Os Medicamentos são aprovados para tratar sintomas e não causas

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Medicina
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O controlo por placebo não é o único problema que se coloca em relação aos ensaios utilizados para obter a aprovação de introdução no mercado. É frequente os Medicamentos serem aprovados apesar de não revelarem qualquer benefício nos desfechos no mundo real, como ataques cardíacos ou morte: ao invés, são aprovados por revelarem um benefício em “desfechos substitutos”, como por exemplo, uma aná­lise ao sangue, cuja associação com o sofrimento real e a morte que se está a tentar evitar é apenas fraca ou teórica.

Um exemplo ajuda-nos a compreender melhor isto. As estatinas são Fármacos que reduzem o colesterol, mas não as tomamos porque queremos alterar os números do colesterol numa análise ao sangue: tomamo-las porque queremos reduzir o risco de termos um ataque car­díaco ou de morrermos. O ataque cardíaco e a morte são os desfechos reais que nos interessam, e o colesterol não é mais do que um substi­tuto, um resultado do processo, algo que esperamos esteja associado ao desfecho real. Mas pode não estar de todo, ou não assim tanto.

Há muitas vezes bons motivos para utilizar um desfecho substi­tuto, não como único indicador mas, pelo menos, para alguns dos dados. Como as pessoas levam muito tempo a morrer (é um dos gran­des problemas da investigação, se é que o leitor me pode perdoar esta ideia), se queremos uma resposta depressa, não podemos ficar à espera de que tenham um ataque cardíaco e morram. Nestas circunstâncias, um desfecho substituto como uma análise ao sangue é algo que se pode medir, um arranjo intermédio. Mas continuamos a ter de realizar estu­dos de seguimento a longo prazo, numa fase qualquer, para descobrir se, afinal, o nosso palpite sobre o desfecho substituto era correcto. Infelizmente, os incentivos das empresas — que são, de longe, as maiores financiadoras dos ensaios — centram-se todos nos ganhos a curto prazo, quer para conseguir a introdução dos Medicamentos no mercado o mais cedo possível, quer para obter resultados antes de a pa­tente expirar e enquanto esta ainda lhes pertence.

Diagrama de Ensaio Clínico para testar a Supressão da Arritmia Cardíaca
Diagrama de Ensaio Clínico para testar a Supressão da Arritmia Cardíaca

Trata-se de um dos maiores problemas para os doentes, porque os benefícios obtidos nos desfechos substitutos não se traduzem amiúde em benefícios da vida real. Com efeito, a história da medicina está repleta de exemplos em que é exactamente o oposto do que é verdadeiro.

O exemplo mais dramático e mais famoso talvez seja o do CAST (Cardiac Arrhythmia Suppression Trial), que testou três antiarrítmicos para verificar se impediam a morte súbita em doentes que corriam um risco mais elevado por apresentarem um determinado tipo de ritmo cardíaco anormal. Como os Medicamentos impediram esses ritmos anormais, toda a gente pensou que deviam ser óptimos: foram aprovados para comercialização com o objectivo de impedir a morte súbita em doentes com ritmos anormais, e os médicos sentiram-se bastante à vontade para os receitar. Quando se realizou um ensaio adequado que media a mortalidade, toda a gente se sentiu um pouco embaraçada: os Fármacos aumentavam o risco de morte em tão grande medida que o ensaio teve de terminar mais cedo. Tínhamos estado a entregar jovialmente às pessoas comprimidos que matavam (estima-se que tenham morrido bem mais de cem mil pessoas em consequência disso).

Mesmo quando não aumentam activamente o risco de morte, os Medicamentos que conseguem alterar os desfechos substitutos por vezes não influenciam em nada os desfechos reais que mais nos interessam. A doxazosina é um medicamento de marca, dispendioso, para a tensão arterial, e resulta extremamente bem na redução desse parâmetro, medido num consultório médico — quase tão bem como o clortalidona, um fármaco simples e antiquado para a tensão arterial cuja patente expirou há muitos anos. Acabou por se realizar um ensaio comparativo dos dois Medicamentos em desfechos do mundo real como a insuficiência cardíaca (recorrendo a financiamento governamental, pois não servia os interesses financeiros de ninguém); o ensaio teve de terminar mais cedo porque os doentes que estavam a tomar doxazosina estavam a passar muito pior. O fabricante do fármaco, a Pfizer, montou uma magnificente campanha de marketing, e não se registou praticamente nenhuma diferença no uso do medicamento.

Doxazosina
Doxazosina

Há exemplos infindáveis de Medicamentos cujas provas disponí­veis provêm unicamente dos desfechos substitutos. Se sofremos de dia­betes, o que mais nos preocupa é a morte, e os problemas horríveis nos pés, nos rins, nos olhos, etc. Preocupamo-nos com o nível de açúcar no sangue e com o peso porque são indicadores úteis do controlo da diabetes, mas não são nada em comparação com a importante questão básica: será que este medicamento reduz realmente o risco de eu morrer?

Presentemente, existem no mercado novos Medicamentos de todos os tipos para a diabetes. Os “receptores do peptídeo semelhante ao glucagon“, por exemplo, são muito excitantes para muitos médicos. Se olhar para a última revisão sistemática dos seus benefícios, publicada em Dezembro de 2011 (é apenas a que está aberta à minha frente, pois podia ser qualquer outro medicamento), verá que baixam o açúcar no sangue, a tensão arterial, o colesterol (tudo coisas boas!); mas nin­guém verificou alguma vez se, na verdade, nos impedem de morrer, que é tudo o que interessa realmente às pessoas que os tomam.

O mesmo acontece em relação aos efeitos secundários. O Depoprovera é um contraceptivo razoável, mas suscita algumas preocupa­ções quanto à possibilidade de aumentar a vulnerabilidade às fracturas. A investigação sobre esta questão centra-se na densidade mineral óssea e não em verdadeiras fracturas.

Quando conseguimos aprovação para introduzir o nosso medica­mento no mercado, é frequente os reguladores permitirem que apresen­temos provas da sua eficácia unicamente baseadas em desfechos subs­titutos. Em caso de “aprovação acelerada”, para Medicamentos que são os primeiros de uma nova classe ou que se destinam a situações ainda sem tratamento, até permitem que apresentemos um desfecho substituto que quase não foi validado, o que significa que há muito pouca investi­gação sobre o grau de associação desse resultado e os desfechos da doença no mundo real. Para contextualizar, vale a pena recordar que os exemplos acima referidos, que induziram em erro os pacientes, provêm de desfechos substitutos considerados “bem validados”. Não haveria problemas se a introdução de um medicamento no mercado fosse ape­nas o início da história, o tiro de partida para uma prescrição cautelosa, no contexto de uma monitorização mais vasta dos desfechos no mundo real. Infelizmente, não é o que se passa.

Fonte: LIVRO: «Farmacêuticas da Treta» de Ben Goldacre

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