Os corpos dos pântanos do Norte da Europa

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O Homem de Tollund, encontrado na Dinamarca
O Homem de Tollund, encontrado na Dinamarca

Ao longo dos últimos trezentos anos, foram descobertos corpos humanos incrivelmente bem preservados nos desolados pântanos de turfa da Grã-Bretanha, Irlanda, Holanda, Alemanha e Dinamarca. A maioria destas múmias do pântano ou cadáveres do pântano foi datada entre o Século I a. C. e o Século IV d. C., apesar de os mais antigos serem do período mesolítico (há cerca de dez mil anos). Também existem alguns exemplares medievais e modernos. Os incríveis poderes preservadores dos pântanos impediram a decomposição destes restos mortais antigos de uma forma tão eficaz que, apesar de o esqueleto geralmente não resistir, podemos ainda observar a pele, os órgãos internos, o estômago (por vezes ainda com restos da última refeição), os olhos, o cérebro e o cabelo.

Um pântano consiste em cerca de noventa por cento de água, que geralmente contém grandes quantidades de turfa ácida (matéria vegetal em decomposição). Um ambiente destes não permite o crescimento de bactérias, desta forma os materiais orgânicos tais como cadáveres, submersos nesta água pantanosa, não são destruídos. Certos ácidos contidos na água, juntamente com a baixa temperatura e a falta de oxigénio, também entram em acção preservando e escurecendo a pele, o que explica a tez acastanhada da maior parte dos corpos. Mas como e por que vieram estas pessoas encontrar a morte em pântanos remotos há milhares de anos? O que sabemos é que uma grande parte dos corpos recuperados mostra indícios de violência extrema, incluindo sinais de tortura e homicídio.

A mais famosa destas múmias do pântano talvez seja a do Homem de Tollund, encontrado em Maio de 1950, perto da aldeia de Tollund, na Dinamarca, por dois irmãos que cortavam turfa. Quando aos dois homens se lhes deparou a cara da múmia, pensaram que se tratava de uma vítima de um homicídio recente e contactaram imediatamente a polícia local. Mas uma posterior datação por radiocarbono do cabelo do Homem de Tollund demonstrou que havia morrido por volta de 350 a. C. Durante a remoção do corpo do local onde jazia, um dos ajudantes teve um colapso e morreu de ataque cardíaco. Talvez, como sugeriu o falecido arqueólogo dinamarquês P. V. Glob, o pântano reclamasse uma vida por outra. O corpo do Homem de Tollund tinha sido colocado em posição fetal aquando da sua morte e não tinha roupa além de um chapéu pontiagudo de pele e de um cinto de couro. O seu cabelo fora cortado muito curto e havia barba claramente visível no queixo e no lábio superior. Tinha uma corda, feita de duas tiras de couro entrelaçadas, firmemente enrolada à volta do pescoço e acredita-se que foi provavelmente enforcado ou garrotado com ela. Testes efectuados ao conteúdo do seu estômago revelaram que a última refeição do Homem de Tollund tinha sido uma espécie de sopa de vegetais e sementes. Um facto interessante acerca da sopa é que os seus ingredientes eram uma mistura de vários tipos de sementes selvagens e cultivadas e incluía uma quantidade tão extraordinária de erva persicária que deve ter sido colhida de propósito para o efeito. Uma hipótese é que a persicária era um ingrediente importante numa última refeição, que faria parte de um ritual sagrado de execução. Esta possibilidade também é sugerida pela cuidadosa colocação do corpo e pelo facto de os olhos e a boca terem sido fechados.

Corpos nos Pântanos
Rosto de um homem encontrado nos Pântanos

Foram encontrados cerca de quinhentos corpos nos pântanos da Dinamarca, apesar de não haver novos achados desde os anos cinquenta. A Mulher de Huldremose, encontrada num pântano perto de Ramten, na Jutelândia, em 1879, foi descoberta com duas capas de pele, uma saia de lã, um lenço e uma faixa no cabelo. Os exames feitos ao corpo revelaram o macabro pormenor de que os seus braços e pernas tinham sido repetidamente golpeados, estando um braço completamente decepado, antes de ter sido depositada na turfa. A mulher sofreu esta morte brutal algures entre 160 a. C. e 340 d. C.

Em 1952, perto de Windeby, em Schleswig-Holstein, no Norte da Alemanha, dois corpos foram encontrados num pequeno pântano. O primeiro acabou por revelar-se como sendo o de um homem que fora estrangulado e depois deitado ao pântano, cujo corpo fora mantido no fundo por estacas afiadas presas firmemente na turfa à sua volta. O segundo corpo era o de uma rapariga jovem com cerca de catorze anos, datado por volta do Século I d. C. A rapariga tinha sido vendada com uma tira de pano antes de a afogarem no pântano e o seu corpo estava preso por uma grande pedra e ramos de árvore.

Uma descoberta mais recente no Norte da Alemanha, em Uchte, na Baixa Saxónia, foi o que se pensou tratar de uma adolescente vítima de homicídio. Quando os cientistas examinaram o corpo, em Janeiro de 2005, identificaram-no como sendo de uma jovem entre os dezasseis e os vinte anos, que tinha sido depositada no pântano por volta de 650 a. C. Posteriormente tornou-se conhecida como a Rapariga do Pântano de Uchte. Até o cabelo estava preservado, apesar de os arqueólogos não terem a certeza se era originalmente louro ou preto, pois a turfa torna todo o cabelo avermelhado.

O achado mais antigo de uma múmia do pântano alguma vez registado na Europa é o do cadáver de Kibbelgaarn, na Holanda, desenterrado em 1791. Nos Séculos XIX e XX foram feitos centenas de achados na Holanda. Em 1987, o Museu Drents, em Assen, iniciou um projecto para a investigação sistemática das múmias do pântano da sua colecção, que revelou informações fascinantes e vitais acerca da sua idade, sexo, compleição, dieta, doenças, causa de morte e roupa.

Corpos nos Pântanos
Corpo nos Pântanos

Em Inglaterra, devido à grande variedade de ambientes pantanosos encontrada, foram descobertos corpos em muitos diferentes estados de conservação. Destes, o mais famoso foi descoberto em Lindow Moss, perto de Wilmslow, em Chesire. As circunstâncias da descoberta do primeiro corpo são de facto bastante curiosas. Em 1983, a polícia de Macclesfield, em Chesire, estava a investigar um homem chamado Peter Reyn-Bardt pelo homicídio da sua esposa Malika, que acontecera vinte e três anos antes. Durante a pesquisa, alguns homens que trabalhavam num local de extracção de turfa, adjacente ao jardim de Reyn-Bardt, descobriram um crânio bem preservado, posteriormente identificado como uma mulher entre os trinta e os cinquenta anos. Confrontado com estas provas, Reyn-Bardt confessou o crime e foi condenado por homicídio. Antes do julgamento de Reyn-Bardt, a polícia pediu ao Laboratório de Investigação Arqueológica da Universidade de Oxford que examinasse o corpo. O seu estudo da Mulher de Lindow, como viria a ser conhecida, revelou que ela tinha entre mil seiscentos e sessenta e mil oitocentos e vinte anos. Quando soube, Reyn-Bardt recorreu da sentença.

No ano seguinte, o corpo de um homem despido, com a excepção de uma tira de pele de raposa no braço e de uma corda fina ao pescoço, foi encontrado na mesma área. O Homem de Lindow estaria na casa dos vinte anos quando morreu, entre 50 e 100 d. C. Os exames feitos ao corpo revelaram que ele fora golpeado duas vezes no topo da cabeça, provavelmente por um machado, com força suficiente para enterrar pedaços do crânio no cérebro. Ele também tinha sido estrangulado com um garrote de couro que ainda mantinha ao pescoço e tinha um corte na garganta, o que pode indicar que fora degolado. O cabelo tinha sido aparado (com uma tesoura) dois ou três dias antes de morrer. O conteúdo do seu estômago incluía pão torrado e vestígios de pólen de azevinho, uma planta sagrada para os Celtas. A Dr.a Anne Ross, arqueóloga e estudiosa dos Celtas, acredita que a tripla morte sofrida pelo Homem de Lindow, juntamente com a côdea escura e os vestígios de azevinho no seu estômago, sugerem que o homem foi vítima de um sacrifício druídico.

Mais de oitenta corpos foram retirados dos pântanos da Irlanda nos últimos dois séculos, sete dos quais foram datados por radiocarbono. Ao contrário do resto do Norte da Europa, a maioria destes corpos pertence ao final do período medieval, apesar de haver alguns da Idade do Ferro. Um exemplar dessa época, datado por radiocarbono entre 470 e 120 a. C., é o Homem de Gallagh, encontrado pela família 0’Kelly em 1821, em Gallagh, perto de Castleblakeney, no condado de Galway. Depois de descobrir o corpo, a família 0’Kelly cobrava uma pequena quantia para o mostrarem a visitantes, após o que o enterravam de novo. Isto aconteceu até 1829, quando o corpo foi levado para o Museu Nacional. O Homem de Gallagh encontrava-se despido com excepção de uma capa de pele de veado atada ao pescoço com uma faixa de varas de salgueiro, que pode ter sido utilizada como garrote. Tal como muitos outros corpos do pântano que foram vítimas de violência, o seu cabelo fora cortado. O homem pode ter sido um criminoso executado em público, pois o corpo fora preso ao chão com estacas afiadas, possivelmente para evitar que a sua alma fugisse, uma prática também encontrada em alguns corpos do pântano na Dinamarca.

Em 1978, o corpo de uma mulher entre os vinte e cinco e os trinta anos foi encontrado no pântano de Meenybradden, perto de Ardara, no condado de Donegal, na Irlanda. A mulher, com o cabelo cortado e as pálpebras e pestanas ainda intactas, fora embrulhada num manto de lã e cuidadosamente sepultada. Não foram encontrados vestígios de violência no corpo, que foi datado por volta de 1570 d. C. A causa da morte e a razão por que foi sepultada no pântano permanecem um mistério.

Corpos nos Pântanos
Corpo encontrado nos Pântanos na Irlanda

Foram encontrados mais dois corpos nos pântanos da Irlanda em 2003. O primeiro foi descoberto em Clonycavan, condado de Meath, a norte de Dublin, e o segundo em Croghan, no condado de Offaly, a apenas quarenta quilómetros de distância. O Velho Homem de Croghan, como ficou conhecido, estava na casa dos vinte anos e era um gigante com dois metros de altura. O corpo foi datado entre 362 a. C. e 175 a. C. O Homem de Clonycavan, um jovem com cerca de 1,6 metros, data de entre 392 a. C. e 201 a. C. De forma semelhante a outros corpos do pântano, estes parecem ter sido brutalmente torturados antes da sua morte, provavelmente como sacrifícios rituais. O Velho Homem de Croghan foi apunhalado nas costelas e os seus mamilos foram cortados. Uma ferida no braço indica que tentou defender–se do ataque. Também havia buracos em ambos os braços, por onde passara uma corda para o amarrar. Posteriormente foi decapitado e desmembrado antes de ser sepultado no pântano. Contrastando com este final violento, o corpo do Homem de Croghan revelou que tinha unhas bem tratadas e as mãos relativamente macias, o que é indicativo de alguém que provavelmente nunca fizera trabalho manual; talvez fosse um sacerdote ou um membro da aristocracia. O Homem de Clonycavan tinha uma enorme ferida na cabeça, causada por um machado pesado que lhe quebrou o crânio, e várias outras feridas no corpo. Uma característica particularmente distintiva era o seu penteado incomum, com o cabelo levantado utilizando uma espécie de gel da Idade do Ferro, na realidade um tipo de resina que viera provavelmente do Sudoeste de França ou de Espanha.

Ned Kelly, o curador das antiguidades irlandesas no Museu Nacional da Irlanda, desenvolveu uma teoria para explicar porque os quarenta corpos descobertos em lamaçais irlandeses estavam colocados ao longo de fronteiras tribais, políticas e reais. Ele acredita que os mortos são oferendas de reis a deuses da fertilidade para garantirem um reinado bem sucedido. É certamente uma explicação plausível para muitos dos corpos do pântano na Irlanda, mas, e o resto do Norte da Europa? A variedade das maneiras como estas pessoas foram mortas sugere algo mais do que homicídio, provavelmente algum tipo de sacrifício ritual. Outros motivos podem ser encontrados na obra do escritor romano Tácito, que escreveu no início do Século II d. C. acerca dos povos germânicos. Ele descreve alguns costumes interessantes ligados ao crime e ao castigo na sua cultura, mencionando como «os cobardes, os irresponsáveis e aqueles que eram culpados de vícios pouco naturais» (provavelmente a homossexualidade e a promiscuidade) eram forçados até ao fundo do pântano sob uma cerca de vime. Ele também afirma que as mulheres adúlteras eram despidas, rapavam-lhes a cabeça e expulsavam-nas de casa, sendo depois vergastadas por toda a aldeia. Existem certamente indicações de Tácito que sugerem que muitas das vítimas nos pântanos tinham quebrado alguma lei ou tabu da Sociedade, sendo por isso executadas.

Outro pormenor interessante é a proporção incomum de corpos encontrados com algum tipo de defeito. Um dos corpos de Lindow Moss tinha seis dedos, outros tinham problemas na coluna ou membros curtos, pelo que essas pessoas podem ter sido escolhidas para serem sacrificadas porque eram vistas como tendo sido fisicamente distinguidas pelos deuses. Também temos de nos lembrar que os pântanos são locais traiçoeiros e não podemos eliminar a hipótese de que algumas das pessoas que lá estão sepultadas não tenham sofrido mais do que uma desventura. As pessoas podem simplesmente ter lá caído e morrido. Outros podem ser restos de pobres ou mulheres que morreram a dar à luz e por isso eram sepultadas em solo não sagrado. Esta poderia ser a explicação para o cuidadoso enterro da rapariga de Meenybradden, na Irlanda. Contudo, considerando o vasto leque de cenários possíveis, é óbvio que nunca poderá haver uma explicação única para o macabro, mas atractivo, mistério dos corpos dos pântanos.

Fonte: Livro «História Oculta» de Brian Haughton

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