da nova diplomacia norte-americana. Por outro lado, embora ninguém o tivesse lido nem tivesse qualquer aplicação prática, existia – e bem, quanto a ele – um documento saído do primeiro congresso sobre Política externa, denominado «Uma Política Internacional ao Serviço da Paz». Tinha como prioridade o desenvolvimento das relações com os países de leste e propunha a dissolução da NATO e do Pacto de Varsóvia e o “apoio às forças progressistas do Terceiro Mundo“. Ao assentar praça no departamento internacional, era este o meu guia de orientação. Mas também estava consciente de que na prática deveria fazer exactamente o contrário.

O departamento internacional era invadido por visitas de dirigentes, diplomatas e até curiosos de todo o mundo a quem Tito de Morais ia explicando o que se passava em Portugal e expunha a posição do PS. E. como era da «praxe», se os visitantes eram de partidos amigos da IS ou de países progressistas, eram lembrados de não esquecerem a solidariedade para com a nossa luta. Que ninguém então ainda descortinara bem qual era. Não existia um plano de acção nem uma definição de critérios e de prioridades. As que eu então comecei a pôr em prática visavam a concentração de esforços numa participação activa no quadro das actividades da Internacional Socialista e o contacto permanente e prioritário com os partidos europeus que estivessem nos governos dos seus países. Entregar os contactos com o folclore político «progressivista» àqueles camaradas que gostassem de viajar a países exóticos, 0 que não faltava era quem quisesse ir à Líbia, à Roménia, à Coreia do Norte ou às reuniões da Frente Polisário nos mais remotos pontos do globo. Havia também que clarificar as relações com o PSOE, normalizar as relações com Israel e com os Estados Unidos. Dada a situação de anarquia no país, dificilmente compreendida quer na Europa quer nos EUA, o departamento de relações internacionais, mesmo correndo o risco de por vezes desempenhar o papel que competia ao ministério dos negócios estrangeiros, tinha que passar a ser um pólo gerador de apoios políticos internacionais, exprimindo aos governos dos países tradicionalmente aliados de Portugal, os pontos de vista do PS, de forma a deles conseguir o necessário apoio político e diplomático, que garantisse que a evolução democrática e os calendários eleitorais seriam respeitados.
Em todos os contactos então estabelecidos com o corpo diplomático acreditado em Portugal, a ênfase da posição do Partido Socialista ia no sentido de insistir na necessidade de serem mantidas as eleições para a assembleia constituinte. Estabeleci relações de cordialidade com quase todas as missões diplomáticas quer ocidentais, quer africanas, quer dos países de leste. Relendo as agendas de 1975 é impressionante o número de diplomatas e políticos estrangeiros que recebi na R. D. João V, oriundos de todos os continentes. E não foi só Carlucci, embora este fosse de facto o principal, que teve um papel importante para a criação de um ambiente favorável à evolução democrática que viria a prevalecer. Frank Carlucci e a sua mulher, Marcia, que ele conhecera em Lisboa, estabeleceram com a Gunilla e comigo relações de amizade pessoal que transcendem os aspectos meramente políticos. Foi uma amizade que se prolongou muito depois da sua saída de Lisboa em 1978. É evidente que. à boa maneira americana, Carlucci acabou por receber do seu governo o reconhecimento que lhe era devido. Mas em Portugal ainda ninguém teve a coragem de, abertamente, proceder de igual modo. Estou convencido de que naquela altura Frank Carlucci actuou mais por convicção democrática e até pela emotividade herdada da sua origem latina do que por calculismo. Aliás o reconhecimento político com que seria contemplado, durante o mandato do presidente Ronald Reagan, foi mais acidental do que premeditado tendo, no interregno, que enfrentar dificuldades várias.
Quando o PS mais necessitava de apoio para que se realizassem as eleições para a constituinte, único meio de legitimar o processo democrático que o MFA proclamara a 25 de Abril e para se saber qual o peso real de cada força Política, foi, talvez, Carlucci quem meteu medo a Costa Gomes e por essa via aos militares comunistas. Não sei se com o acordo do secretário de estado Henry Kissinger, calculo até que não, mas isso é algo que provavelmente nunca se apurará. Dado que Portugal era um aliado dos EUA na NATO, foi a ameaça de que os EUA se reservavam o direito de «actuar» para garantir o programa do MFA., que o seu país tivera em conta ao reconhecer o novo regime saído do 25 de Abril, talvez o factor mais importante para travar o avanço comunista, que após o 11 de Março parecia imparável. Os excelentes contactos que o embaixador americano estabeleceria com muitos militares seriam não só um factor da moderação de alguns, como veículo de informação aos mais radicais. Não admira pois que o que mais impressionasse o embaixador de Portugal nos EUA, sempre que era recebido por Vasco Gonçalves, fosse “o ódio primário que o primeiro-ministro de Portugal manifestou aos Estados Unidos e o pavor que a CIA lhe causava” [72].

Em Janeiro de 1975, o então ministro dos negócios estrangeiros britânico, James Callaghan, visitou oficialmente Portugal. À semelhança das visitas de Palme, Brandt e Kennedy em 1974 esta visita teria uma importância chave para o desenrolar dos acontecimentos. Callaghan, ao compreender o que estava em jogo em Portugal, decidiu aceitar dialogar com a União Soviética no sentido de os advertir das consequências para as relações Leste Oeste se persistissem na sua ingerência em Portugal e contactaria os EUA no sentido de os estimular a adoptarem medidas de apoio exactamente opostas. Para o ministro dos negócios estrangeiros do nosso mais velho aliado, esta mediação era extremamente oportuna em termos da sua própria carreira Política. Harold Wilson, o seu primeiro-ministro, atravessava um período de crise pessoal e o “brandy era a única coisa que lhe dava força para continuar” [73] segundo o que terá dito à dirigente trabalhista Barbara Castle, “Em Whitehall corriam boatos a respeito das actividades financeiras do primeiro-ministro e sobre o seu envolvimento com o mundo comunista” [74]. Em Londres tinha começado em privado a corrida à sucessão de Harold Wilson e Callaghan, considerado um trabalhista pró-americano e da ala direita, não era exactamente o favorito dos cada vez mais esquerdistas dirigentes daquele partido. Na reunião do conselho de ministros britânico de 11 de Fevereiro e, na sequência da sua visita a Portugal, Callaghan anunciaria ao primeiro-ministro que os comunistas em Portugal acabavam de controlar a Imprensa [75], o que não sendo totalmente verdade reflectia a grande preocupação de Zenha com o que se passara no congresso e com o que se estava a passar nos jornais estatizados.
Naquela data. ainda o jornal República se mantinha nas mãos dos socialistas e os arremessos das comissões de trabalhadores fiéis ao PCP e a grupos da extrema-esquerda limitavam-se aos jornais de Lisboa. No dia 16 de Fevereiro seria discutido no conselho de ministros britânico que o secretário de estado dos EUA, Henry Kissinger, criticara Mário Soares pela posição que este assumira em relação à aceitação de ministros comunistas no governo [76], dando claramente a entender que os esforços de Mário Soares “para conquistar rapidamente a simpatia da Europa e do Mundo” [77], missão para a qual ele se considerava o único interlocutor capaz, não estavam a surtir o efeito desejado. Aparentemente não só não conseguira convencer os aliados de Portugal a aceitar a presença de ministros comunistas no governo, como estava a ser pessoalmente responsabilizado. Tendo em conta que Soares acabara de fazer declarações em Moscovo [78] de total alinhamento com a estratégia soviética, as suas explicações aos aliados de Portugal sobre a tese da necessidade de ter comunistas no governo eram interpretadas como um malabarismo farisaico. No plano internacional sentia-se que a estratégia da União Soviética estava em ascendência, havendo mesmo grandes preocupações dos serviços secretos britânicos e norte americanos em relação a alguns dos mais importantes dirigentes socialistas mundiais. Brandt demitira-se em Maio de 1974, quando o seu conselheiro Gunther Guillaume foi preso por colaborar com o KGB. Em Estocolmo começavam a ser levantadas suspeitas sobre colaboradores íntimos de Olof Palme. A Austrália vivia um clima de incerteza em relação ao futuro político do primeiro-ministro trabalhista Gough Whitlam, que à semelhança de Wilson estava a ser investigado pelos serviços secretos ocidentais [79].
No seu livro de memórias levanta um pouco a ponta do véu. Sem mencionar o nome de Kissinger, declara que lhe chegara a ser dito “que uma ditadura comunista talvez não fosse de todo destituída de vantagens, uma vez que isso poderia servir para “vacinar” o resto da Europa Ocidental” [80]. Posição com a qual ele diz ter discordado. E a partir da visita de Callaghan a Lisboa, em Janeiro de 1975, e dos seus contactos com a administração norte-americana que o então ministro dos negócios estrangeiros do nosso mais velho aliado passa a desempenhar um importante papel no desenrolar dos acontecimentos que teriam lugar em Portugal durante o ano de 1975. E depreende-se pelas suas conclusões em relação à tese da «vacina», defendida por Kissinger, que a posição que o ministério dos negócios estrangeiros britânico iria defender não seria a do departamento de estado mas sim a de Langley. Há que ter contudo em conta que a tese da CIA, baseada na conclusão a que chegara Vernon Walters em 1974 de que seria possível derrotar os comunistas desde que o PS estivesse disposto a liderar o processo, não passava obrigatoriamente pela liderança de Mário Soares. Tudo leva a crer, aliás, que as suas frequentes declarações «progressivistas» e a persistência na manutenção da aliança com 0 PCP mesmo após 0 primeiro congresso, em Dezembro, e a declaração contra a unicidade, em Janeiro, teriam desviado a atenção dos EUA para o então número dois do PS.
Spínola mais uma vez comete um erro histórico quando, a propósito do pseudo golpe de 11 de Março, decide fugir para o estrangeiro. De novo seria evidenciada a ingenuidade e miopia Política que revelaria em todos os momentos decisivos, do 25 de Abril de 1974 a 11 de Março dc 1975. Como escrevera antes Jean-François Revel a respeito dos militares portugueses, Spínola afinal demonstrara também ser «politicamente analfabeto», não podendo 0 PCP ter tido melhor aliado nas suas pretensões Freitas do Amaral que revela nas suas memórias as responsabilidades da direita portuguesa no avanço dos comunistas em todas as frentes, acredita que o 11 de Março foi uma tentativa de “golpe de estado militar, como tal ilegítima e reprovável num pais que derrubara uma ditadura e caminhava — ainda que a custo — para a democracia” [81]. Para além de, supreendentemente, vinte anos depois legitimar Costa Gomes e o papel do PCP, seria um bom exemplo de como funcionaria a direita portuguesa após o 25 de Abril. Aceitara, ao considerar legítimo 0 25 de Abril, a condenação implícita do anterior regime, reconhecia que 0 PCP tinha tomado conta da revolução e se preparava para conduzir o país a uma nova ditadura, mas colaboraria no processo de legitimação jurídico-constitucional da nomeação «a dois» do presidente Costa Gomes enquanto acredita que Spínola se tenha deixado envolver numa tentativa de “golpe de estado militar, como tal ilegítima e reprovável…”!
A verdade é que, no clima que se vivia em Portugal a 11 de Março, todos golpes de estado seriam legítimos e, embora o relatório «oficial» do 11 de Março não mereça nenhuma credibilidade, acredito que o general Spínola se tenha deixado envolver no que foi depois chamado «intentona», ao aceitar os conselhos «de amigo» para fugir para Badajoz no dia 11 de Março. Aliás, como se verificaria, antes do chamado «golpe» do 11 de Março já toda a programação para as precipitadas nacionalizações e as chamadas «conquistas da revolução» estava preparada para 0 «após fuga». E após um adiamento aceite por todos, que implicaria a aceitação do pacto MFA-partidos, as eleições acabariam por se realizar a 25 de Abril de 1975. Não tanto graças à força dos partid0s signatários, mas sim devido ao medo que o então auto-proclamado «conselho da revolução» tivera das consequências da sua não realização. A realização das eleições para a assembleia constituinte e o seu resultado significaram junto dos portugueses e na opinião pública internacional que a esmagadora maioria dos portugueses queria viver num regime de democracia parlamentar. Era também para o PS, e sobretudo para os que ainda insistiam nas virtualidade do acordo com o PCP, um aviso solene de que a luta pela democracia seguiria em frente com quem a ela quisesse aderir. Aquilo que o PCP mais temera, o veredicto popular, acabaria por marcar a inversão do processo que a partir de 30 de Setembro de 1974 eles chegaram a considerar irreversível. Os militares comunistas e para-comunistas, que nunca acreditaram que tal tosse possível, iludidos pela organização e força demonstrada pelos comunistas, recusar-se-iam a aceitar o resultado do plebiscito mas, ao fazê-lo, estavam a reconhecer a sua fraqueza e as profundas divisões do próprio MFA. Muitos elementos da esquerda, como seria o então grupo de Jorge Sampaio, hoje no seio do PS, seriam adeptos da tese do voto em branco, embora hoje reconheçam ter-se tratado de «um erro político grave» [82]. O PCP que já pressentira que tal poderia acontecer, embora ainda algo esperançado no «seu» MDP/CDE e nas abstenções pedidas pelo MFA. tivera, entretanto, o cuidado de incluir no pacto MFA-partidos o princípio de que o resultado das eleições para a constituinte se não reflectiria na composição do governo!
Mas sendo o resultado das eleições mais do que esclarecedor, obtendo o Partido Socialista 38% dos votos, o Partido Popular Democrático 26,5% e o Centro Democrático Social 7,6% enquanto o Partido Comunista juntamente com MDP, não iria além dos 16,6%. a interpretação do PC e do MFA seria exactamente aquela que os partidos tinham assinado no «pacto». Ignorando deliberadamente que as forças democráticas em Portugal tinham obtido o apoio consciente de mais de setenta por cento dos eleitores, apesar do MFA e certos grupos de esquerda tudo terem feito para promover a abstenção chegando mesmo a ser dito que um voto em branco era um voto no MFA! A verdade é que para além da existência do «pacto», o Partido Socialista e o Partido Popular Democrático, conseguiriam finalmente legitimar, de forma esmagadora. o seu peso eleitoral. Também parecia certo que, depois do discurso de Salgado Zenha contra a unicidade sindical, o Partido Socialista, ou pelo menos a maior parte do PS, iria seguir um caminho diferente do do PCP e entraria na órbita Política ocidental.

Os incidentes do primeiro de Maio, felizmente para o PS, contribuíram para a ruptura definitiva, dado que muitos observadores internacionais, depois de tudo o que se passara até então, ainda se perguntavam porque razão quereriam ainda os socialistas celebrar o primeiro de Maio conjuntamente com o PCP. O assalto ao jornal República, a 19 de Maio, juntamente com a vitória eleitoral nas eleições para a assembleia constituinte seriam a «gota de água» que levaria a Europa a seguir o caminho que os EUA já tinham iniciado por sugestão de Carlucci, com o apoio dos homens de Langley contra o departamento de estado. Aliás o receio de alguns governos europeus de não ficar atrás dos americanos serviria de “leit motiv” para a determinação europeia. Contudo, se é evidente para muitos, mesmo muitos socialistas, que foi o discurso de Zenha que desencadeou a ruptura com o PC, não é ainda claro para a grande maioria que a mudança de Mário Soares só teria lugar após os incidentes do primeiro de Maio, no estádio com o mesmo nome. Foi a sua «vaidade» ferida, ao não o deixarem entrar na tribuna daquele estádio, impedindo-o de estar ao lado de Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal, para onde este se dirigira, que precipitou a sua ruptura com o PC. Até então, como comprova lodo o seu comportamento até àquela data, Henry Kissinger tinha razão em o considerar o «Kerensky» português. Durante os últimos doze meses alimentara esperanças em relação ao programa comum com o PC, que só não se concretizara porque os comunistas o não quiseram a seu lado. “A falta deve-se unicamente aos comunistas” [83]. Se não tivesse então ocorrido tal incidente e Soares, despeitado, não passasse também ao ataque, que viria a ter como pano de fundo o conhecido slogan — «Soares e Zenha não há quem os detenha» — é provável que ainda em 1975 tivesse ocorrido uma cisão no seio do próprio Partido Socialista, com o afastamento do secretário-geral. A tal não acontecer, dada a lealdade demonstrada por Salgado Zenha, o resultado teria sido. pelo menos, a transferência do apoio americano para Sá Carneiro, que atrairia a si grande parte do movimento socialista. E, por essa via, o posterior reconhecimento do seu partido pela Internacional Socialista.
Quando, no dia 24 de Julho, James Callaghan, informa o seu «Cabinet» de que Portugal “está sem governo [84] e que Soares, líder do Partido Socialista português, temia vir a ser assassinado” [85] já os primeiros-ministros socialistas europeus tinham decidido aceitar o convite de Olof Palme para a cimeira de Haga, nos arredores de Estocolmo, onde seria constituído o «comité de amizade e solidariedade com a democracia e o socialismo em Portugal“, a 2 de Agosto. Presentes, entre outros, os então primeiros-ministros Harold Wilson, Trygve Bratteli, Bruno Kreisky, Helmut Schmidt, Anker Joergensen, Joop den Uyl, Ytzhak Rabin e o anfitrião, Olof Palme, assim como evidentemente Willy Brandt, James Callaghan, François Mitterrand, Bettino Craxi e o convidado de honra, Mário Soares. Logo após a sua chegada à capital da Suécia afirmaria com a força de quem tem por detrás de si o mundo ocidental que “se os militares no poder em Portugal escolherem a violência e introduzirem uma Política de repressão, o povo português resistirá” [86]. A Europa, naquela altura predominantemente socialista, não quisera ficar atrás dos americanos e decidira falar forte à União Soviética recomendando-lhe que se abtivesse de intervir em Portugal sob pena de um sério agravamento nas tensões leste-oeste. Com grande ressonância em todo o mundo, os comunistas portugueses souberam que a partir daquele momento o Partido Socialista iria contar com o apoio unânime da Europa e que o seu aliado soviético iria estar sob grande pressão. O aviso estava dado.
Estou convencido de que a cimeira de Estocolmo seria decisiva para o desfecho do 25 de Novembro, três meses depois. Foi uma cimeira decisiva não só do ponto de vista da opinião pública mundial, mas do ponto de vista político-militar. Representava a união ocidental entre os EUA e a Europa democrática contra a União Soviética e um aviso de que os aliados de Portugal não tolerariam que, após as eleições de 25 de Abril de 1975, o PCP instrumentalizasse as forças armadas para desferir em Portugal um novo «golpe de Praga». Significativamente, seria a primeira vez que o Mundo ocidental se uniria a sério numa acção conjunta contra o bloco de leste. Foi também um estímulo para os portugueses, que então compreenderiam que não estavam sós. Era igualmente o inicio dos grandes apoios económico-logísticos ao Partido Socialista. Numa frente unida, enquanto os embaixadores dos países ocidentais diziam, nos opíparos almoços que ofereciam aos militares em Lisboa, que as coisas seriam levadas a serio, os chefes de governo e os serviços de inteligência ocidentais diziam aos soviéticos que, depois da tomada sem resistência de Angola e Moçambique, era altura de enfrentar as realidades. “Sem esse envolvimento internacional pela democracia – diria Willy Brandt referindo-se aos resultados dessa reunião — a tentativa de golpe em Lisboa, em Novembro de 1975, não teria tão facilmente sido desmobilizada” [87].
Mas, curiosamente, apesar do grande significado desta primeira reunião, poucos sabem que ela partiu de um intenso trabalho conjunto que eu desenvolvia com o sueco Rolf Theorin, nomeado por Olof Palme, a seguir ao 25 de Abril de 1974, para comigo coordenar as relações com o PS português. Rolf Theorin, então responsável pela organização do partido sueco e conhecido amistosamente entre os seus camaradas como o «Fellini sueco» [88], devido às suas reconhecidas qualidades de realizador de eventos políticos espectaculares. Como comentava então o maior vespertino daquele país, mostrando a foto dos líderes juntos, a cimeira de Estocolmo tinha sido a “maior concentração de estadistas jamais realizada na Suécia” [89]. Era também a primeira amostra pública dos resultados do «novo» departamento internacional do PS e o início de um estilo que marcaria a Internacional Socialista durante mais de uma década. No seguimento da cimeira, Rolf Theorin, Hans Janitschek e eu preparámos um documento que seria submetido aos líderes que estiveram presentes em Estocolmo, a fim de ser aprovado numa reunião ordinária da Internacional Socialista que teria lugar em Londres a 5 de Setembro, sob os auspícios de Harold Wilson e James Callaghan. Nesse documento. datado de 27 de Agosto, eram propostas algumas «actividades práticas» que incluíam «visitas a Portugal», pelos líderes socialistas europeus. Sugeriam-se “contactos com o governo, PS, talvez outros políticos e representantes do MFA“.
Quando o documento começou a ser discutido, Mário Soares, compreendendo que «outros políticos» significava contactos com Sá Carneiro, recusou essa inclusão! Num outro parágrafo, sugeria-se que os partidos enviassem “convites a representantes do MFA e a políticos para visitarem outros países da Europa Ocidental” Aqui, uma vez mais, Mário Soares recusar-se-ia a aceitar tal sugestão! Segundo os autores do documento original “Os militares (seriam) uma realidade Política durante os próximos 3 a 5 anos” e contactos com militares e políticos portugueses da área democrática seriam perfeitamente justificáveis. Mais compreensivelmente, num parágrafo onde eram propostas “campanhas de informação e campanhas de angariação de fundos para o PS“, o líder português, atento às campanhas de desinformação e à proibição legal em relação a financiamentos estrangeiros, insistiria para que em vez de «PS» se escrevesse a palavra «democracia»! [90] Ficava-se a saber que Mário Soares era zelozo quando à exigência de exclusividade de relações com a IS e que as campanhas de angariação de fundos para o PS, não eram para o partido mas sim para a democracia.
O antigo chefe de gabinete do ministro dos negócios estrangeiros e secretário-geral do PS, Vítor Cunha Rego tivera contactos anteriores ao 25 de Abril com o chefe da CIA em Lisboa, John Morgan [91]. Após o assalto ao República e quando Carlucci adquirira a certeza de que Soares entrara no «bom caminho», seriam designados Cunha Rego e Bernardino Gomes para veicular os futuros contactos e o apoio da CIA ao PS. Com o caso República ainda fresco e tendo em conta que aquela organização considerava prioritárias as acções na Imprensa e em editoras, como o senador Edward Boland de Massachussets apuraria no final dos anos 70, foi decidido combater a predominância do PC nestes sectores. Assim nasceria a editora Perspectivas & Realidades, ao mesmo tempo que era adquirido o edifício onde iria funcionar a CEIG, Cooperaiiva de Edições e Impressão Gráfica, com a finalidade de imprimir o diário A Luta em substituição do República. O contacto americano era um «operacional» das chamadas «covert operations», ou operações clandestinas, da CIA a que chamarei apenas KC [92].
A editora Perspectivas & Realidades, hoje propriedade de João Soares, foi constituída por escritura notarial de 24 de Setembro de 1975, com um capital de 300 contos dividido em partes iguais entre João Soares e Vítor Cunha Rego. Era inicialmente co-dirigida por Bernardino Gomes e Ivone Cunha Rego, sendo o seu primeiro lançamento «O Triunfo dos Porcos», de George Orwell. Mas quando este conhecido livro foi publicado, já o PCP estava em declínio e as «P&R» acabariam por se transformar essencialmente, nos anos seguintes, na editora dos livros sem mercado dos principais dirigentes do PS, com destaque para os de Mário Soares. É hoje talvez a única «instituição» que não reverteu para o património do Partido Socialista mas seria nela que João Soares desenvolveria a sua única actividade curricular conhecida que antecedeu a presente actividade poIítico-partidária. A CEIG foi constituída por escritura notarial em 12 de Dezembro de 1975, sendo Mário Soares o primeiro signatário fundador. O capital da cooperativa era de 150 mil escudos que.evidentemente, não incluíam o valioso prédio onde a ITT em tempos imprimira as Páginas Amarelas.
No seguimento da conferência de Estocolmo, aumentaram as delegações que vieram a Portugal exprimir o seu apoio ao PS, sendo os apoios financeiros normalmente canalizados através da já referida conta na Holanda. Por vezes, contudo, o dinheiro vinha das maneiras mais improvisadas tendo eu assistido, em casa de Tito de Morais, a uma entrega por parte de uma delegação sueca que acabara de chegar que, de repente, começou a tirar maços de notas dos bolsos de cada um dos membros da delegação. Nessa altura ainda Carlos Carvalho era tesoureiro do partido, mas era ascessorado por José Manuel Duarte. A partir de certa altura Carvalho, que fora fundador do PS em Bad Munstereifel, desapareceria para sempre da cena Política, passando essa tarefa para Fernando Barroso que acabara de chegar de chegar de Moçambique, onde vivera durante muitos anos. A partir de então Fernando Barroso ocupar-se-ia desse cargo, assim como da administração financeira das fundações ligadas ao partido, até ao quarto congresso em 1981. O secretário-geral tinha entretanto saido do governo e ao ocupar-se do dia-a-dia do PS compreendera a importância das Finanças, que controlaria rigorosamente através do seu cunhado. Uma das medidas adoptadas nesta área seria a progressiva descapitalização da conta na Holanda, movimentada por José Neves e a abertura de uma conta pelo próprio secretário-geral no Bank fur Gemeinwirtschaft em Frankfurt. Essa conta a que Gunter Grunwald [93] chamaria «conta especial do Mário» só seria encerrada anos mais tarde e, pelo que consegui apurar, movimentaria somas consideráveis.

Quando Mário Soares e eu participámos no congresso do Partido Trabalhista em Blackpool, no dia 2 de Outubro, onde Mário Soares foi orador de honra, num discurso que eu fui traduzindo consecutivamente aos congressistas, já não existiam dúvidas quanto à inevitabilidade da tentativa comunista para a tomada do poder em Portugal. Também já não existiam duvidas de que Callaghan estava seguro de poder garantir o apoio anglo-americano que tinha sido discutido em vários encontros com Mário Soares. Tinham longamente conversado sobre essa possibilidade em Estocolmo, tendo este solicitado a Callaghan se estaria na disposição de mediar os apoios financeiros e de interceder para que os americanos disponibilizassem igualmente meios logísticos, no quadro de um plano anglo-americano secreto, a partir do norte de Portugal, de resistência civil e militar a um eventual “putsch” comunista.
Soares necessitava de todas as ajudas que pudesse arranjar, se quisesse demonstrar que estavam enganados aqueles que afirmavam que uma ditadura comunista era inevitável. Numa altura em que o Partido Comunista tinha mais de duzentos funcionários a tempo inteiro e o Partido Socialista não possuía mais do que dois [94], apoiados por um grupo de voluntários cheios de entusiasmo mas sem qualquer experiência. Eu pedi ajuda ao Partido Trabalhista britânico e aos sindicatos e o Tom McNally [95] contactou a sede do Partido Conservador a meu pedido, encorajando-os a estabelecer laços com outros políticos democráticos em Portugal.
Outros países membros da Internacional Socialista também ajudaram. Quando foi perguntado ao primeiro-ministro da Suécia, Olof Palme, se tais actos não constituíam uma ingerência nos assuntos internos de outro pais ele respondeu de forma particularmente robusta que era o dever de todos os Partidos Socialistas democráticos da Europa fazer todos os esforços para evitar que Portugal caísse vitima do fascismo ou do comunismo, assim se protegendo os mais básicos direitos humanos….»
“Soares e eu” — prossegue Callaghan — “tivemos encontros regulares. Compartilhamos a opinião de que a situação em Portugal era semelhante à de Praga depois da Segunda Guerra Mundial, onde um governo constituído por católicos, comunistas e socialistas tinha sido derrubado pelo Partido Comunista em 1947, com o apoio da União Soviética, resultando na exclusão compulsiva dos partidos democráticos. Soares receava que a história se viesse a repetir em Portugal, especialmente porque algumas divisões do exército estacionadas perto de Lisboa eram comandadas por oficiais que pareciam estar comprometidos com o Partido Comunista. Contudo, o exército, em geral, parecia inclinado a apoiar os partidos democráticos, assim como a força aérea e algumas unidades da marinha, se bem que outras fossem pró-comunistas. Era uma situação confusa e houve alturas em que Soares pensou que ele e outros seriam forçados a deixar a capital para se reagruparem no norte, onde o apoio democrático era forte. Durante meses, ele não se atreveu a dormir no mesmo lugar em noites consecutivas.”
“Eu fiz uso de todas as facilidades à disposição do ministério dos negócios estrangeiros para apoiar a luta pela democracia em Portugal e, conjuntamente com Mário Soares e alguns outros [96], fizemos planos para a possibilidade de, no pior dos casos, vir a ocorrer uma tentativa de golpe comunista, mas sobre a qual não seria aqui apropriado entrar em pormenores» [97].”
Esses planos que tinham a concordância da CIA, oposta que estava, no caso de Portugal, à posição do secretário de estado Henry Kissinger, passavam por um apoio logístico aéronaval no norte de Portugal aos militares anti-comunistas e às forças democráticas lideradas pelo Partido Socialista. Em Lisboa e um pouco por todo o país seria montado um esquema de segurança do PS com apoio de militares democratas que se comprometeriam a fornecer armas ao PS que por sua vez se integraria num plano global exclusivamente do foro militar. Mário Soares referiria a Callaghan que o então tenente-coronel Ramalho Eanes era o coordenador desse plano por parte dos militares, enquanto Manuel Alegre era responsável pela acção a nível partidário. No plano global estavam previstas não só acções de resistência armada como operações a desencadear pelos militares com a colaboração dos partidos a quem seriam distribuídas as armas. Também no âmbito desse plano, e porque eu estivera presente nas reuniões com Callaghan, Mário Soares dar-me-ia instruções para receber no dia 28 de Agosto em minha casa um inglês de nome «CH», que me entregaria um embrulho com dinheiro.
Aparecem, de facto, pelas 19 horas daquele dia mas, após as devidas apresentações, 0u digamos antes, precauções, que da sua parte não foram além do primeiro nome, marcou encontro comigo no dia seguinte às 11 horas. Ele próprio me confirmou que tinha ido para se assegurar de que o lugar da entrega era seguro. Conforme combinado, no dia seguinte, com a apregoada pontualidade britânica, apareceu entregando-me uma série de embrulhos que trazia dissimulados em caixas de biscoitos, dentro de uma espécie de saco/mochila de ombro. A partir daquele encontro as suas visitas ser-me-iam sempre anunciadas com a possível antecedência pelo então representante do MI6 [98] junto da embaixada em Lisboa que, por razões óbvias não revelarei, ate porque penso poder ainda estar no activo. Com excepção da sua última visita, no dia 7 de Abril de 1976, em que o convidei para almoçar num pequeno restaurante de Campo de Ourique, «CH», que habitualmente conversava pouco, sentira que tinha contribuído para vingar a sua organização das humilhantes deserções dos seus colegas Philby, Burgess e MacLean [99] e, num gesto de inesperada simpatia, dar-me-ia o seu contacto em Londres.
Tinha-se iniciado, após os primeiros apoios directos às Perspectivas & Realidades e ao jornal A Luta, o plano da «invisibilidade» norte-americana solicitado pelo secretário-geral do PS. Como Callaghan afirmaria nas suas memórias incompletas, seriam então utilizados todos os meios à disposição do “Foreign Office“, incluindo, provavelmente, a mediação e a mala diplomática da sua embaixada em Lisboa. A entrega mais dramática, e, talvez, a mais volumosa, seria a 24 de Novembro, nas vésperas da partida de Mário Soares para o Porto. Havia milícias comunistas nas ruas de Lisboa para controlar pessoas e bens e as instruções que Mário Soares me tinha dado eram no sentido de eu me dirigir com o «pacote» a sua casa, pois o seu conteúdo era necessário para esta sua segunda viagem para a capital do norte. Dirigi-me então no pequeno MGB que trouxera da Suécia à sua casa no Campo Grande. Qual não é o meu espanto, quando sou de novo obrigado a deslocar-me dali à rua da Emenda para entregar uma embalagem com dinheiro a Aires Rodrigues. Deparei então com um cenário que fazia lembrar Che Guevara e que anos mais tarde reviveria na Nicarágua que visitei a convite da Frente Sandinista, com uma missão da Internacional Socialista. Aires Rodrigues, secretário nacional responsável pela organização do Partido Socialista, rodeado por um grupo de «comandos» de metralhadora ao ombro, estava avisado de que iria chegar.
Como desconhecia o montante que estava dentro da embalagem, achei que não competia, a mim. pedir qualquer recibo. Mas mesmo que isso tivesse feito parte das minhas instruções, também não seria aquele o momento de o exigir! Em qualquer dos casos, alguns dias depois, Aires Rodrigues, entregar-me-ia voluntariamente dois papelinhos soltos, assinados por ele, com os dizeres “recebi do Rui Mateus 100 mil escudos no dia 25 de Novembro 1975 assinado (Aires Rodrigues)” e “recebi do Vítor Cunha Rego a importância de 50 mil escudos a 14 de Novembro de 1975 assinado (Aires Rodrigues)”. Aires Rodrigues, que recebera a última embalagem das minhas mãos, deve ter-me entregue por distracção o recibo da verba que Vítor Cunha Rego lhe entregara na véspera da sua primeira partida para o Porto, no dia 13 de Novembro. Naquele período, a resistência ao PCP representava um verdadeiro sorvedouro de dinheiro, que Mário Soares ia mandando entregar por intermédio dos seus colaboradores. E bem melhor do que a minha memória, os meus registos mostram as seguintes entregas em dinheiro para operações de resistência ao PCP: a 23 de Setembro, 300 contos depositados na conta da associação António Sérgio e, nesse mesmo dia, 1000 contos entregues a Gustavo Soromenho para o jornal A Luta. No dia 27 de Setembro, 1000 contos entregues ao cunhado de Mário Soares, José Manuel Duarte. Depois ao tesoureiro do PS entregaria 1000 contos a 30 de Setembro, 2000 contos a 28 de Outubro e 500 contos a 11 de Novembro. A 20 de Novembro seriam entregues quinhentos mil escudos mais. No rescaldo do 25 de Novembro, certamente para pagar despesas pendentes, seriam entregues, a 1 de Dezembro, 1800 contos à administração financeira do PS e, a 4 de Dezembro, mais 500 contos ao tesoureiro Carlos Carvalho. Evidentemente que não conheço a totalidade do conteúdo das caixas de biscoitos, nem o movimento das contas da Holanda e de Frankfurt nem, tão pouco, outras verbas relacionadas com este período, oriundas dos americanos ou as que o ex-presidente Carlos Andrés Perez da Venezuela disse ter entregue a Mário Soares. Consegui, contudo, apurar que antes da reunião de Estocolmo, Rolf Theorin mandaria transferir para a conta na Holanda, mais meio milhão de coroas suecas. Também o PSD da Dinamarca enviaria mais cerca de 300 mil escudos em Março e, em Setembro, cerca de 30 mil coroas.

Num depoimento que me foi solicitado pelo jornalista Joaquim Vieira do Expresso e que viria a ser publicado na sua revista [100] por ocasião do 20º aniversário do 25 de Abril eu mencionaria, pela primeira vez. o chamado plano «Callaghan». Em entrevistas à TVI [101] e a Miguel Sousa Tavares na SIC [102], por ocasião da referida efeméride, o presidente da República, além de se colocar no papel de principal líder da resistência à tentativa comunista de 25 de Novembro, adiantaria que, de facto, «conspirara» com Callaghan e os serviços secretos ingleses, embora negasse qualquer apoio dos norte-americanos. Em matéria de «ingerências» estrangeiras nunca perceberia qual a diferença qualitativa entre elas serem oriundas de serviços secretos ingleses e/ou americanos e qual a razão pela qual Mário Soares sempre foi tão sensível em relação aos seus contactos com a CIA! Mas o general Ramalho Eanes, um pouco esquecido pelos Meios de Comunicação Social viria a contestar o papel de Mário Soares no 25 de Novembro, afirmando poder “garantir que a versão dos mesmos apresentada pelo Dr. Mário Soares contém algumas inverdades” [103]. Chegaria mesmo a acusar o seu sucessor de pretender «adulterar a história», de não ter lido os documentos oficiais sobre o 25 de Novembro e de ter tendência para valorizar os seus contactos internacionais. Mas, segundo refere, “a verdade é que os militares trabalharam essencialmente com “matéria-prima” nacional” [104].
Fontes dadas como próximas de Eanes revelariam então ter existido, na expectativa do golpe, um «plano global de operações» que integrava um núcleo militar e um núcleo político, de que faziam pane PS, PPD e CDS. Este núcleo tudo decidira e estava alegadamente preparado para o 25 de Novembro com uma “resposta muito cuidada e serena a uma situação insustentável, de que Ramalho Eanes foi o principal protagonista” [105]. A própria ida de Mário Soares para o Porto a 25 de Novembro teria sido decidida pelo mencionado núcleo político-miliiar. Segundo se depreende das afirmações do ex-presidente da República, general Ramalho Eanes, terá sido ele a comandar as operações político-militares de resistência ao ataque comunista, enquanto Mário Soares se teria limitado a obedecer às ordens emanadas do núcleo político-militar que o general comandava. O chamado «plano global» seria de facto referido por Mário Soares nas conversas com James Callaghan, mas nele, Eanes não passava de um oficial das forças armadas anti-comunista e alinhado com as posições do Partido Socialista. Soares apresentava-se como o «chefe» político da resistência, a quem os militares democráticos obedeceriam. A reacção de Eanes parece contudo querer indicar o contrário. Edmudo Pedro, então adjunto de Manuel Alegre, secretário nacional do PS para a segurança e propaganda, refere-se ao «plano global» e ao papel de Ramalho Eanes, embora se não perceba muito bem quem chefiaria, de facto a resistência. Relega as questões de natureza Política para o seu superior hierárquico, Manuel Alegre, e menciona algumas reuniões conspiratórias com o então tenente-coronel Ramalho Eanes, que terá mesmo elaborado ele próprio um “plano operacional destinado à estrutura de segurança do PS” [106], que incluiria a entrega ao PS dc 150 metralhadores G3 na noite de 25 de Novembro. Pela descrição das suas intervenções e até pela qualidade do referido plano de segurança do PS, a ideia com que se fica é que teremos que dar graças pelo facto de os planos dos nossos então «guardiões» não terem necessitado de ser testados.
Em matéria de chefias talvez nunca se saiba quem foi, de facto, o principal responsável pela resistência, se é que tal pessoa existiu. Mas é bem provável que a ter havido chefe ele fizesse parte daquilo a que os militares próximos de Eanes chamariam «matéria-prima estrangeira». Também existe uma grande confusão sobre a distribuição de armas, que eu encontraria na sede do PS na madrugada do 25 de Novembro. Freitas do Amaral declara no seu já mencionado livro de memórias que tais armas para a resistência teriam sido distribuídas pelo «Grupo dos Nove» [107] a elementos do PS, do PPD e, aparentemente, também oferecidas a um deputado do CDS. O tenente-coronel Vasco Lourenço, um dos nove elementos desse grupo e sucessor de Otelo Saraiva de Carvalho no COPCON, afirmaria que “nunca o “Grupo dos Nove” distribuiu ou autorizou a distribuição de armas” mas segundo ele tal não queria dizer “que alguns elementos pertencentes a esse mesmo “Grupo dos Nove” que tinham um projecto próprio, como hoje está claro — não tivessem procedido a essa distribuição” [108], embora só dela tivesse tido conhecimento pela primeira vez após a prisão de Edmundo Pedro [109]. Afirma ainda que a distribuição das armas aos partidos teria tido a autorização de Tomé Pinto [110] e a cobertura de Ramalho Eanes.
Situação curiosa da personalidade destes dois auto-proclamados «líderes da resistência», que reivindicariam para si, cada um a sua maneira, vinte anos depois, os louros da vitória do 25 de Novembro, mas deixariam Edmundo Pedro ser detido e preso durante vários meses sem que ninguém então mostrasse igual coragem para se co-responsabilizar pela resistência de que as armas encontradas na posse de Edmundo Pedro eram um testemunho. Segundo Edmundo Pedro, o general Ramalho Eanes ter-lhe-ia mandado entregar, a 25 de Novembro, 150 metralhadoras G3, mas este fala do «plano global de operações» de que terá sido o principal protagonista, sem nunca levantar um dedo em defesa do seu «companheiro de armas» de então. O próprio Mário Soares, que 20 anos depois admitiria ter conspirado com os serviços secretos ingleses e era o responsável máximo do PS, quando Edmundo Pedro foi detido, na altura disse nada saber do assunto. De facto, na reunião do secretariado nacional convocada de emergência para a residência de Mário Soares no Campo Grande, na própria manhã da detenção — a 11 de Janeiro – e a que esteve presente também Manuel Alegre, seria decidido que «ninguém» sabia do assunto. Eu que. de facto, tinha visto armas na rua da Emenda quando ali entregara um pacote de dinheiro a Aires Rodrigues, abordei o assunto. Logo seria explicado que a detenção do nosso colega do secretariado nacional estaria alegadamente associada a acções de contrabando de electrodomésticos e que as armas poderiam não ter nada que ver com as armas do 25 de Novembro. Inocentemente acreditei que Soares, então primeiro-ministro, tivesse informações concretas e autorizadas que justificassem a detenção de Edmundo Pedro. Mas Manuel Alegre, que Edmundo Pedro admirava profundamente, não contribuiria com nenhum esclarecimento em abono do seu amigo. Para cúmulo da hipocrisia e do «salve-se quem puder» que caracterizava a direcção socialista, o secretariado nacional emitiria mesmo um comunicado afirmando que as armas “apreendidas decerto se (relacionavam) com esse período difícil da vida portuguesa. A lei, porem, é igual para todos os portugueses” não deixando mesmo o secretariado nacional “de reprovar, no plano político, um comportamento de que não tinha conhecimento e a que, em absoluto, (era) alheio” [111].
Edmundo Pedro não era só membro do secretariado nacional do PS. Era, na altura em que foi detido, deputado e membro do conselho de administração da RTP. Mas, enquanto anti-fascista, desde os 13 anos de idade que conhecera várias prisões políticas e passara quase uma década no campo do Tarrafal. Depois da sua aberrante detenção, em Janeiro de 1978, ainda passaria mais seis meses na prisão, por não querer contar a verdade sobre as armas. Embora não morresse de amores pelo presidente Ramalho Eanes receava comprometer o secretário-geral do seu partido, então primeiro-ministro. Este. por sua vez, com receio de ser comprometido, nunca sentiu necessidade de «obrigar» Edmundo Pedro a revelar toda a verdade que incluía, obviamente, a co-responsabilização dos então presidente da República e primeiro-ministro no «processo das armas», para a resistência a tentativa de tomada de poder pelo PCP e forças da extrema-esquerda. Mas, vinte anos depois, ambos apareceriam a querer protagonizar a liderança daquele processo. Absolvido em Novembro de 1978, Edmundo Pedro seria, ironicamente um dos raros heróis do 25 de Novembro e o primeiro preso político do regime democrático que o 25 de Novembro viabilizara!
O que foi, afinal de contas, o 25 de Novembro e porque razão terá o PCP à última hora retrocedido, permitindo que as forças democráticas saíssem vencedoras? Todas as análises credíveis dos últimos vinte anos convergem unicamente na existência de uma tentativa de golpe de estado por uma parte das forças armadas, com o objectivo de tomar 0 poder em Portugal. O relatório preliminar sobre a natureza do «golpe», considera terem as acções servido «a linha política PCP/FUR/UDP», enquanto “a actuação desencadeada pelas pessoas envolvidas nos acontecimentos do 25 de Novembro só poderia enquadrar-se, em princípio, nos crimes” de “rebelião armada, motim ou levantamento” ou de “conjura ou conspiração e sedição”. Este relatório executado em condições relativamente intranquilas e sob o espectro das forças vitoriosas acabaria por afastar o crime de “rebelião armada, motim ou levantamento”, concluindo ter havido uma “conjuração ou conspiração para a perpetração de crimes contra a segurança interior do Estado” [112].
No dia 7 de Outubro, o PCP manda cercar o ministério do trabalho, obrigando o governo a ceder às exigências dos trabalhadores. No dia 9, o PCP acusa o governo de reaccionário e dá luz verde à «contra-ofensiva das forças populares». No dia 7 de Novembro, o conselho da revolução manda os pára-quedistas destruir o emissor da Rádio Renascença e no dia 13 são sequestrados o primeiro-ministro e os deputados à assembleia constituinte. No final do sequestro, que duraria 36 horas, os deputados do PCP, que durante o acontecimento em si gozariam de um tratamento especial, foram aplaudidos à saída. Seguir-se-ia uma imponente manifestação do PCP com a extrema-esquerda contra o governo. No dia 23, o então major Melo Antunes, um dos principais elementos do «Grupo dos Nove» revelava à revista Nouvel Observateur que “o PCP (preparava) a tomada do poder” [113] contra a democracia, enquanto a intersindical, afecta ao PCP, anunciava uma greve geral para o dia 25 de Novembro.
O PS reúne no domingo, dia 23, na alameda D. Afonso Henriques, um dos maiores comícios de sempre, a fim de exigir uma clarificação por parte do presidente Costa Gomes, afecto ao PCP. Na madrugada do dia 25, enquanto as sedes do PS, armadas por elementos do «Grupo dos Nove», se preparam para o confronto, o secretário-geral viajaria para a cidade do Porto com a sua família e com o responsável pela segurança do PS, Manuel Alegre. Ao mesmo tempo unidades pára-quedistas iniciavam a ocupação de todas as bases aéreas à volta de Lisboa. A tentativa de golpe de estado estava em plena marcha, mas o conselho da revolução só declararia a sua oposição ao golpe em curso às 18 horas e, só às 21 horas, o presidente Costa Gomes declararia o estado de sítio. Depois de ter testado a situação, encorajando ao longo de meses a insurreição e lançando as suas «lebres» para o assalto, o PCP e as forças militares que lhe eram fiéis aguardariam em “stand-by“. Mas de repente, com o golpe em curso e para grande desilusão de Otelo e dos grupos de extrema-esquerda que tinham encorajado a avançar, o presidente Costa Gomes chamaria Otelo ao Palácio de Belém onde ficaria «detido» e o PCP retirava-se da mesma forma inconspícua com que tinha entrado nesta tentativa de tomada de poder. No dia 26 o major Dinis de Almeida é igualmente detido no Palácio de Belém e os soldados revoltosos começam a render-se.
Mas, nesse dia, o major Melo Antunes, em evidente contraste com as declarações que fizera três dias antes, surpreenderia o país ao declarar perante as câmaras da RTP, que “a participação do Partido Comunista Português na construção do socialismo (era) indispensável”. Na versão da desiludida extrema-esquerda, perante o desmantelamento das operações golpistas, o PCP manter-se-ia “imperturbável, jogando ao máximo, e uma vez mais, na defesa desesperada dos escassos postos de poder que nessa altura possuía, nomeadamente no governo” [114]. Terá sido o comité de apoio à democracia em Portugal que “desenvolveu uma importante actuação nos meios políticos e diplomáticos internacionais, bem como junto da Imprensa internacional de maior peso” tendo o “acto de maior relevo do referido comité (sido) um encontro pessoal que (dirigentes socialistas europeus) tiveram com o líder soviético de então, Brejnev, a quem declararam considerar intolerável o que se estava a passar em Portugal e ameaçaram denunciar os acordos de Helsínquia se os comunistas tomassem o poder pela força em Portugal” [115].

Leonid Brezhnev, o todo poderoso secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, terá mesmo “aconselhado moderação ao seu camarada e amigo Álvaro Cunhal” [116].
O “comité de solidariedade com a democracia e o socialismo em Portugal“, lançado por Olof Palme, em Estocolmo, no dia 2 de Agosto e que Rolf Theorin e eu concebemos ao longo de muitas semanas de preparação, não pode contudo, de modo algum, ser isolado do chamado «plano Callaghan». A partir de Maio, uma vez conseguido o concurso do Partido Socialista para travar o avanço dos comunistas, era evidente que tinha vencido a tese de Frank Carlucci que, assim, conseguiria convencer a CIA e o departamento de estado a impedir que Portugal se transformasse, mesmo que temporariamente, numa zona de influência soviética. Os socialistas europeus, perante a determinação dos EUA, não teriam remédio senão acompanhá-los, tanto mais que o PS se mostrava disponível para então encabeçar a oposição ao PC. A 25 de Novembro já Moçambique e Angola tinham adquirido a sua independência e, no que era essencial para a co-relação de forças entre a União Soviética e o Ocidente, toda a descolonização das ex-colónias portuguesas (com excepção de Timor) correra de modo favorável aos soviéticos. O que era fundamental para a estratégia mundial daquela potência, que até então não tinha tido grande êxito de penetração naquele continente. Portugal era membro da NATO. Os acordos de Helsínquia, no momento em que a União Soviética estava mais interessada em África e na América Latina, também pesavam em Moscovo que, em 1975, pretendia melhorar as relações com os países europeus de forma a deles obter uma posição mais favorável nas discussões com a administração norte-americana sobre o desarmamento na Europa. Quando o comité liderado por Olof Palme declara a sua solidariedade ao PS, os socialistas estão à frente de governos na Grã-Bretanha, Alemanha, Holanda, Bélgica, Áustria, Dinamarca, Noruega, Suécia e Finlândia e para a União Soviética era prioritário aliciar os socialistas no poder na Europa para a sua tese sobre o desarmamento nuclear unilateral. O ambiente em Moscovo não era assim propício a fomentar uma nova «Praga» num país da NATO. E, finalmente, e talvez, principalmente, porque o chamado «plano Callaghan» envolvia a firme decisão de participação de meios logísticos «clandestinos» da Grã-Bretanha e dos EUA, do MI6 e da CIA, para apoiar as forças democráticas portuguesas que Mário Soares reclamava liderar.
Os Estados Unidos viam com apreensão o que se passava em Portugal e estavam convencidos de que a União Soviética, depois da descolonização, continuava a apoiar as pretensões do PCP, desde que este prosseguisse na consolidação das suas conquistas sem sobressaltar as relações leste-oeste. Os soviéticos estavam convencidos de que Cunhal tinha em Portugal as condições político-militares para ir aumentando progressivamente o controlo sobre o país dado o aparente desinteresse que Kissinger parecia revelar em relação a Portugal, irreversibilizando as suas «conquistas» através de grupos de extrema-esquerda e instrumentalizando militares «revolucionários» sem comprometer os objectivos globais da União Soviética. Para os americanos, até à reacção de Salgado Zenha em Janeiro de 1975, momento em que Frank Carlucci também chegaria a Portugal, o PS demonstrava todos os sintomas de um partido alhinhado com o PC. Mas após a reacção de Zenha, a co-relação de forças rapidamente começaria a modificar-se, verificando-se então uma cada vez maior adesão popular a um movimento anti-comunista em Portugal. Após a humilhação a que fora sujeito no estádio primeiro de Maio, Soares, que geralmente reage violentamente quando o seu orgulho é ferido, verifica que o PS cada vez mais se identifica com Zenha e, no último momento, reconhece que ou aceita a ajuda e a orientação de Carlucci ou será ultrapassado. Quando os socialistas europeus, a partir de Estocolmo, aderem à luta do PS e dos americanos, a União Soviética sentir-se-á colocada entre a espada e a parede. Deixa de ser uma luta anti-imperialista, de conquista de terreno aos EUA, para se transformar num potencial conflito no próprio teatro europeu. A partir de então, a radicalização do processo em Portugal seria sempre favorável ao PS e à direita em geral. E o recurso que o PCP fazia da extrema-esquerda começaria a funcionar exactamente ao contrário. Foi isso que o PCP compreendeu na madrugada de 25 de Novembro. Daí a sua rendição condicional de última hora, bem testemunhada pela súbita mudança de linguagem do então major Melo Antunes.
Se o PCP se não tivesse retirado do golpe e persistisse em tomar o poder pela força, teria que, a partir das primeiras conquistas dos pára-quedistas, mandar avançar em força os seus aliados militares e a intersindical. Em termos imediatistas a força dos militares aliados ao PC e da intersindical seria imparável e de nada valeria o chamado «plano global de operações». Mas o PC estava ao corrente de que à sua fácil ocupação de Lisboa corresponderia o chamado plano Callaghan a partir do norte do país. No âmbito deste, depois de identificadas as forças civis e militares anti-comunistas, a CIA e o MI6 no seu conjunto, lançariam elas próprias uma série de operações clandestinas, ao mesmo tempo que garantiriam o apoio logístico aos militares portugueses fiéis ao regime democrático. Seriam utilizados meios aéreos e marítimos para abastecimento e manutenção da resistência portuguesa na zona norte do país e efectuados raids aéreos para imobilizar as posições comunistas na zona de Lisboa. O chamado «plano Callaghan» negociado com Mário Soares nunca viria felizmente a ser posto em prática, mas as recriminações de Eanes a Soares e as tentativas de ambos para reclamarem para si, duas décadas depois, os louros da vitória do 25 de Novembro, dão uma boa imagem da desorganização e da ineficácia político-militar de então.
Alguns anos depois, a CIA conduziria no Panamá uma operação semelhante à que esteve planeada para Portugal, “para protecção dos interesses e dos cidadãos americanos e para o estabelecimento de um governo democrático e amigo” [117]. O cérebro desta operação, Colin Powel [118], tinha sido assistente de Frank Carlucci no conselho de segurança nacional da Casa Branca. Guillermo Endara, líder da oposição ao regime musculado do narco-traficante panamiano, Manuel Noriega [119], declarara-se vencedor das eleições presidenciais de 7 de Maio de 1989, mas que viriam a ser anuladas por Noriega. Assim, iniciaria negociações com a CIA para uma intervenção no seu país e concordaria com um plano para ser empossado em segredo a fim de legitimar a invasão dos EUA, a quem «pediria» formalmente para intervir. Quinze minutos após ter tomado posse, iniciar-se-ia a operação «Just Cause» [120].
Em Portugal, o PCP facilmente perceberia que com os apoios garantidos a Mário Soares seria extremamente difícil manter por muito tempo o controlo militar de Lisboa, sem apoios semelhantes dos seus aliados de leste. E o envio de tais apoios, para além de técnica e militarmente complicado para a União Soviética, desencadearia a legitimação de uma acção militar aberta por parte dos EUA e de forças da NATO. Em nome da democracia, como aconteceu recentemente no Haiti. E a União Soviética não estava pura e simplesmente preparada para encetar um tal conflito na Europa Ocidental. O retrocesso do PC, depois de Cunhal ter garantido solenemente que em Portugal nunca haveria uma democracia parlamentar [121], deveu-se, sobretudo, à impossibilidade de o PCP conseguir ver garantidos os meios logísticos que o PS já tinha conseguido. E não, seguramente, por receio do recentemente conhecido «plano global de operações», aparentemente chefiado por Ramalho Eanes, de que faria parte “Machado Rodrigues, posteriormente vereador da câmara de Lisboa (que) foi o interlocutor socialista daquele movimento (e) era uma espécie de general do PS“!! [122]
Mesmo constatando a actual amnésia generalizada das condições político-militares que imperavam em Portugal, em Novembro de 1975, é fácil compreender que embora controlando praticamente todos os sectores vitais do país, também os comunistas seriam obrigados a enfrentar as realidades. Como hoje, já há duas décadas não existiam em Portugal condições de conduzir o nosso país, de forma duradoura, para uma
situação de não alinhamento internacional e, muito menos, de o transformar num aliado do Pacto de Varsóvia. Álvaro Cunhal, homem de reconhecida inteligência e um dos grandes estrategos do Movimento Comunista Internacional, compreendeu as realidades da geo-estratégia e escolheu o «pássaro na mão» que representava a legalidade, quebrando a promessa que fizera, em detrimento do «apoio» do PCP à tese de Henry Kissinger. Ao escolher a primeira opção daria provas da sua perspicácia embora, provavelmente, não tenha pensado que ao fazê-lo iria dar argumentos à auto-propulsão dos heróis do 25 de Novembro. Mas também é possível hoje admitir que o que distinguia Frank Carlucci de Henry Kissinger fosse uma mera diferença de meios para atingir o mesmo objectivo. A diferença que separa Aleksander Kerensky de Guillermo Endara.
Afinal, segundo Mário Soares diria anos depois a Tony Benn, num encontro em que eu estaria igualmente presente, “os socialistas estavam em retirada” e não poderiam sobreviver “sem a protecção dos americanos” [123].
NOTAS:
[1] Diogo Freitas do Amaral. «O Antigo Regime e a Revolução». pp. 151-152, Bertrand/Nomen, Lisboa, 1995.
[2] José Freire Antunes, ob. cit., p. 235.
[3] Teresa de Sousa, Mário Soares, p. 65, Nova Cultural, Lisboa, 1988.
[4] Diogo Freitas do Amaral. «O Antigo Regime e a Revolução». ed. cit., p. 142.
[5] José Freire Antunes. «Os Americanos e Portugal». ed.cit..p. 319.
[6] O Conselho Mundial da Paz ou «World Peace Council» era considerado a principal organização frentista da Política externa soviética, embora aparecesse como uma organização internacional apartidária. Era presidido por um conhecido comunista indiano, Rommesh Chandra, e atraía inúmeros desiludidos da Política e comunistas envergonhados. Era financiado pelo PCUS e defendia sempre, no plano internacional, as posições da União Soviética.
[7] O então coronel Firmino Miguel era apontado como sendo amigo íntimo do general Spínola, sendo nomeado ministro da defesa.
[8] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed. cit, p. 25.
[9] João HaII Themido. «Dez Anos em Washington». 1971-1981, p. 178, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1995.
[10] José Freire Antunes. «Os Americanos e Portugal». ed. cit., p. 322.
[11] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed. cit., p. 26.
[12] João Hall Themido. «Dez Anos em Washington». ed. cit., p. 178.
[13] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed. cit., p. 26.
[14] João Hall Themido. «Dez Anos em Washington». ed. cit., p. 178.
[15] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed. cit., p. 26
[16] José Freire Antunes, ibidem, p. 323.
[17] Mário Soares, ibidem, p. 26.
[18] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed.cit, p. 61.
[19] Idem ,p. 77.
[20] Tony Benn. «The End of an Era». ob. cit., p. 108.
[21] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». p. 62.
[22] Idem, p. 62.
[23] José Freire Antunes, ob. cit., p. 318.
[24] António de Spínola. «País Sem Rumo». p. 45, Scire, Lisboa, 1978.
[25] José Freire Antunes, ob. cit., p. 324.
[26] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed.cit., p.27.
[27] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed.cit.,p.27.
[28] Diogo Freitas do Amaral. «O Antigo Regime e a Revolução». ed. cit., p. 174.
[29] Sten Andersson. «I De Lugnaste Vatten». pp. 218-221, Tidens Forlag, Estocolmo, 1993.
[30] Max Wery. «E assim murcharam os cravos». p. 139, Fragmentos. Lisboa,1994. Max Wery era embaixador da Bélgica em Portugal quando ocorreu 0 25 de Abril. Seguiria apaixonadamente e de perto todos os acontecimentos e era extremamente popular entre políticos e diplomatas. Enquanto foi vivo tive a honra de ser um dos seus amigos.
[31] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed. cit. pp. 77-8.
[32] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed. cit. pp. 77-8.
[33] Informação da LO, Confederação Sindical da Noruega.
[34] Informação do Partido Social-Democrata da Dinamarca.
[35] Informação do Partido Social-Democrata da Suécia, de 16 de Janeiro de 1976.
[36] Carta do secretário-geral do PS a Mu’Ammar el Kadhafi.
[37] «The Ugly American» de William J. Lederer e Eugene Bardick, publicado em 1958, relata e critica a cooperação dos EUA com o Terceiro Mundo que acusaria de perpetuar crimes ditatoriais e a corrupção em vez de contribuir para o desenvolvimento. Tornar-se-ia um imediato best-seller e um dos argumentos de campanha de John Kennedy.
[38] Mário Soares. «Portugal: Que Revoluçào?». ed. cit. pp. 77.
[39] Duzentas mil coroas representavam, em 1974, cerca de mil e quinhentos contos.
[40] Carta de Manuel Tito de Morais de 6 de Dezembro de 1974.
[41] O Público de 22 de Maio de 1994.
[42] António de Spínola. «País Sem Rumo». ed. cit. p 115.
[43] Diogo Freita do Amaral. «O Antigo Regime e a Revolução». ed. cit. p. 203.
[44] Frase frequentemente utilizada para ilustrar situações de favorvecimento e compadrio, que em tradução literal significa “se coçares as minhas costas eu coçarei as tuas”.
[45] República, de 3 de Janeiro de 1975.
[46] Aleksander Kerensky foi primeiro-ministro do primeiro governo provisório russo e de certo modo responsabilizado pelo acesso dos bolcheviques ao poder, em virtude da sua fraqueza.
[47] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed. cit., p.73.
[48] Diogo Freitas do Amaral. «O Antigo Regime e a Revolução». ed. cit., p.276.
[49] Francisco Salgado Zenha. «Por Uma política de concórdia e grandeza nacional». prefácio de Mário Mesquita, Perspectivas & Realidades, Lisboa, 1976.
[50] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed. cit., p.78.
[51] Philip Agee e Louis Wolf. «Dirty Work – The CIA in Western Europe». p.67, Lyle Sluart Inc., Secaucus NJ, 1978.
[52] Deputy Director of the office of management and budget.
[53] John Ranelach. «CIA A History». p.169. BBC Books, Londres, 1991.
[54] Richard Nixon. «The Memoirs of Richard Nixon». p.351. Grosset & Dunlap, Nova Iorque, 1978.
[55] Richard Nixon. «The Memoirs of Richard Nixon». p.351. Grosset & Dunlap, Nova Iorque, 1978.
[56] John Ranelach. «CIA A History». ed. cit, p.170.
[57] Foi nomeado subdirector da CIA pelo presidente Nixon em 1972, depois de uma longa carreira diplomática como adido militar na Itália, Brasil e França. O presidente Regan designá-lo-ia em 1981 para embaixador na Nações Unidas.
[58] Vermon Walters. «Silent Missions». p.609, Doubleday, Nova Iorque, 1978.
[59] Vermon Walters. «Silent Missions
[60] Confederação sindical dos EUA, American Federation of Labor Congress of Industrial Organisations.
[61] Philip Agee e Louis Wolf. «Dirty Work…». ed. cit, p.66.
[62] Conversa com Irving Brown durante a conferência patrocinada pela AFL/CIO em Lisboa, de 28 a 30 de Junho de 1984.
[63] Mário Soares. «Portugal Que Revolução?». ed. cit., p.93.
[64] Idem, p.93.
[65] “William Colby: O que quer que lhe diga sobre Portugal? É razoável concluir que, depois trabalhamos muito duramente sobre o que estava a acontecer. Oriana Fallaci: Uma ajudazinha aqui, uma ajudazinha acolá? William Colby: No comment. Nem sobre Portugal nem sobre Itália. Oriana Fallaci: Até que ponto, como CIA, o senhor trabalhava ou trabalha em colaboração com a embaixada dos EUA? William Colby: Trabalhava muito com a embaixada, como é obvio…trabalha-se sempre com as embaixadas.” Entrevista reproduzida pelo semanário Expresso, de 20 de Março de 1976.
[66] Encontro na residência do ministro-conselheiro da embaixada dos EUA, Wesley Egan, então encarregado de negócios.
[67] Logo após a sua chegada a Portugal, em Janeiro de 1975, Otelo Saraiva de Carvalho, então chefe do COPCON, acusaria o embaixador de ser da CIA, razão pela qual se não responsabilizaria pela sua segurança cm Portugal! Carlucci em vez de reagir negativamente, convidaria Otelo para um encontro na embaixada, passando, a partir daí, a manter «boas relações».
[68] André Malraux descreveria a situação em Portugal após o 25 de Novembro de 1975 como sendo a primeira vitória dos mencheviques sobre os bolcheviques.
[69] Depois de Lisboa, seria embaixador no Uruguai, na Nicarágua e no Brasil.
[70] Kissinger faria esta afirmação no dia 26 de Janeiro de 1976, no departamento de estado.
[71] Expresso, de 22 de Fevereiro de 1975.
[72] João Hall Themido. «Dez anos em Washington». ed. cit., p.189.
[73] Philip Ziegler. «Wilson, The Authorized Life». p.470. Harper Collins, Londres, 1995.
[74] Idem, p.477.
[75] Tony Benn. «Against the Tide». ed. cit., p.314.
[76] Tony Benn. «Against the Tide». ed. cit., p.318.
[77] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed. cit., p.26.
[78] Ver pág.68, República, de 3 de Janeiro de 1975.
[79] David Leigh. «The Wilson Plot». Londres, 1988.
[80] James Callaghan. «Time and Chance». pp 361-2. William Collins Sons & Co., Glasgow, 1987.
[81] Diogo Freitas do Amaral, ob. cit., p.337.
[82] César Oliveira. «Os Anos Decisivos». ed. cit., p.171.
[83] Mário Soares. «Portugal: Que Revolução?». ed. cit. p.93.
[84] Callaghan referia-se à saída do PS e o do PPD do quarto governo provisório a, respectivamente, 10 e 17 de Julho de 1975.
[85] Tony Benn. «Against the Tide». ed. cit., p. 423.
[86] Svenska Dugbladet, de 1 de Agosto de 1975.
[87] Willy Brandt. «Minnen». ed. cit., p.325.
[88] Sten Andersson. «I de Lugnast Vallen». ed. cit., p.315.
[89] Aftonbladet, de 3 de Agosto de 1975.
[90] Proposta do “programa de apoio do comité de amizade e solidariedade com a democracia e o socialismo em Portugal“, de 27 Agosto de 1975.
[91] José Freire Antunes. «Os americanos e Portugal». ed. cit., p.286.
[92] KC não qus ser identificado quando lhe pedi autorização para falar sobre este assunto, nem tão pouco pretendeu que eu sobre ele falasse. Penso respeitar o seu desejo dentro do possível, ao revelar parte da sua mensagem transmitida por um outro colega seu, que também não identificarei: “O “K” informa que não tem autorização para falar sobre assuntos em que ele esteve envolvido, mesmo assuntos de natureza histórica. Foi algo de que estamos orgulhosos mas escrever sobre tal assunto, mesmo ao fim de tantos anos, poderia conduzir a consequências indesejáveis que a ninguém serviriam. Qualquer livro que escrevas será sempre um “best-seller“, sem necessidade desta referência histórica não obstante o seu grande significado”, (carta particular enviada por telefax em 8 de Junho de 1992).
[93] Gunter Grunwald foi durante muitos anos secretário-geral da fundação, Friedrich Ebert em Bona.
[94] A imagem dada a Callaghan de que o PS só tinha então dois funcionários, era evidentemente exagerada.
[95] Tom McNally era então o secretário internacional do Labour Party. Tinha estado em Portugal, em 1969, com a delegação que a PIDE expulsou do nosso pais.
[96] Referência à participação americana no plano
[97] James Callaghan. «Time and Chance». ed. cit., pp.360-2.
[98] MI6 é o equivalente britânico da CIA. Antes da guerra os serviços secretos britânicos eram dirigidos pelos militares, correspondendo então o MI6 à secção 6 da inteligência militar
[99] Kim Philby, Guy Burgess e Donald Maclean eram proeminentes agentes do MI6 que trabalhavam para os serviços secretos da União Soviética, KGB.
[100] Expresso, revista de 23 de Abril de 1994.
[101] Entrevista de Mário Soares à TVI no dia 25 de Abril de 1994.
[102] Entrevista a Mário Soares na SIC no dia 26 de Abril de 1994.
[103] Semanário O Independente de 29 de Abril 1994.
[104] Semanário O Independente de 29 de Abril 1994.
[105] Semanário O Independente de 29 de Abril 1994.
[106] Edmundo Pedro. «O Processo das Armas». p.25, Editorial Inquérito, Lisboa, 1987.
[107] O «Grupo dos Nove» inicialmente lançado por Melo Antunes, Vasco Lourenço, Franco Charais, Pezarat Correia, Vítor Alves, Vítor Crespo, Sousa e Castro, Costa Neves e Canto e Castro constitui-se como alternativa apartidária no campo militar. A ele adeririam a grande maioria dos oficiais das forças armadas, incluindo Ramalho Eanes. Os partidos democráticos soladarizar-se-iam com estes militares que, em muitos casos, mantinham as melhores relações com o embaixador dos USA, Frank Carlucci.
[108] Declarações de Vasco Lourenço à revista Expresso, de 3 de Junho de 1995.
[109] Edmundo Pedro seria detido na madrugada de 11 de Janeiro de 1978, na posse de 36 das 150 metralhadoras G3 entregues ao PS.
[110] Referência ao general Tomé Pinto.
[111] Comunicado do secretariado nacional do Partido Socialista, de 11 de Janeiro de 1978.
[112] Relatório preliminar oficial do 25 de Novembro, de 12 de Janeiro 1976.
[113] Comércio do Porto, de 23 de Novembro 1975.
[114] Avelino Rodrigues, Cesário Borga e Mário Cardoso. «Portugal Depois de Abril». p.294, Intervoz, Lisboa, 1976.
[115] Diogo Freitas do Amaral, ob. cit., p.508.
[116] Diogo Freitas do Amaral, ob. cit., p.508.
[117] Bob Woodward. «The Commanders». p.85, Simon & Schuster, Londres, 1991.
[118] Depois de ter sido assistente de Frank Carlucci, Colin Powel foi nomeado chefe do estado-maior das forças armadas dos EUA, notabilizando-se durante a invasão contra o Iraque em 1990, que teria o nome de código «Desert Storm».
[119] O general Manuel Noriega era o ditador do Panamá e tinha anteriormente tido ligações com a CIA. Após tomar o poder aproximou-se de Fidel Castro e dos Sandinistas e era suspeito de dirigir uma rede internacional de tráfico de drogas. Depois da invasão americana, em 19 de Dezembro de 1989, seria preso e julgado nos EUA por tráfico de drogas, encontrando-se actualmente numa prisão americana.
[120] «Just Cause» ou justa causa foi o nome de código da operação no Panamá, que teve lugar a 19 de Dezembro de 1989.
[121] Álvaro Cunhal declarou em 1975 à jornalista italiana Oriana Fallacci que em Portugal nunca haveria um regime parlamentar.
[122] Semanário O Independente, de 29 de Abril de 1994.
[123] Tony Benn. «The End of an Era». ed cit., p.108.
Fonte: Livro «Contos Proibidos – Memórias de um PS Desconhecido» de Rui Mateus