A história que vamos contar de seguida é um exemplo de como os reguladores não protegem os interesses dos doentes, protegendo, isso sim, os interesses da Indústria Farmacêutica.
Um caso envolvendo a Agência Europeia do Medicamento (EMA)
Em 2007, investigadores do Nordic Cochrane Centre estavam a trabalhar numa revisão sistemática de dois medicamentos amplamente utilizados para a perda de peso, o orlistat e o rimonabant. Uma revisão sistemática é o resumo por excelência da evidência sobre a eficácia de um tratamento. Fornece-nos os melhores conhecimentos possíveis sobre os verdadeiros efeitos de um tratamento, incluindo os efeitos secundários. A sua realização, porém, exige acesso a toda a evidência existente: se falta alguma, sobretudo se os dados negativos são deliberadamente difíceis de obter, ficamos com uma imagem distorcida da realidade.
Os investigadores sabiam que os dados dos ensaios que conseguiram encontrar na literatura académica publicada eram provavelmente incompletos, porque é costume os ensaios negativos não serem publicados. Mas também sabiam que a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) teria em sua posse, grande parte dessas informações, uma vez que os fabricantes de medicamentos são obrigados a entregar os relatórios dos estudos ao regulador para obter uma autorização de introdução do medicamento no mercado. Como se espera que os reguladores actuem nos interesses dos doentes, os investigadores solicitaram à EMA os protocolos e relatórios de estudo. Fizeram-no em Junho de 2007.
Em Agosto, a EMA respondeu: tinha decidido não lhes entregar os relatórios de estudo desses ensaios, e invocava o capítulo do seu regulamento que lhe permite proteger os interesses comerciais e a propriedade intelectual das empresas da Indústria Farmacêutica. Os investigadores responderam imediatamente: não havia nos relatórios de estudo nada que prejudicasse a protecção dos interesses comerciais de seja quem for, explicavam. Mas, caso houvesse, será que a EMA se importava de explicar porque haveriam os interesses comerciais das empresas da Indústria Farmacêutica de se sobrepor ao bem-estar dos doentes?
Devíamos parar um momento e reflectir no que anda a EMA a fazer. É o regulador que aprova e monitoriza medicamentos em toda a Europa, com a finalidade de proteger o público. Os médicos e os doentes só podem tomar decisões significativas sobre tratamentos se tiverem acesso a todos os dados. A EMA tem-nos mas decidiu que os interesses das empresas eram mais importantes.
Esta atitude interpreta mal uma diferença crucial entre as decisões tomadas pelos reguladores e as decisões tomadas pelos médicos. Ao contrário do que alguns reguladores parecem ter em mente, um medicamento não é nem “bom” — e, portanto, no mercado — nem “mau” — e, portanto, fora dele. Um regulador toma uma decisão sobre se é do interesse da população no seu todo que o medicamento esteja disponível para uso, “sim ou não”, sempre — mesmo que só em certas circunstâncias muito obscuras, pouco frequentes e com muita cautela. Essa fasquia é colocada muito baixo e muitos medicamentos que estão no mercado (na verdade, a esmagadora maioria) poucas vezes são usados.
Um médico precisa de usar a mesma informação a que o regulador tem acesso para tomar uma decisão muito diferente: este medicamento será o indicado para o doente que tenho à minha frente neste momento? O simples facto de um medicamento ser aprovado para ser receitado não quer dizer que seja particularmente bom, ou o melhor. Com efeito, em cada situação clínica, há que tomar decisões complexas sobre que medicamento é melhor. Talvez o doente não tenha conseguido melhorar com um determinado medicamento, e o médico queira experimentar outro, de outra classe de fármacos; talvez o doente sofra de problemas renais ligeiros, e o médico não queira usar o medicamento mais popular porque provoca muitos problemas ocasionais em doentes com problemas renais; talvez queira um medicamento que não interfira com outros que o doente está a tomar.
Estas considerações complexas constituem os motivos pelos quais concordamos com a existência de uma gama de medicamentos no mercado: ainda que alguns sejam menos úteis em geral, podem ser úteis em circunstâncias específicas. Mas necessitamos de poder ver todas as informações sobre eles, para podermos tomar estas decisões. Não basta que os reguladores afirmem majestosamente que aprovaram um medicamento e que, portanto, nos devemos sentir todos felizes por um receitá-lo. Os médicos e os doentes precisam dos dados tanto quanto os reguladores.
Em Setembro de 2007, a EMA confirmou junto dos investigadores da Cochrane que não iria partilhar os relatórios de estudo sobre o orlistat e o rimonabant, e explicou que tinha uma política de nunca revelar os dados entregues como parte integrante de um processo de autorização de introdução no mercado. Surgiu um grave problema. Esses medicamentos para a perda de peso estavam a ser amplamente receitados em toda a Europa, mas os médicos e os doentes não conseguiam aceder a informações importantes sobre o modo como funcionavam, a gravidade dos efeitos secundários, qual deles era o mais eficaz e mais uma série de outras questões importantes. Devido a esta falta de informação reforçada pela EMA, doentes reais estavam a ser expostos a danos potenciais, nas decisões quotidianas de prescrição desses medicamentos.
Os investigadores recorreram ao Provedor de Justiça Europeu, apresentando duas alegações claras. Em primeiro lugar, a EMA não tinha fornecido razões suficientes para lhes recusar o acesso aos dados, e, em segundo, a declaração sintética de que os interesses comerciais deviam ser protegidos não se justificava, porquanto não existia nos resultados dos ensaios material com interesse comercial, além dos dados sobre segurança e eficácia, a que médicos e doentes necessitam obviamente de aceder. Não o sabiam nesse momento, mas tratava-se do início de uma batalha em torno dos dados que iria envergonhar a EMA e durar mais de três anos.
A EMA demorou quatro meses a responder e, ao longo do ano que se seguiu, não fez mais que reiterar a sua posição: em seu entender, qualquer tipo de informação cuja divulgação pudesse “irracionalmente lesar ou prejudicar os interesses comerciais de indivíduos ou empresas” era comercialmente confidencial. Segundo a EMA, os relatórios de estudo podiam conter informações sobre os planos comerciais para os fármacos. Os investigadores responderam que tal era pouco provável, mas que, se o fosse, a importância era marginal tendo em conta o contexto muito mais importante e premente em que se integrava: “Como consequência provável da posição da EMA, os doentes podem morrer desnecessariamente e ser tratados com fármacos inferiores e potencialmente prejudiciais.” Consideravam a posição da EMA eticamente indefensável. Além disso, afirmavam, a EMA tinha um conflito de interesses claro: os dados poderiam ser usados para contestar a sua perspectiva sobre os benefícios e riscos desses tratamentos. A EMA não conseguia explicar por que motivo o acesso de médicos e doentes aos relatórios e protocolos dos estudos poderia prejudicar os interesses comerciais razoáveis de fosse quem fosse, e por que motivo esses interesses comerciais eram mais importantes do que o bem-estar dos doentes.
Foi então que, quase dois anos depois do início deste processo, a EMA mudou de táctica. De repente, começou a argumentar que os relatórios de estudo continham dados pessoais dos doentes envolvidos. Esse argumento ainda não tinha sido apresentado pela EMA, mas também é falso. É possível que houvesse algumas informações em algumas secções inteiras dos relatórios de estudo que pormenorizassem algumas reacções estranhas ou possíveis efeitos secundários de alguns participantes individuais, mas estavam todas no mesmo apêndice, que podia ser facilmente retirado.
As conclusões do Provedor de Justiça Europeu foram claras: a EMA não cumprira a sua obrigação de fornecer explicações adequadas ou sequer coerentes dos motivos pelos quais estava a recusar o acesso a essas importantes informações. Tirou uma primeira conclusão de má gestão. Depois de o fazer, não era obrigado a fornecer mais opiniões sobre as desculpas débeis apresentadas pela EMA, mas decidiu fazê-lo mesmo assim. O seu relatório é esmagador. A EMA falhara redondamente na resposta a uma séria acusação de que a sua recusa de informação sobre esses ensaios contrariava o interesse público e expunha doentes a prejuízos. O Provedor de Justiça também descrevia como estudara pessoalmente, e em pormenor, os relatórios de estudo e como descobrira que estes não continham quaisquer informações comercialmente confidenciais nem quaisquer pormenores desenvolvimento comercial dos medicamentos. As alegações da EMA de que a anuência ao pedido lhe exigiria uma sobrecarga administrativa excessiva eram falsas, pois a agência sobrestimara o trabalho que isso teria envolvido: especificamente, explicava o Provedor, seria fácil remover quaisquer dados pessoais, nos sítios onde apareciam ocasionalmente.
O Provedor de Justiça disse à EMA que entregasse os dados ou que desse uma explicação convincente do motivo por que não o fazia. De forma surpreendente, a agência, o regulador dos medicamentos que abrange toda a Europa, continuou a recusar-se a entregar os documentos. Durante esse período, houve decerto pessoas que sofreram desnecessariamente, e é provável que algumas também tenham morrido, apenas por falta de informação. Mas o comportamento da EMA ainda se deteriorou mais, deslizando para uma situação abertamente surreal. Argumentava a agência que qualquer fragmento de informação acerca do que a empresa pensava sobre o modo de realizar o ensaio, que pudesse ser intuído a partir da leitura dos relatórios de estudo e dos protocolos, era comercialmente sensível no que dizia respeito às suas ideias e planos. Segundo a EMA, isto aplicava-se até aos Fármacos já no mercado, e as informações provinham dos ensaios clínicos finais, mesmo no fim do processo comercial de desenvolvimento do fármaco. Os investigadores responderam que isso era perverso: sabiam que os dados retidos costumam ser negativos, pelo que era menos provável que qualquer empresa informada de dados negativos sobre esses medicamentos tentasse comercializar um medicamento rival, se lhe parecesse que os benefícios dos medicamentos eram mais modestos do que inicialmente se pensava.
Porém, as coisas não ficaram por aí. A EMA também refutou altaneiramente a ideia de que havia vidas em risco, afirmando que, nessa matéria, o ónus da prova cabia aos investigadores. Penso que esta atitude é algo desdenhosa. É pura verdade que, se os médicos e os doentes não conseguem avaliar qual é o melhor tratamento, tomarão decisões piores, expondo doentes a danos desnecessários. Além disso, é óbvio que um número muito maior de académicos a emitirem juízos transparentes sobre dados de ensaios publicamente acessíveis constitui uma maneira muito mais sensata de determinar os riscos e benefícios de uma intervenção do que um seco “sim ou não” global e um sumário de um regulador. Isto é verdade para medicamentos como o orlistat e o rimonabant, mas também é verdade para qualquer medicamento, e veremos muitos casos em que os académicos detectaram problemas com medicamentos que tinham escapado aos reguladores.
Então, em 2009, um dos dois medicamentos, o rimonabant, foi retirado do mercado, por aumentar o risco de problemas psiquiátricos graves e de suicídio. Isto passou-se enquanto a EMA argumentava que os investigadores não tinham razão em afirmar que a recusa de informações estava a prejudicar doentes.
E foi então que a EMA declarou que o próprio delineamento de um ensaio aleatório constituía informação comercialmente confidencial.
Não faz qualquer sentido afirmar realisticamente que o delineamento de um ensaio aleatório controlado constitui uma peça de propriedade intelectual, comercialmente confidencial ou patenteável.
Passara a ser uma farsa. Os investigadores despejaram o saco. A EMA estava a violar a Declaração de Helsínquia, o código internacional de ética médica, que afirma que todos os indivíduos envolvidos em investigação têm o dever de tomar públicos os resultados dos ensaios. Os investigadores sabiam que os artigos publicados divulgavam um subconjunto lisonjeiro dos dados do ensaio, e a EMA também o sabia. Continuariam a morrer doentes se a EMA continuasse a reter dados. Não havia nessas informações nada com grande valor comercial. Os curtos sumários de dados que a EMA divulgara eram inexactos. A EMA era cúmplice na exploração de doentes para obtenção de lucros.
Estava-se em Agosto de 2009, e os investigadores lutavam havia mais de dois anos para aceder a dados sobre dois fármacos amplamente receitados, dados esses que estavam na posse da própria organização que devia proteger os doentes e o público. Não estavam sozinhos nessa luta. A revista francesa Prescrire também estava a tentar obter os documentos da EMA sobre o rimonabant. Enviaram-lhe alguns documentos sem qualquer préstimo, incluindo o notável “Relatório Final de Avaliação“, da agência sueca que tratara da aprovação do fármaco muito tempo antes. É possível ler online a sua versão integral em formato PDF. Ou melhor, não é. Na fonte [1], pode ver exactamente o aspecto que tinha o documento contendo a análise científica do medicamento que a EMA enviou a uma das publicações médicas mais prestigiadas de França. Trata-se de um insulto.
Entretanto, a Autoridade Médica Dinamarquesa tinha entregado mais de cinquenta e seis relatórios de estudo à Cochrane (embora ainda estivessem em falta mais, da EMA); uma queixa da empresa da Indústria Farmacêutica sobre esta questão tinha sido rejeitada pelo governo dinamarquês, que não via nenhum problema relacionado com informações comerciais (não havia nenhuma), nem com sobrecarga administrativa (era mínima), nem com a ideia de que o delineamento de um ensaio aleatório era informação comercial (o que dá vontade de rir). Era o caos. A EMA — que era responsável pela EudraCT, o instrumento de transparência que estava a ser mantido em segredo — estava a ficar numa situação delicadíssima. Parecia disposta a fazer fosse o que fosse para ocultar de médicos e doentes essas informações. Esse nível de secretismo é o seu comportamento habitual.
Chegamos agora ao final desta história concreta envolvendo a EMA. A agência entregou os relatórios de estudo finais, na íntegra, ao Provedor de Justiça, recordando-lhe que até o índice de cada um deles era comercial. A opinião final do Provedor não tardou depois de os documentos estarem nas suas mãos. Não continham nenhuns dados comerciais, nem informações confidenciais sobre doentes. Entreguem-nos ao público, já. A EMA, a um ritmo glacial, acordou um prazo para entregar os dados aos investigadores, médicos e doentes que necessitassem deles. A decisão final do Provedor foi publicada em finais de Novembro de 2010.[2] A queixa inicial tinha sido apresentada em Junho de 2007. Tinham sido três anos e meio de lutas, obstruções e argumentos falaciosos por parte da EMA, período durante o qual um dos medicamentos foi retirado do mercado por estar a fazer mal a doentes.
Após o estabelecimento deste precedente, os investigadores da Cochrane aperceberam-se de que estavam em boa posição para solicitarem mais relatórios de estudo, pelo que começaram a fazê-lo. A primeira área em que tentaram recolher mais documentação foi a dos anti-depressivos. Era um bom ponto de partida pois estes fármacos têm sido, nos últimos anos, o foco de alguns comportamentos particularmente maus (embora devamos recordar que a questão dos dados em falta se estende a todos os cantos da medicina). O que aconteceu a seguir foi ainda mais estranho do que a batalha de três anos com a EMA por causa da ocultação de informações sobre o orlistat e o rimonabant.
Os investigadores apresentaram o seu pedido à EMA, mas foi-lhes dito que os fármacos tinham sido aprovados numa época em que as autorizações de introdução no mercado eram concedidas pelos países, individualmente, e não centralmente pela EMA. Essas autorizações locais eram, posteriormente, “copiadas” para todos os países. Como era a MHRA, o regulador dos Medicamentos no Reino Unido, que detinha as informações que os investigadores queriam, teriam de a contactar para obterem uma cópia. Com o devido respeito, os investigadores escreveram à MHRA, solicitando os relatórios sobre um fármaco chamado fluxetina, e depois esperaram pacientemente. A resposta lá veio: a MHRA explicava que teria todo o gosto em disponibilizar-lhes essas informações, mas que havia um problema.
Os Documentos tinham sido todos destruídos. [3]
Isto tinha a ver, explicava a MRHA, com a política de conservação da agência: os documentos só eram conservados se tivessem um interesse particular (científico, histórico ou político), e esses ficheiros não cumpriam tais critérios. Paremos um momento para reflectir sobre quais deveriam ser os critérios. No que toca aos antidepressivos ISRS, tem havido muitos escândalos sobre ocultação de dados, o que só por si deveria bastar, mas, se recuarmos ao início deste capítulo, um deles, a paroxetina, esteve envolvido numa investigação sem precedentes, durante quatro anos, sobre a possibilidade de a GSK ser acusada criminalmente. Essa investigação da paroxetina foi a maior investigação que a MHRA realizou sobre segurança de medicamentos: aliás, foi a maior investigação de qualquer tipo realizada pela MHRA. Além disso, esses relatórios de estudo originais contêm dados de importância vital sobre segurança e eficácia. Mas a MHRA destruiu-os mesmo assim, considerando que não tinham suficiente interesse científico, histórico ou político.
Conclusão
Actualmente, é comum ouvir-se a frase “confio na ciência“. Mas a ciência depende de financiamentos avultados, e como tal, depende da motivação do financiador. São raras as investigações completamente independentes.
No caso da Indústria Farmacêutica, a motivação é o lucro.
É muito fácil enviesar um ensaio clínico, no sentido de fazer o fármaco estudado parecer mais seguro e mais eficaz, e há várias formas de o fazer: através de vários truques estatísticos, manipulação da amostra e muitos outros expedientes. O enviesamento até acontece, mesmo quando não há intenção directa de o fazer, pelo simples facto de o objectivo ser provar que o fármaco obtém bons resultados.
A transparência dos reguladores é a única proteção que temos contra estes possíveis vieses. Até entidades independentes como a Cochrane dependem dos dados fornecidos pelos reguladores. Mas como se pode verificar por esta história (e outras tantas há que poderei relatar), os reguladores parecem estar ao serviço da Indústria Farmacêutica e não dos doentes, a quem eles deveriam servir.
Os próprios médicos são vítimas desta situação, por serem privados de informação essencial para melhor poderem servir os doentes.
Perante esta realidade, o que significa quando se diz que se acredita/confia na ciência?
Fontes:
[2] Descrição do provedor de justiça europeu que encerrou o seu inquérito relativo à queixa 2560/2007/BEH contra a EMA.
[3] «Opening up data at the European Medicines Agency?, The BMJ. 10 de Maio de 2011