Esta guerra mostra como resulta um sistema de propaganda que funcione bem. As pessoas podem acreditar que quando usamos a força contra o Iraque e o Kuwait é mesmo porque realmente observamos o princípio de que a ocupação ilegal e as violações dos direitos humanos devem ser confrontados com a força. Não percebem o que é que isso significaria se esses princípios fossem aplicados ao comportamento dos Estados Unidos. Trata-se de um triunfo de um tipo de propaganda bastante espectacular.
Demos uma olhadela a outro caso. Se se olhar de perto para a cobertura da guerra desde Agosto de 1990, verificar-se-á que faltam algumas vozes que chamem a atenção para o que se passa. Por exemplo, existe uma oposição democrática iraquiana, que é, na realidade, uma muito corajosa, e bastante importante, oposição democrática iraquiana. Claro que essa oposição funciona no exílio porque não pode sobreviver no Iraque. Os seus membros encontram-se principalmente na Europa. São banqueiros, engenheiros, arquitectos — pessoas assim. Estão organizados, têm voz e falam. Em Fevereiro de 1991, quando Saddam Hussein ainda era o amigo favorito e o parceiro comercial favorito de George Bush, deslocaram-se a Washington, segundo fontes da oposição democrática iraquiana, para solicitarem alguma forma de apoio à sua pretensão de que se instalasse uma democracia parlamentar no Iraque. Não tiveram resposta favorável ao seu pedido, pois os Estados Unidos não estavam interessados. Não houve qualquer reacção pública a este caso.
Desde Agosto que se tornou um pouco mais difícil ignorar a sua existência. Em Agosto, voltámo-nos repentinamente contra Saddam Hussein, depois de, durante muitos anos, o termos favorecido. Aqui estava uma oposição democrática iraquiana que pretendia ter algumas opiniões sobre o assunto. Esses opositores sentir-se-iam felizes se vissem Saddam Hussein estripado e esquartejado. Ele matara-lhes os irmãos, torturara-lhes as irmãs e empurrara-os para fora do país. Tinham estado a lutar contra a sua tirania durante todo o tempo que Ronald Reagan e George Bush o haviam adulado. Que se passa com a voz desses homens? Olhe-se para os Meios de Comunicação Social e veja-se o que se consegue encontrar sobre a oposição democrática iraquiana entre Agosto e Março de 1991. Nem uma palavra. Não são eles que são mudos. Eles apresentaram declarações, propostas, apelos e pedidos. Se se olhar para esses documentos, verificar-se-á que não se distinguem dos do Movimento norte-americano para a Paz. São contra Saddam Hussein e são contra a guerra contra o Iraque. Não querem que o seu país seja destruído. O que querem é uma solução pacífica e sabem muito bem que se podia ter chegado a uma solução desse tipo. É a opinião errada e, portanto, estão postos de lado. Não se ouve uma palavra sobre a oposição democrática iraquiana e se se quiser saber alguma coisa tem que se recorrer à imprensa alemã, ou à imprensa britânica. Não se fala muito deles, mas estão menos controlados do que os norte-americanos e sempre dizem alguma coisa.
Este é um efeito extrordinário da propaganda, um dos seus êxitos. Em primeiro lugar, porque as vozes dos democratas iraquianos são completamente excluídas e, em segundo lugar, porque ninguém dá conta disso. O que também é interessante. Atinge-se uma população que, na realidade, está profundamente doutrinada, mas não para comprovar que não se ouvem as vozes da oposição democrática iraquiana nem para perguntar “Porquê?” e encontrar a resposta óbvia: porque os democratas iraquianos têm as suas próprias ideias; estão de acordo com o movimento internacional de paz e, portanto, estão excluídos.
Analisemos a questão das razões da guerra. Razões que foram apresentadas a favor da guerra. As razões são: os agressores não podem ser recompensados e a agressão deve ser anulada com o rápido recurso à violência; é essa a razão da guerra. Fundamentalmente, não foi apresentada qualquer outra razão. É possível que seja esta a razão da guerra? Podem os Estados Unidos defender estes princípios, que os agressores não podem ser recompensados e que a agressão deve ser anulada com o rápido recurso à violência? Não vou insultar a inteligência das pessoas alargando-me a falar dos factos, mas a verdade é que aqueles argumentos podiam ser refutados em dois minutos por qualquer adolescente instruído. No entanto, nunca foram refutados. Dê-se uma olhadela aos Meios de Comunicação Social, leiam-se os comentaristas e os críticos liberais, as pessoas que testemunharam no Congresso e veja-se se alguém levantou a hipótese de os Estados Unidos defenderem aqueles princípios. Opuseram-se os Estados Unidos à sua própria agressão no Panamá e pensaram em bombardear Washington para anulá-la? Quando a ocupação sul-africana da Namíbia foi declarada ilegal em 1969, os Estados Unidos impuseram sanções em alimentos e remédios? Foram para a Guerra? Bombardearam a Cidade do Cabo? Não, o que aconteceu foi que suportaram vinte anos de «diplomacia tranquila». Não se passaram coisas muito bonitas durante esses vinte anos. Só nos anos do governo Reagan–Bush, cerca de milhão e meio de pessoas foram mortas pela África do Sul nos países vizinhos. Esqueçamos o que estava a acontecer na África do Sul e na Namíbia. O que quer que fosse, desde que não ferisse as nossas almas sensíveis. Continuámos com a «diplomacia tranquila» e acabámos recompensando largamente os agressores. Receberam o principal porto da Namíbia e obtiveram numerosas vantagens tendo em conta as suas preocupações de segurança. Qual é o princípio que nós apoiámos? Mais uma vez, é uma brincadeira de crianças demonstrar que as razões indicadas não podiam ter sido as que nos levaram à guerra, porque não defendemos os princípios referidos. Mas ninguém o fez — e isso é que é importante. E ninguém se preocupou em indicar a seguinte conclusão: não foi apresentada qualquer razão para ir para a Guerra. Nenhuma. Nenhuma razão foi dada para ir para a Guerra, nenhuma razão que não pudesse ser refutada em menos de dois minutos pelo tal adolescente instruído. Estamos, mais uma vez, perante a marca distintiva de uma cultura totalitária. Devia arrepiar-nos sermos tão profundamente totalitários que sejamos empurrados para a Guerra sem que razão alguma seja apresentada, e sem que ninguém repare no pedido do Líbano ou com ele se preocupe. É um facto muito perturbante.
Precisamente antes de começar o bombardeamento, em meados de Janeiro, uma importante sondagem Washington Post – ABC revelava algo interessante. Perguntara-se às pessoas se, caso o Iraque tivesse concordado retirar-se do Kuwait em troca de o Conselho de Segurança apreciar o problema do conflito árabo-israelita, aceitavam essa solução. Cerca de metade dos inquiridos estava a favor. O mesmo se passava com o mundo inteiro, incluindo a oposição democrática iraquiana. Por isso foi noticiado que dois terços da população norte-americana era a favor dessa solução. Presumivelmente, as pessoas que lhe eram favoráveis julgavam ser as únicas no mundo a pensar dessa maneira. Claro que também ninguém na Imprensa afirmou que seria uma boa ideia. As ordens de Washington tinham sido dadas, era suposto que nós fossemos contra «sistemas articulados», isto é, diplomacia, e, por isso, à ordem de comando, toda a gente marchou a passo de ganso e toda a gente estava contra a diplomacia. Tente-se achar um comentário na Imprensa — encontrar-se-á uma coluna assinada por Alex Cockburn no Los Angeles Times na qual se afirma que seria uma boa ideia.
As pessoas que respondiam à pergunta pensavam, estou sozinho, mas é o que eu penso. Imagine-se que sabiam. Imagine-se que essas mesmas pessoas sabiam que não estavam sozinhas, que outras pessoas pensavam da mesma maneira, como por exemplo a oposição democrática iraquiana. Suponhamos que sabiam que a proposta não era hipotética, que, na realidade, o Iraque tinha apresentado exactamente essa oferta. Altos funcionários dos Estados Unidos tinham-na entregue precisamente oito dias antes. No dia 2 de Janeiro, esses altos funcionários tinham entregue uma oferta iraquiana segundo a qual as forças do Iraque se retirariam totalmente do Kuwait em troca de o Conselho de Segurança das Nações Unidas analisar o conflito árabo-israelita e o problema das armas de destruição maciça. Os Estados Unidos têm vindo a recusar negociar esta questão desde bem antes da invasão do Kuwait. Suponhamos que essas pessoas souberam que a oferta estava realmente em cima da mesa e que reunia vasto apoio e que, de facto, era exactamente o género de coisa que qualquer pessoa racional faria no caso de estar interessada na paz, como fizemos, aliás, noutros casos, nos raros casos em que quisemos deter uma situação de agressão. Imagine-se que tinha sido sabido. Cada qual pode fazer os seus próprios cálculos, mas eu acho que, provavelmente, os 50% transformar-se-iam em 98% da população. Aqui está o maior triunfo da propaganda. Provavelmente, nem uma só das pessoas que responderam à sondagem tinha a mais pequena ideia dos factos que eu acabei de mencionar. As pessoas pensavam que estavam sozinhas. No entanto, foi possível avançar com a Política de Guerra, sem qualquer oposição.
Discutiu-se muito sobre se a aplicação de sanções resultaria. Viu-se o chefe da CIA discutir em público se a aplicação das sanções teria resultados favoráveis para quem as aplicava. No entanto, não houve qualquer discussão sobre um ponto muito mais óbvio: as sanções já deram algum resultado? A resposta é sim, aparentemente, sim — provavelmente no fim de Agosto, muito provavelmente no fim de Dezembro. Era muito difícil pensar que havia outra razão para as ofertas apresentadas pelo Iraque para retirar as tropas, ofertas essas que eram autenticadas ou, em alguns casos, apresentadas por altos funcionários norte-americanos, que as consideravam «sérias» e «negociáveis». Portanto, a verdadeira pergunta é: as sanções já resultaram? Existia uma saída? Existia uma saída em termos suficientemente aceitáveis para a população em geral, o mundo e a oposição democrática iraquiana? Estas questões não foram discutidas e, para um sistema de propaganda que funcione bem, é fundamental que não o sejam. Isso permite ao presidente do Comité Nacional Republicano dizer que se algum democrata estivesse em funções, o Kuwait não estaria hoje libertado. Ele pôde dizer isto e nenhum democrata pôde levantar-se e dizer que se fosse Presidente o Kuwait teria sido libertado não hoje, mas há seis meses, porque houve oportunidades nessa altura, oportunidades que não foram devidamente exploradas, e o Kuwait teria sido libertado sem que morressem dezenas de milhares de pessoas e sem causar uma catástrofe ambiental. Nenhum democrata diria isto porque nenhum democrata tomou essa posição. Henry Gonzalez e Barbara Boxer tomaram-na. No entanto, o número de pessoas que o fez é tão marginal que, praticamente, não existe. Dado o facto de que quase nenhum político democrático diria isso, Clayton Yeuter é livre de fazer as suas declarações.
Quando os mísseis Scud atingiram Israel, ninguém, nos jornais, aplaudiu. Estamos, mais uma vez, perante um facto interessante a respeito de um sistema de propaganda a funcionar bem. Podemos perguntar, porque não? No fim de contas, os argumentos de Saddam Hussein são tão bons quanto os de George Bush. Afinal, quais eram? Tomemos o Líbano. Saddam Hussein diz que não pode apoiar a anexação; que não pode deixar Israel anexar os Montes Golãs sírios e Jerusalém Oriental, contra a decisão unânime do Conselho de Segurança. Não pode apoiar a anexação. Não pode apoiar a agressão. Israel ocupa o sul do Líbano desde 1978, violando as resoluções do Conselho de Segurança, o que ele recusa aceitar. No decurso desse período, todo o Líbano foi atacado e bombardeado. Não pode apoiar. Leu o relatório da Amnistia Internacional sobre as atrocidades israelitas na Margem Ocidental. O seu coração sangra. Não pode apoiar. As sanções não podem resultar porque os Estados Unidos as vetam. As negociações não podem resultar porque os Estados Unidos as bloqueiam. Para além da força, que é que mais existe? Esteve à espera durante anos. Treze anos no caso do Líbano, vinte no caso da Margem Ocidental. Este argumento já se ouviu antes. A única diferença entre esse e o que as pessoas ouviram é que Saddam Hussein pode dizer com verdade que as sanções e as negociações não funcionam porque os Estados Unidos as bloqueiam. Todavia, George Bush não podia dizer isso, porque claramente as sanções funcionaram e há todas as razões para crer que as negociações só não resultaram porque ele recusou, inflexivelmente, prossegui-las, dizendo explicitamente que não havia lugar para negociações. Alguém na Imprensa se referiu a isto? Não. É uma banalidade. E algo que, mais uma vez, um adolescente instruído podia imaginar. Estamos, de novo, perante um sinal de uma cultura totalitária bem orientada. Mostra que a fábrica dos consentimentos está a trabalhar.
Último comentário sobre este assunto. Nós podíamos apresentar muitos exemplos. Tome-se a ideia de que Saddam Hussein é um monstro prestes a conquistar o mundo — o que muita gente acredita ser verdade nos Estados Unidos. Trata-se de uma ideia que foi metida, vezes sem conta, na cabeça das pessoas. Ele está prestes a conquistar tudo. Conseguimos pará-lo agora. Como é que ele conseguiu ser tão poderoso? O Iraque é um país pequeno, um país do terceiro-mundo, sem qualquer base industrial. Durante oito anos combateu contra o Irão. Esse Irão pós-revolucionário que tinha dizimado o seu corpo de oficiais e grande parte da sua força militar. O Iraque tinha algum apoio nesta guerra. Era apoiado pela União Soviética, pelos Estados Unidos, pela Europa, pelos principais países árabes e pelos produtores de petróleo árabes e não conseguiu derrotar o Irão. Mas de repente estava pronto para conquistar o mundo. Alguém viu isto referido? A realidade é que o Iraque é um país do terceiro-mundo com um exército formado por camponeses. Hoje admite-se que houve uma certa desinformação a respeito das fortificações, das armas químicas, etc. No entanto, alguém veio assinalar isto? Não. Praticamente, não se encontra ninguém que o tenha feito. É típico.
Repare-se que isto foi feito exactamente um ano depois de a mesma coisa ter sido feita a Manuel Noriega. Este Manuel Noriega é um rufião de segunda categoria comparado, nesta matéria, com o amigo de George Bush, Saddam Hussein, ou com outros amigos de George Bush em Pequim, ou com o próprio George Bush. Comparado com eles, Noriega é mesmo um rufião de segunda categoria. Mau, mas não um rufião de classe internacional, do género de que nós gostamos. Foi transformado numa criatura maior do que a vida. Ia destruir-nos, chefiando os narco-traficantes. Tínhamos que actuar rapidamente e esmagá-lo, matando umas centenas ou uns milhares de pessoas, devolvendo o poder a uma pequena oligarquia branca, talvez uns oito por cento, e pondo os funcionários militares norte-americanos a controlarem o sistema político a todos os níveis. Tínhamos de fazer todas estas coisas porque, no fim de contas, tínhamos de nos salvar, ou então seríamos destruídos por este monstro. Um ano mais tarde, Saddam Hussein fez a mesma coisa. Alguém falou nisso? Alguém falou no que acontecera ou porquê? Será muito difícil encontrar alguma referência sobre o assunto.
Note-se que nada disto é diferente do que se passou com a Comissão Creel quando, para nos salvar dos «hunos» que andavam a arrancar os braços das crianças belgas, transformou uma população pacífica num bando de exaltados que queriam destruir tudo na Alemanha. As técnicas talvez sejam mais sofisticadas, com a televisão e grandes somas de dinheiros envolvidas, mas as ideias são bastante tradicionais.
Penso que esta questão, para voltar ao meu assunto original, não se limita simplesmente à desinformação e à crise do Golfo. A questão é muito mais ampla. É a escolha entre querer viver numa Sociedade livre ou querer viver numa espécie de totalitarismo auto-imposto, com o rebanho tolo marginalizado, dirigido, aterrorizado, gritando palavras de ordem patrióticas, receando pela vida e admirando com reverência o líder que o salvou da destruição, enquanto as massas educadas marchavam quando as mandavam e repetiam as palavras de ordem que era suposto repetirem, ao mesmo tempo que a Sociedade do país se deteriora. Acabamos como um Estado policial mercenário, à espera de que outros nos paguem para subjugar o mundo. São estas as escolhas.