Muitas pessoas que não são cientistas têm veneração pelo poder e aparente certeza do conhecimento científico. O mesmo se passa com a maioria dos estudantes de Ciência. Os compêndios estão cheios de factos aparentemente incontroversos e dados quantitativos. Ainda por cima, a crença na objectividade da Ciência é um dogma para muita gente do nosso tempo. Ela é fundamental para a mundividência de materialistas, racionalistas, humanistas seculares e todos quantos defendem a superioridade da Ciência sobre a Religião, a sabedoria tradicional e as artes.
A imagem da Ciência raramente é tema de discussão aberta entre os próprios cientistas. Por norma, absorvem-na implicitamente e assumem-na sem discussão. Raros são os cientistas que demonstram grande interesse pela filosofia, história ou sociologia da Ciência, havendo pouco espaço para estas matérias no sobrecarregado programa dos cursos científicos. Quase todos partem simplesmente do princípio de que, recorrendo ao “método científico”, é possível testar objectivamente as teorias pela experiência, em moldes que impedem a sua contaminação pelas expectativas, ideias e convicções pessoais dos cientistas.
Os cientistas gostam de se ver no papel de paladinos de uma arriscada e temerária demanda da verdade.
Tal ponto de vista suscita hoje em dia uma grande dose de cinismo. Mas parece-nos importante reconhecer que se trata de um ideal de grande nobreza. Enquanto o empenhamento científico é iluminado por este espírito heróico, é digno de louvor. Mas a realidade é que os cientistas estão hoje, na sua maioria, ao serviço de interesses militares e comerciais. Quase todos fazem carreira no seio de instituições e organizações profissionais. O receio de sofrer revezes na carreira, de ver recusados artigos por publicações da especialidade, de perder subsídios e da sanção extrema da demissão são travões poderosos a grandes desvios da ortodoxia vigente, pelo menos em público. Muitos há que não se sentem suficientemente seguros para exprimir a sua verdadeira opinião enquanto não se reformam, não ganham um Prémio Nobel, ou ambas as coisas.

As dúvidas do cidadão comum quanto à objectividade dos cientistas são amplamente partilhadas, por razões mais sofisticadas, por filósofos, historiadores e sociólogos da Ciência. Os cientistas fazem parte de sistemas sociais, económicos e políticos mais vastos; constituem grupos profissionais com os seus próprios rituais iniciáticos, pressões exercidas pelos seus pares, estruturas de poder e sistemas de recompensa. Trabalham geralmente no contexto de paradigmas ou modelos de realidade bem definidos. E mesmo dentro dos limites estabelecidos pelo sistema de crenças científicas em vigor, não buscam os factos pelos factos: formulam conjecturas ou hipóteses sobre como as coisas são e depois testam-nas pela experimentação. Trata-se normalmente de experiências que têm por motivação o desejo de sustentar uma hipótese preferida, ou refutar uma hipótese rival. Aquilo que as pessoas investigam, e mesmo aquilo que descobrem, é influenciado pelas suas expectativas conscientes e inconscientes. Acresce que as críticas feministas detectam um forte e muitas vezes inconsciente sesgo machista na teoria e na prática da Ciência.
Muitos praticantes da Ciência, como médicos, psicólogos, antropólogos, sociólogos, historiadores e académicos em geral têm plena consciência de que a objectividade desapaixonada é mais um ideal do que um reflexo da prática real. Em privado, quase todos estão dispostos a reconhecer que alguns dos seus colegas, se não eles próprios, se deixam influenciar nas suas investigações pela ambição pessoal, dogmas, preconceitos e outras fontes de condicionamento.
A tendência para descobrir aquilo que se procura está profundamente enraizada. Assenta na própria natureza da atenção. A capacidade de concentrar os sentidos em função das intenções é um aspecto fundamental da natureza animal. Encontrar aquilo que se procura é uma característica essencial da vida humana quotidiana. A generalidade das pessoas tem plena consciência de que as atitudes das outras pessoas influenciam a forma como interagem com o mundo que as rodeia. São condicionamentos que não nos surpreendem nos políticos, como não nos surpreende que pessoas de culturas diferentes tenham diferentes formas de ver as coisas. Não nos surpreende depararem-se-lhes inúmeros exemplos diários de auto-ilusão em membros da nossa família, e entre amigos e colegas. Mas existe a convicção generalizada de que o “método científico” está acima dos preconceitos culturais e pessoais, por lidar apenas e exclusivamente com factos objectivos e princípios universais.
As manifestações de parcialidade em Ciência reconhecem-se com mais facilidade quando são o reflexo de preconceitos políticos, porque pessoas de posições políticas opostas têm uma forte motivação para questionar as afirmações dos seus adversários. Por exemplo, os conservadores têm por norma propor uma base biológica para a superioridade das classes e raças dominantes, dando para as diferenças uma explicação predominantemente genética. Os liberais e os socialistas, pelo contrário, preferem considerar predominantes as influências do meio envolvente, explicando as desigualdades existentes com base nos sistemas sociais e económicos.

No Século XIX, este debate “natureza-berço” centrou-se nas medições do diâmetro cerebral; no Século XX, nas medições do QI. Cientistas eminentes que estavam convencidos da superioridade inata dos homens sobre as mulheres e dos brancos sobre as outras raças conseguiram descobrir aquilo que queriam encontrar. Foi o caso de Paul Brocca, o anatomista que dá o nome ao centro cerebral da fala, que concluiu: “De um modo geral, os adultos na idade madura têm o cérebro maior do que os idosos, os homens maior do que as mulheres, os homens eminentes maior do que os de talento medíocre, os das raças superiores maior do que os das inferiores.” Teve de passar por cima de muitos obstáculos factuais para manter esta convicção. Por exemplo, cinco eminentes professores da universidade de Gõttingen deram autorização para que, depois de mortos, os seus cérebros fossem pesados; quando se verificou que o peso da massa encefálica dos eminentes professores era embaraçosamente próximo da média, Broca concluiu que, afinal de contas, eles não eram tão eminentes como isso!
Os críticos de um credo político mais igualitário conseguiram, por seu turno, demonstrar que as generalizações baseadas nas diferenças de diâmetro do cérebro ou de quociente de inteligência assentavam na sistemática distorção e selecção de dados. Os dados chegavam mesmo a ser fraudulentos, caso de alguns dos trabalhos publicados por Sir Cyril Burt, destacado defensor da tese de que a inteligência é, em larga medida, inata. No seu livro «The Mismeasure of Man» («A Falsa Medida do Homem»), Stephen Jay Gould traça a história triste destes estudos, alegadamente objectivos, da inteligência humana, mostrando com que persistência se vestiu o preconceito de roupagens científicas. “Se – como julgo ter demonstrado – os dados quantitativos estão tão sujeitos aos condicionamentos culturais como qualquer outro aspecto da Ciência, não têm qualquer direito a reivindicar para si a verdade definitiva.”
Fonte: LIVRO: «7 Experiências que podem mudar o Mundo» de Rupert Sheldrake