Sabia que existe um dia mundial contra a Monsanto? Muitos não conhecem a empresa pelo nome, ou talvez tenham apenas ouvido falar dela, sem saber ao certo o seu sector ou posicionamento. Entretanto, quase todas as pessoas fazem uso contínuo de alimentos à base dos organismos geneticamente modificados (OGMs) produzidos e vendidos pela corporação.
O facto é que este ano a marcha mundial contra a Monsanto ocorre no dia 23 de Maio e levará milhares de pessoas às ruas, por todo o mundo, para protestar contra a actuação e práticas da corporação. Mas por que existe um dia mundial dedicado exclusivamente à denúncia deste gigante da agro química? O que de tão nefasto representa esta empresa? Vamos tentar relembrar os principais fatos da trajectória da Monsanto que fizeram com que fosse considerada pela revista Fortune como “possivelmente a corporação mais temida da América”. Prejuízos aos pequenos agricultores, possíveis danos à Saúde e meio Ambiente, formação de lobby, manipulação de investigações científicas e até a contratação de mercenários são algumas das polémicas nas quais a empresa se envolveu ao longo dos seus 103 anos de existência.
A Monsanto é uma multinacional de alcance global da área de agricultura e biotecnologia. É especializada em engenharia genética (produção de organismos geneticamente modificados), sementes e herbicidas. Criada em 1901 como uma companhia novata na área da engenharia química, aos poucos tornou-se a maior empresa do mundo no sector, fornecendo produtos à base de organismos geneticamente modificados para gigantes como a Coca–Cola, a Pepsico e a Kraft. Hoje, controla 90% do mercado de sementes transgénicas do mundo – consagrando-se como um dos maiores monopólios já vistos. O crescimento da empresa foi vertiginoso. Recentemente, adquiriu diversas empresas na América do Sul e no leste europeu, dominando consistentes fatias de mercado em países como Argentina, México e Brasil – onde está presente há quase 60 anos.
Este crescimento tem representado uma ameaça real à sobrevivência de pequenos produtores em todo o mundo. Nos seus contratos de venda de sementes, a Monsanto prevê que os pequenos produtores não poderão guardar nenhuma semente e são obrigados a permitir que a empresa vistorie as suas plantações a qualquer momento. Além disso, as sementes geneticamente modificadas são apenas tratadas com os herbicidas vendidos pela própria companhia, facto que condiciona os agricultores à dependência. De todo o modo, os impactos dos produtos geneticamente modificados comercializados pela Monsanto vão além da esfera socioeconómica.
Um estudo de 2009 do Journal of Biologycal Science [1] mostrou que o consumo do milho proveniente da semente geneticamente modificada pode produzir efeitos negativos em órgãos como os rins e o fígado. Outro estudo, publicado em 2012 na Food And Chemical Toxicology [2], constatou que ratos submetidos a uma dieta à base de organismos geneticamente modificados morrem mais rápido e são mais propensos ao desenvolvimento de cancro. Para chegar a esta conclusão, cientistas administraram em 200 ratos, durante dois anos, três dietas distintas: uma à base de milho convencional, outra à base do milho transgénico NK603 e outra à base do NK603 tratado com o herbicida RoundUp. Tanto o milho transgénico NK603 como o herbicida RoundUp (o mais utilizado do mundo) pertencem à Monsanto. O resultado foi a morte acelerada de parte dos ratos e o aparecimento de tumores enormes naqueles cuja base da dieta fora o milho transgénico NK603, da Monsanto.
A investigação divulgada pela Food And Chemical Toxicology gerou controvérsias. Enquanto recebeu o apoio de diversos cientistas pelo mundo, alguns criticaram-na, afirmando que houve distorção na metodologia, o número de ratos fora inadequado e aquele tipo de rato de laboratório já possuía propensão ao desenvolvimento de tumores. Após forte pressão, a revista cedeu e, um ano depois, anunciou a retirada do estudo. A decisão, todavia, não agradou ao principal autor da investigação – o director científico do comité para investigação e informação independente sobre engenharia genética de França, Gilles–Éric Séralini. O cientista reafirmou que a investigação não continha fraudes e que, caso a revista insistisse na sua decisão de retirar a publicação, iria accioná-la judicialmente por danos morais. A despeito do estudo de Séralini, outras investigações ao longo das décadas já confirmaram em condições similares os efeitos dos organismos geneticamente modificados sobre a Saúde humana. Além disso, as empresas que controlam o sector – sobretudo a Monsanto – possuem altos níveis de poder acumulado, que lhes permite interferir em investigações e políticas públicas por meio da formação de lobby para benefício dos seus produtos.
Dessa forma, o poder económico acumulado pela Monsanto lançou as bases para um acumular significativo de poder político. Executivos da Monsanto foram posicionados em cargos estratégicos do governo dos Estados Unidos — dentre eles, a Agência de Proteção Ambiental [Environmental Protection Agency (EPA)], o ministério da agricultura [U.S. Departament of Agriculture (USDA)] e o comité consultivo do presidente Obama para Política comercial e negociações. A Monsanto ainda posicionou funcionários em cargos estratégicos em universidades pelo mundo, dentre elas a South Dakota State University, o Arizona State’s Biodesign Institute e a Washington University. Desde 1980, políticas federais americanas têm incentivado instituições públicas de ensino a produzir investigações nas áreas agrícola e de biotecnologia em parceria com empresas privadas. Em consonância com esta política, a Monsanto tem inundado instituições públicas de ensino com investimentos. Em troca, tem os seus produtos protegidos e fortalecidos por um arcabouço de estudos técnicos e científicos com distorção favorável.
Além de cargos no governo e na academia norte-americana, executivos da Monsanto posicionaram-se em cargos em instituições-chave para Política alimentar e científica do seu país ou de âmbito internacional, como o “International Food and Agricultural Trade Policy Council”, o “Council for Bitechnology Information”, a “United Kingdom Academy of Medicine”, a “National Academy of Sciences Biological Weapons Working Group”, a “CropLife International” e o “Council of Foreign Relations”.
Naturalmente, as posições privilegiadas alcançadas pela Monsanto renderam-lhe excelentes retornos. Em 1993, a Agência para Alimentação e Medicamentos [Food and Drug Administration (FDA)] dos EUA aprovou o uso de um produto denominado “Hormona de Crescimento Bovino” (Recombinant Bovine Hormone ou rBGH). Desenvolvido pela Monsanto, trata-se de uma droga hormonal injectada em vacas de modo a incentivar a produção de leite. O rBGH foi a primeira substância geneticamente modificada aprovada pelo FDA.
A aprovação foi no mínimo controversa. Estudos apontaram que o rBGH produziria sérios impactos na Saúde física e psicológica das vacas. O mais comum deles, a mastite bovina, é tratada com base na administração de antibióticos. A exposição constante das bactérias aos antibióticos contribui para a criação de bactérias resistentes que podem infectar seres humanos. Além disso, alguns estudos também apontaram que o consumo do leite com resíduos da hormona aumentaria o risco de desenvolvimento de cancro do colo, da mama e da próstata. A substância é proibida nos 27 países da União Europeia, mas graças ao poderoso lobby da Monsanto nos EUA a sua utilização é liberalizada – o que também ocorre no Brasil…
Após a aprovação do uso do rGHB pelo FDA, funcionários ligados à Monsanto que trabalhavam na FDA foram investigados pelo Escritório de Prestação de Contas do Governo [Government Accountability Office (GAO)] por formação de lobby. O GAO investigou os executivos Michael Taylor, Margaret Miller e Suzanne Sechen. Os três funcionários tiveram participação activa no desenvolvimento da droga e, posteriormente, exerceram funções na FDA, tornando-se responsáveis pela avaliação e aprovação do produto que ajudaram a desenvolver. No fim da investigação, o GAO concluiu que não havia dispositivos legais para incriminar os envolvidos e que não havia provas cabais de conflitos de interesses no caso.
Em 2012, a empresa opôs-se à chamada Proposition 37 – apelidada pelos americanos de “Iniciativa pelo Direito a Saber” (Right to Know initiative). A iniciativa propunha-se a promulgar, no estado da Califórnia, uma lei obrigando as empresas que vendessem produtos à base de ingredientes geneticamente modificados a neles instalarem rótulos visíveis alertando para tal facto, evitando assim a venda destes produtos como naturais. Esta iniciativa, no entanto, não passara incólume pelo imenso poder de negociação das grandes indústrias do sector, sendo a Monsanto a sua “ponta-de-lança”. Empresas como Nestlé e Mars Inc. “despejaram” mais de 370 mil dólares na campanha contra o projecto. Só a Monsanto “despejou”, sozinha, 8,1 milhões de dólares em campanhas contra a iniciativa, estabelecendo-se como doadora maioritária numa campanha que totalizou 45 milhões de dólares arrecadados de diversas empresas envolvidas na queda da proposta. É claro que com todo este empenho a iniciativa não prosperou e os californianos não conquistaram o direito de saber a procedência do alimento que estão a ingerir.
No Brasil, a Câmara dos Deputados aprovou, a 28 Abril deste ano, por ampla maioria o projecto lei 4.148/2008 [3], de autoria do deputado ruralista Luiz Carlos Heinze (PP–RS), que ao contrário da legislação vigente (baseada na lei 11.105/2005) propõe a não obrigatoriedade da rotulagem de alimentos à base de OGMs.
Para além das polémicas e controvérsias citadas até agora, a Monsanto ainda guarda na sua história íntimas relações com o poder militar. É facto público e conhecido o fornecimento do famoso Agente Laranja lançado nas plantações do Vietname pelas forças armadas norte-americanas que se digladiavam para manter o país sob controlo. As consequências, entre as populações que serviram de alvo, foram sentidas por muitos anos. O que pouco se sabe é que há indícios de ligações da Monsanto com forças militares mercenárias. A empresa contratou serviços de espionagem de empresas ligadas à conhecida antiga Blackwater [4] (agora XE) – uma das maiores companhias militares privadas do mundo. Segundo documentos obtidos pela revista The Nation4 a empresa utilizou serviços oferecidos por duas empresas de espionagem – “Total Intelligence Solutions” e “Terrorism Research Center” – cuja propriedade é do dono e fundador da XE, Eric Prince. Os documentos apontam que entre os serviços prestados à Monsanto por estas empresas estão a infiltração de espiões em movimentos sociais, ONGs e entidades protectoras dos animais e de combate aos transgénicos. Alguns sugerem que esta relação da Monsanto com empresas de espionagem explique o misterioso vírus que atacou os computadores de activistas da organização “Amigos da Terra” e da “Federação para o Meio Ambiente e Proteção à Natureza” da Alemanha. O ataque deu-se no contexto de apresentação de uma investigação realizada por estas entidades sobre os efeitos da substância glisofato no corpo humano. O glisofato é a base de um dos produtos mais rentáveis vendidos pela Monsanto – o herbicida RoundUp. A empresa afirmou que não teve e jamais teria envolvimento no facto.
O histórico e a actuação da Monsanto no seu sector, considerando todas as polémicas e controvérsias nas quais a corporação se envolveu, trazem à tona o necessário debate acerca dos custos e benefícios envolvidos no desenvolvimento de organismos geneticamente modificados. Se por um lado a biotecnologia e a agro química trouxeram crescente optimização da produção e distribuição de insumos, é necessário reflectir acerca das consequências do uso destes, da garantia da liberdade de investigação com relação aos seus efeitos e principalmente das consequências da extrema concentração deste mercado nas mãos de pouquíssimas corporações. Afinal de contas, como dito, não é todos os dias que uma empresa ganha um dia Internacional de protestos contra si.
A maior parte das informações aqui relacionadas pode ser encontrada no relatório “Monsanto: A Corporate Profile”, da ONG Food & Water Watch. Para os que preferem material audiovisual, existe uma série de Documentários que tratam de maneira crítica da questão dos transgénicos e das poderosas corporações do sector. São alguns deles eles: «Food Inc (2009)», «The future of Food», «El Mundo Según Monsanto (2008)» e «Seeds of Free». O site oficial da Marcha Mundial Contra a Monsanto encontra-se em: http://www.march-against-monsanto.com/.
NOTAS:
[1] Disponível em : http://www.ijbs.com/v05p0706.htm
[2] Disponível em: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0278691512005637
[3] Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=412728
[4] Disponível em: http://www.thenation.com/article/154739/blackwaters-black-ops#
Fonte: Esquerda.net