A crescente desistência de Salgado Zenha, a partir de 1976, faria com que um amigo seu, António de Almeida Santos, viesse, subtilmente, a ocupar cada vez mais o lugar de “número dois” do PS. Não era um lugar que estivesse previsto no partido mas sim uma posição de influência adquirida, que reflectia um misto da principal fonte de energia intelectual, de que o secretário-geral necessitava, com a percepção, pelo resto do partido, da pessoa que mais influência exercia sobre ele. Mário Soares nunca teve vocação de “homem só” e sempre que se encontrava nessa circunstância pendia para situações de grande insegurança pessoal. Necessitava tanto de um “número dois” como de se fazer rodear de “admiradores”. Almeida Santos aderira ao Partido Socialista em 1976, fora várias vezes ministro nos governos provisórios e, segundo Mário Soares, era “uma máquina de trabalho impressionante”, “foi o grande legislador do 25 de Abril” e “autor de quase todas as leis importantes que se publicaram durante a vigência do regime democrático” [1] tendo sido mesmo ministro de estado do efémero segundo governo constitucional. Tinha de facto um extraordinário talento, escrevia com brilho e era um excelente e mordaz orador político, além de ser detentor de inúmeros contactos com o mundo dos negócios. Contudo, ao contrário de Salgado Zenha, era incapaz de contrariar Mário Soares, mesmo quando este lhe criava situações de grande humilhação. Era ponto assente, no «gabinete crise» da moção “Novo Rumo” que reunia sob os auspícios da fundação de Relações Internacionais, antes da adesão de Jaime Gama à moção liderada por Mário Soares, que Almeida Santos seria o próximo candidato a primeiro-ministro, reservando-se Mário Soares para candidato à presidência da República em 1985. No quarto congresso, que teria lugar no Coliseu dos Recreios em Maio de 1981, Mário Soares, único candidato a secretário-geral, obteria 72% dos votos dos congressistas. A “sua” estratégia, “Um Novo Rumo para o PS“, teria 62 % enquanto o “ex-secretariado” conseguiria 34 % dos votos.
Salgado Zenha, contrariamente ao que muitos previram, não se candidataria contra Mário Soares. Enganara-se Mário Soares quando pensara que o seu velho amigo pretendera liderar o partido contra ele e enganaram-se os “ministeriáveis” do “ex-secretariado” quando contaram com ele para seu “cavalo de Tróia“. Salgado Zenha não se candidataria não porque tivesse receio de poder vir a perder tal batalha, como alguns diriam depois, mas tão somente porque deixara de estar emocionalmente com o Partido Socialista e, essencialmente, com Mário Soares. Como também tinham deixado e deixariam de estar muitos outros, sem os quais o líder socialista, provavelmente, não obstante o seu reconhecido charme, por si só, nunca teria alcançado a promoção Política que acabaria por ter. Agora, livre do elemento que mais sombra lhe poderia ter feito, rodear-se-ia de uma direcção executiva que ele chamaria “homogénea” mas que a começar pelo “número dois” não passaria de uma boa desculpa para confirmar o exercício, sem pudor, do poder absoluto que Zenha o acusara de querer desenvolver. Mesmo assim e apesar de não existir, então, ninguém com poder ou prestígio para o enfrentar, as críticas à sua maneira de administrar o partido tinham aumentado de tal forma que, no estilo que tanto o caracterizou, não teve o menor problema em substituir o tesoureiro do PS. Fez de conta que nada tivera que ver com a actuação de Fernando Barroso ao longo de cinco anos — que por acaso até era seu cunhado — e substituiu-o por um outro homem de sua confiança pessoal, por ele escolhido e que pouca gente conhecia, de nome José Alberto Menano do Amaral. Por acaso até tinha nome “na praça” enquanto engenheiro e gestor, tendo sido secretário de estado do emprego no segundo governo constitucional, em substituição de Manuel Tito de Morais, que se opusera à coligação PS/CDS. A sua referência política vinha de um grupo de meia dúzia de familiares e amigos de Mário Soares que por ocasião do primeiro congresso do PS, em Dezembro de 1975, se intitulava “GAPS” e que o livro “oficial” do PS, «Cem Anos de Esperança», descreve como sendo um grupo ligado ao “socialismo de base”.
Almeida Santos assumiria o pelouro dos “assuntos parlamentares” para obedientemente poder confrontar Salgado Zenha, então ainda presidente do grupo parlamentar do PS, no seio do qual o “ex-secretariado” detinha a maioria dos deputados. Jorge Campinos, que por convicção e amizade defendera Soares e mobilizara todo o esquema organizativo de apoio das bases à moção “Novo Rumo para o PS”, viria a deter o pelouro da “organização” do qual se demitiria um ano depois. António Campos, um dos homens de mão para qualquer eventualidade, suceder-lhe-ia então. Mário Cal Brandão, um homem de bem e um dos verdadeiros valores do PS que, juntamente com Manuel Tito de Morais, Raúl Rego, António Macedo, Teófilo Carvalho dos Santos, Francisco Ramos da Costa, Joaquim Catanho de Menezes, Fernando Vale, entre outros, ao longo de muitos anos de luta desinteressada representariam, em última instância, o grande património inaproveitado do PS, assumiria a “administração” do partido. Era uma forma de dar cobertura à administração financeira do PS, que Mário Soares nunca deixaria “por mãos alheias”. Eduardo Pereira que se mostrara ser um antieanista nas negociações em que representara o Partido Socialista e chegara à posição de confiança que a presidência da fundação Azedo Gneco e, sobretudo, a vice-presidência da FRI, lhe dariam. Walter Rosa seria responsável pelo “gabinete de estudos” e eu continuaria à frente das “relações internacionais”. Todos os membros desta comissão permanente, como o secretariado nacional passaria a designar-se, eram fiéis “soaristas” e antieanistas, sem qualquer margem para dúvida. O único que com ele tivera sérias divergências em várias ocasiões e até se sentira tentado a suceder-lhe seria Jaime Gama, que viria a ocupar o pelouro da “informação”.
O novo rumo do PS implicava para além do mais rigoroso controlo que Soares exerceria sobre a vida do partido e, em especial, sobre os seus aspectos financeiros, o lançamento de “infraestruturas” que servissem de sustentáculo económico às actividades do partido e do secretário-geral e, muito especialmente, para permitir o lançamento da sua candidatura à presidência da República, em 1985. Nas fundações, depois de perdido o “Instituto de Estudos para o Desenvolvimento” para a minoria, passaria a haver menos dinheiro e maior controlo dos alemães — quer na José Fontana quer na Antero de Quental, acabando a Azedo Gneco por se diluir numa empresa de serviços, creio que co-participada pela fundação Friedrich Ebert, de nome “Consera”. Bernardino Gomes seria encarregado com Fernando Barroso e Menano do Amaral de estudar o lançamento de “empresas partidárias” tendo em 1981 recomendado “a criação de uma ou mais empresas, ligadas indirectamente ao Partido Socialista, que actuassem em diferentes áreas económicas… com o objectivo de encontrar a médio prazo financiamentos capazes de garantir uma vida económica sã ao Partido Socialista“. Segundo ele, “em momentos de crise Política interna que poderiam pôr em causa os equilíbrios internacionais não foi difícil ao Partido Socialista encontrar meios financeiros”, mas as “várias tentativas que foram surgindo fracassaram todas porque tinham o mesmo defeito: eram constituídas por grupos de pessoas que não se sentiam minimamente envolvidas nos projectos, limitando-se a dar o nome, por imperativos partidários, mas cuja colaboração terminava aí” e, segundo afirmaria então, “a solução recentemente encontrada de criar empresas em que os gestores escolhidos tenham interesses próprios a defender é a única maneira de se poder vir a ter empresas que possam ser benéficas para as instituições que as patrocinam. Quanto maior for a rentabilidade para o gestor maior será a rentabilidade para os sócios maioritários”. [2]
Como resultado desta estratégia, seria constituída em Dezembro de 1981 a empresa “Parsogal” com um capital de 3 mil contos distribuídos equitativamente por Fernando Barroso, Menano do Amaral e por mim. Desta sairia em meados de 1982 a “Ciporgal“ com um capital de mil e quinhentos contos, dos quais setecentos e trinta e cinco pertenciam à empresa “mãe”, a Parsogal, seiscentos e quinze estavam em meu nome, setenta e cinco em nome de Fernando Barroso e setenta e cinco no de Bernardino Gomes. Eu representaria, simultaneamente, a posição da FRI, que era de 540 mil escudos, sendo setenta e cinco contos o capital que me era atribuído enquanto recompensa pela minha contribuição pessoal. Como se pode facilmente imaginar, todo o capital da Parsogal estaria destinado a representar os interesses do PS e o próprio nome da empresa seria uma clara referência à ligação com o Partido Socialista. “A Ciporgal nasceu como um projecto empresarial da fundação de Relações Internacionais com o objectivo de garantir a independência económica futura a esta instituição” e “poder-se-á pensar como objectivos iniciais, o financiamento da FRI a partir de 1984 e de actividades políticas de grande envergadura em 1985” [3]. Estas actividades de grande envergadura, em 1985, referiam-se à campanha eleitoral de Mário Soares para a presidência da República, tendo sido postos à disposição destes projectos cem mil dólares, o que equivalia, em 1982, a 8 milhões e quatrocentos mil escudos. Bernardino Gomes abriria então uma conta no BPA em seu nome, onde depositaria 4.933.659$00 desse dinheiro e instalaria a Ciporgal na sede da fundação José Fontana. Além de despesas de representação, viagens de alguns elementos do PS e mobiliário para a Ciporgal, seriam pagas já em 1985, com o resto do dinheiro destinado a esta empresa, dívidas eleitorais do PS a uma empresa francesa, Laser Creations, contratada pela comissão técnica eleitoral. Mas estas empresas creio que nunca chegariam a ter qualquer actividade e, depois de constatar que permaneciam inactivas, eu cederia a cota em meu nome na Parsogal à Ciporgal e Menano do Amaral cederia a sua a Eduardo Barroso. Entretanto já Fernando Barroso detinha pessoalmente o controlo da empresa Ciporgal.
Outros projectos, a que não estaria pessoalmente ligado, seriam a empresa Projectoplano, lançada em 1979 por Almeida Santos através do seu colega de escritório Deodato Coutinho e pelo acessor de Mário Soares, Mário Nunes da Silva, na altura do conselho directivo da fundação José Fontana. A Projectoplano era uma empresa de “prestação de serviços de consulta técnica e jurídica nos domínios económico e financeiro” que teve como associados vários ex-ministros e secretários de estado socialistas como Carlos Melancia e Machado Rodrigues e que, em 1982, após acordo com a fundação Ebert, seria dinamizada — na sequência da vitória da moção de Mário Soares — pelo tesoureiro do partido, Menano do Amaral e presidida pelo ex-ministro do plano e da habitação e obras públicas, António Sousa Gomes. Segundo a comunicação social descreveu recentemente, esta empresa ainda estava bem viva em 1994 e concorria em condições descritas como pouco claras a posições no quadro da “Expo 98” [4]. A Globetraders era outra empresa que seria lançada para a mediação em negócios, consultoria e comércio externo e para onde Mário Soares designaria os seus homens da “CEIG“, João Tito de Morais, Francisco Calheiros, Amândio Silva e José Lobato. No âmbito da fundação José Fontana, inicialmente, e, depois, da “CEIG“, seria também constituída uma empresa de processamento de dados que continha, por um lado, os ficheiros do PS, e por outro, prestava serviços de contabilidade. Tinha o nome de SORT e foi inicialmente dirigida pela ex-deputada Maria Emília de Melo e, posteriormente, por uma cunhada de Mário Soares.
Mas não será exagerado afirmar que, com a vitória no recente congresso, a fundação de Relações Internacionais passaria a ser a menina dos olhos de ouro do secretário-geral do PS, tendo ali sido movimentadas somas consideráveis durante o período em que ele acumularia estas funções com as de primeiro-ministro e de presidente da fundação, de Janeiro de 1981 a Março de 1986. Só ao Partido Socialista seriam entregues e contabilizados mais de oitenta mil contos. Muitas outras verbas oriundas de empresários vários, contudo, nem chegavam a entrar na fundação, sendo imediatamente endossadas à ordem do PS. A fundação era igualmente proprietária dos veículos postos à disposição do secretário-geral do PS, entre os quais um Volvo oferecido por meu intermédio pelo Partido Social-Democrata sueco. Como Mário Soares pretendia mostrar ao PS que enquanto seu secretário-geral nada do partido alguma vez recebera, seria também pela FRI que cobriria algumas das suas viagens e actividades, assim como de alguns dos seus familiares. Recordo-me por exemplo da viagem do casal Soares à China em 1982, de Isabel Soares que acompanharia o seu pai à tomada de posse de Luís Alberto Monge na Costa Rica também em 1982 e o patrocínio ao livro que Alfredo Barroso escreveria para homenagear o seu tio, Mário Soares: 40 anos de luta pela democracia. Mas a fundação de Relações Internacionais desenvolveria, também, ao longo dos cinco primeiros anos de presidência de Mário Soares, algumas actividades de grande prestígio. A fundação tinha, para além dos seus cuidadosamente estudados estatutos, todas as condições, incluindo a de “utilidade pública” concedida pelo primeiro-ministro Francisco Pinto Balsemão, para ser a futura base de Mário Soares. Era essa a ideia em 1981, quando se previu esta alteração a partir do momento em que ele deixasse de ter funções políticas.
As reuniões da comissão permanente passariam a ser quase diárias e aí se começaria a definir a estratégia pré-eleitoral do partido. Havia o sentimento generalizado de que a Aliança Democrática não duraria muito tempo. Mário Soares estava convencido de que Pinto Balsemão era uma pessoa extremamente fraca e artificial, sem “estofo” de primeiro-ministro mas, por qualquer razão, convencer-se-ia de que este pretendia um acordo com o PS. Já em Janeiro escrevera a Callaghan dizendo que “o clima político em Portugal mudou substancialmente no último mês a seguir à trágica morte de Sá Carneiro” acrescentando que a Aliança Democrática tinha “entrado numa crise de liderança e na sua opinião o presente governo AD é fraco e com um futuro tremido” tendo mesmo os grupos mais progressistas do PSD “dúvidas sobre a presente coligação e sem dúvida prefeririam cooperação com o Partido Socialista” [5]. Mário Soares também tinha dito algo semelhante a Tony Benn quando este visitou Portugal e a sede do PS, onde teria um encontro com Mário Soares e comigo [6]. Mas, na realidade, uma das primeiras prioridades da comissão permanente, antes de pensar nas coligações com que Soares começara já a sonhar, era a de conseguir com o PSD os necessários dois terços para a revisão constitucional. Não era prioritário, a curto prazo, pensar no governo. E que embora vencido o “ex-secretariado” no quarto congresso, este grupo permanecia maioritário no grupo parlamentar e a sua não adesão às propostas de revisão da constituição poderia inviabilizar o que era para a nova direcção do PS um ponto de honra. Um bloqueio do grupo parlamentar do PS por parte do ex-secretariado, poderia também, como é evidente, prejudicar os planos de Mário Soares de candidatura à presidência da República.
Assumia-se, igualmente, que Almeida Santos seria o próximo candidato do PS a primeiro-ministro, daí que quaisquer discussões sobre estratégia do partido, relacionada com coligações ou futuros governos, era do foro íntimo de Mário Soares e seria matéria a adiar. Jaime Gama não participara no “gabinete crise” da moção de Mário Soares e era conhecida a sua oposição à designação de Almeida Santos para o cargo de candidato “oficial” do PS a primeiro-ministro e, por seu lado, arrastaria, então, outras opiniões de peso contra Almeida Santos. Ora, sendo a questão da revisão constitucional prioritária e a preocupação com o domínio que Salgado Zenha detinha no grupo parlamentar obsessiva, Soares convencer-se-ia de que este se preparava para fazer frente às suas ordens e encarregaria Almeida Santos da desagradável tarefa de os “pôr na ordem”. Assim, mandaria Almeida Santos usar medidas drásticas, se necessário, para obrigar o “ex-secretariado a votar disciplinadamente todas as alterações do texto constitucional — alterações que retiravam, um a um, os poderes que Eanes queria a todo o custo reservar” [7]. A sua injustificada obsessão seria tal que só quando “Salgado Zenha disciplinadamente vota de acordo com a sua orientação… sente que só naquele momento o submeteu” [8]. Zenha não estava mais nem com Mário Soares nem com o Partido Socialista, mas era um homem profundamente rigoroso e honesto. Fora fundador do Partido Socialista, tivera oportunidade de contestar a liderança a Mário Soares mas recusara-se sempre a fazê-lo e aceitara o resultado do quarto congresso. Como tal acataria, embora discordando, as directivas da comissão permanente sem nunca ter sido submetido, ao contrário da maior parte dos outros, para quem o que estava em causa era preservar o lugar na Assembleia da República, enquanto deputados e enquanto grupo homogéneo maioritário dentro do grupo parlamentar do Partido Socialista. O não acatamento das directivas da comissão permanente do PS poderia transformá-los numa espécie de ASDI do PS que precipitaria um acordo entre o PS e o PSD e, provavelmente, o fim das suas carreiras políticas. Afinal eles tinham entrado para o PS “porque o PS estava na área do poder” e não tinham coragem suficiente para enfrentar tal incerteza. A sua solidariedade com Eanes, após 1981, seria tão forte como a que tiveram com Soares a partir de 1978.
A vitória no quarto congresso também alterara favoravelmente as relações internacionais do partido. Ainda em Maio, o então secretário da defesa dos EUA, Caspar Weinberger, de visita a Portugal teria um encontro com Mário Soares e comigo em que se discutiria a situação portuguesa, para além dos temas de Política internacional que preocupavam a administração Reagan, com destaque para a posição da esquerda europeia em relação ao desarmamento e à América Central. Mário Soares explicaria a Weinberger que a posição do Partido Socialista passava por retirar poderes ao presidente da República, que ele classificaria como um militar com perigosas ambições políticas e um perigo para a democracia ocidental, e acabar com o Conselho da Revolução. Depois confessaria estar arrependido de não ter chegado a um acordo com Sá Carneiro e com o PSD mas que, em virtude da debilidade do governo de Balsemão, aquele partido estava em vias de desintegração e era possível poder pensar de novo num tal acordo. Disse ao secretário da defesa que em tal hipótese Almeida Santos, “o número dois do PS“, como ele lhe chamaria, seria o próximo primeiro-ministro e que “muito provavelmente, aqui o Rui Mateus, responsável pela Política externa do partido, seria o próximo ministro dos negócios estrangeiros”. Disse que de modo algum considerava entrar num próximo governo do PS e que era questão assente preservar a sua imagem, de novo reforçada, para se candidatar em Dezembro de 1985 à presidência da República. Weinberger perguntou-lhe para quê tentar reduzir os poderes presidenciais, se era esse o seu plano, explicando-lhe, então, o líder português que os poderes que Ramalho Eanes detinha eram contrários ao seu conceito de democracia e que os poderes do presidente da República, segundo a revisão constitucional que o PS propunha, eram importantes uma vez que competiria sempre ao presidente nomear o primeiro-ministro e dissolver a Assembleia da República.
Testadas as suas intenções, o visitante americano perguntou-lhe então o que iria fazer pessoalmente quando o PS estivesse no governo. Aí Soares reflectiu um pouco como se não estivesse à espera de tal pergunta e respondeu que em princípio as eleições seriam só em 1984 e que ele pensava dedicar-se a questões internacionais. Aí lembraria Weinberger de que era muito importante continuarem a apoiar o Partido Socialista, a fundação de Relações Internacionais e a UGT pois que era no quadro da fundação que ele pensava desenvolver as suas actividades internacionais, podendo “os socialistas portugueses” continuar a ser úteis aos EUA na medida em que defendiam posições coincidentes sobre a defesa dos valores ocidentais. O secretário da defesa americano lembraria então Soares de que tinha nos Estados Unidos muitos amigos e um grande defensor na figura do seu subsecretário.
Frank Carlucci, de facto, seria transferido de director adjunto da CIA para subsecretário da defesa. Weinberger conhecia bem Carlucci e através deste, que já tinha sido seu subsecretário da Saúde e Educação antes de vir para Portugal, a situação Política portuguesa. A referência que Soares me fizera na conversa com Weinberger já não era inédita e tinha ocorrido em pelo menos duas outras ocasiões: quando viajámos juntos de Paris para Bona no dia 17 de Fevereiro, em que ele me disse que considerava ter chegado a minha vez de pensar no governo e quando repetiu a Helmut Schmidt as mesmíssimas palavras que diria a Weinberger no dia 14 de Maio. No seguimento desta conversa, eu seria contactado, à semelhança de membros de outros partidos da Internacional Socialista, por Carl Gershman e Michael Ledeen. O primeiro tinha sido durante anos secretário-geral do pequeno partido filiado na IS, Social-Democrats USA, que funcionava como uma espécie de lobby da central sindical americana e passara a ser, após a eleição de Ronald Reagan, colaborador da embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas, Jeane Kirkpatrick. Michael Ledeen, autor e jornalista do conservador New Republic, era acessor do secretário de estado Alexander Haig e, além de conhecedor da Europa, com relevo para Itália onde vivera inúmeros anos, era um conhecido expert em contraterrorismo. Gershman tinha sido encarregado por Jeane Kirkpatrick de constituir uma resposta americana às fundações alemãs, que viria a chamar-se National Endowment for Democracy [9] de que aliás seria presidente. Ledeen teria um papel de relevo na prisão dos «terroristas» palestinianos que assaltaram o paquete italiano Achille Lauro, dados os seus excelentes contactos com o então primeiro-ministro italiano Betino Craxi, e seria também conhecido pela concepção da ideia dos contactos entre o agente iraniano Ghorbanifar, o primeiro-ministro israelita Shimon Peres e a administração americana, com a finalidade de libertação dos reféns americanos no Líbano e que, contra sua vontade, se transformaria no chamado “Iran-Contra Affair“.
O presidente Ronald Reagan, chegado à Casa Branca em Janeiro de 1981, consideraria ser a evolução na Nicarágua inaceitável para os interesses americanos. Desde Abril de 1980 que Alfonso Robelo e Violeta Chamorro se tinham demitido da junta e o jornal La Prensa tinha encerrado, numa disputa interna que fazia lembrar tal e qual o que se tinha passado no República, em Portugal, em 1975. Um ano depois Arturo Cruz, presidente do banco central, e Rafael Cordova Rivas, juiz do supremo tribunal, que substituíram Robelo e Chamorro, também se afastariam do governo sandinista. Em Julho de 1980, no primeiro aniversário da revolução, celebrado em Manágua com grande alarido, o convidado de honra daquelas comemorações seria Fidel Castro e já o principal herói da revolução, Eden Pastora, era considerado “o “homem” da CIA no topo da Frente Sandinista” [10]. Pastora, mais conhecido por «comandante Zero», tinha na manhã de 22 de Agosto de 1978, assaltado e ocupado com 24 homens o palácio nacional (parlamento nicaraguense) quando este se encontrava em plena sessão. O sanguinário ditador Anastázio Somoza, apesar de apoiado pela sua fortemente armada guarda nacional, fora surpreendido pelo golpe de coragem e obrigado a ceder às reivindicações do jovem comandante Zero que, depois de libertar mulheres e crianças, manteve o Palácio e 1200 pessoas sequestradas durante 48 horas. No final, Somoza libertaria cinquenta presos políticos que seriam autorizados a sair do país, enquanto a população em peso aclamava Eden Pastora e os presos libertados no seu percurso para o aeroporto, acompanhado pelo arcebispo Monsenhor Obando Bravo. Entre os homens que Pastora libertara, encontrava-se então o único fundador vivo da Frente Sandinista, Tomás Borge, que viria a ocupar o cargo de primeiro-ministro da defesa e, dois anos depois, acusaria o seu “libertador” de trair a revolução.
Pastora que só abandonaria, formalmente, a Frente Sandinista em 1982, tinha, em 1979, sido a grande estrela do comício eleitoral que o PS realizaria no pavilhão dos desportos, em Outubro, por ocasião da reunião da Internacional Socialista. Já então não escondia o desagrado pela evolução que os seus camaradas estavam a imprimir à revolução nicaraguense. Logo após denunciar os erros da Frente Sandinista, viria a Portugal a convite da fundação de Relações Internacionais, em 1982. Seria em Lisboa que pela primeira vez o herói da revolução nicaraguense alertaria a Internacional Socialista para os perigos do apoio incondicional aos sandinistas. Estava, então, bem inserido na estratégia política dos EUA de desestabilização do regime pró-cubano da Nicarágua. Mas, após a constituição do Movimento Democrático, que incluía antigos «somozistas», como Adolfo Calero, os americanos deixariam cair Eden Pastora. O PS português, que desde o seu corte com a Frente Sandinista o apoiaria, criticou a decisão americana permanecendo um dos seus principais apoios na Europa e, quando em 1986 Pastora se encontrou com Mário Soares na sua residência do Algarve, no começo de uma visita a vários países europeus organizada por mim, veio precisamente solicitar os seus bons ofícios para que os americanos o não excluíssem do quadro de ajudas que a administração Reagan e a CIA tinham empreendido a favor dos contras do Movimento Democrático Nicaraguense [11].
Para além da Nicarágua, a situação em El Salvador era ainda mais grave e as mortes de inocentes, vítimas de esquadrões da morte de extrema-direita e de guerrilheiros de esquerda, contavam-se pelos milhares. No Panamá, após a morte num acidente aéreo em Julho de 1981 do ditador Omar Torrijos, amigo íntimo de Eden Pastora, num voo no qual este tinha sido convidado a viajar, o poder passaria para o ex-agente da CIA e narcotraficante, Manuel Noriega. Nas Honduras e na Guatemala reinava o terror de extrema-direita que entretanto perdera o tradicional apoio norte-americano. Na Jamaica vivia-se um clima de grande instabilidade política com o socialista Michael Manley, vice-presidente da Internacional Socialista, numa conspícua proximidade com Fidel Castro. Na minúscula ilha de Grenada, o jovem ditador marxista Maurice Bishop estava em vias de construir um enorme aeroporto com assistência cubana, tendo já garantido concessões de utilização pela União Soviética. No México, José Lopez Portillo seguia o trilho do seu antecessor Luiz Echevarria, numa cruzada sem precedentes contra o seu poderoso vizinho a norte.
Na Internacional Socialista, o grosso da simpatia ia ao sabor desta corrente de radicalismo esquerdista. Frank Carlucci e os dois jovens assistentes de Jeane Kirkpatrick e de Alexander Haig, respectivamente Carl Gershman e Michael Ledeen, estavam assim convencidos de que Mário Soares e o Partido Socialista poderiam ser aliados indispensáveis da estratégia da administração de Ronald Reagan. Mário Soares não só estaria de acordo como sugerira mesmo esta “indispensabilidade” a Caspar Weinberger, a quem também, para além de pedir mais ajuda, pediria para ser recebido pelo presidente Reagan. Esse encontro iria demorar mais de um ano de preparação e teria pelo meio mais alguns encontros importantes de sentido idêntico com o secretário de estado Alexander Haig em Fevereiro de 1982 e com Frank Carlucci em Setembro desse mesmo ano. Os toques finais seriam dados pelo embaixador Allan Holmes, um diplomata de carreira do nível de Carlucci, enviado em 1982 para Portugal pelo presidente americano numa demonstração de interesse pelo nosso país. O presidente Reagan tinha dificuldade em aceitar que houvesse “socialistas bons”, mas parecia preparado para criar uma excepção no caso de Mário Soares.
Apesar de as nossas opiniões sobre os temas internacionais mais candentes começarem a ser vistas com alguma suspeição entre os principais partidos da Internacional Socialista, o nosso relacionamento com os americanos dava-nos força e as nossas posições, sempre defendidas com firmeza e correcção, eram ouvidas e respeitadas. Jaime Gama, sempre interessado pelas questões de defesa, passaria em Julho a integrar os trabalhos do comité para o desarmamento a que presidia o primeiro-ministro da Finlândia Kalevi Sorsa e em Setembro, em Paris, seria criado pela Internacional Socialista um novo comité para a África Austral presidido por Olof Palme [12], que também integraríamos. O primeiro-ministro sueco tinha conduzido missões à Africa em nome daquela organização desde 1977 e, também aqui, as nossas posições iriam diferir consideravelmente das da maioria dos nossos partidos “irmãos”. Para melhorar o clima em relação ao PS, eu organizaria no Algarve em Abril de 1982 uma semana de convívio dos responsáveis pelas relações internacionais de partidos amigos a quem apresentaríamos o partido, os seus dirigentes e a sua política. Todos os dias no hotel Alvor seriam apresentados, por diferentes dirigentes do PS, vários temas sobre o partido e o país. A ideia consistia em apresentar o Partido Socialista como um partido democrático e moderno e tentar fazer compreender aos partidos “irmãos” as nossas raízes e as nossas posições políticas no campo internacional. Foi um enorme sucesso que outros partidos viriam a repetir nos seus países e contou com representantes da Alemanha, Aruba, Bélgica, Cabo Verde, Chile, Chipre, Curaçau, Dinamarca, Finlândia, França, Grécia, Guatemala, Guiné-Bissau, Grã-Bretanha, Holanda, Irlanda, Marrocos, República Dominicana, San Marino, Suécia, Venezuela além de representantes do grupo socialista do Parlamento Europeu e da união dos partidos socialistas da comunidade europeia.
Os elementos do «ex-secretariado» que durante um longo período teriam dificuldade em se recompor da derrota sofrida em 1981, começariam a tentar desacreditar as posições do Partido Socialista em política externa, através de organizações afectas à estratégia soviética e, nomeadamente através das organizações frentistas internacionais, que o PCUS financiava e controlava. Entre estas contar-se-ia o Conselho Mundial para a Paz que tinha ramificações em todos os países democráticos e era presidido por um conhecido comunista indiano, Romesh Chandra. Dele faziam parte comunistas e “compangons de route” de vários países e pelas mais variadas motivações. O ex-presidente Costa Gomes era um dos elementos, que por ter tido uma posição de destaque num país democrático, era frequentemente utilizado para se pronunciar pela “pax-soviética”, atacando sempre, sem excepção, as posições dos Estados Unidos. O mesmo acontecia com outros altos militares e políticos que estavam desacreditados nos seus países. Em Portugal a subsidiária do Conselho Mudial era o Conselho Português para a Paz e Cooperação que tinha como figura de proa o comunista Silas Cerqueira. Alguns socialistas também aceitavam fazer o jogo soviético e, em Abril de 1982, haveria uma tentativa para dividir o Partido Socialista e para o desacreditar internacionalmente. O Conselho Mundial da Paz pretendeu organizar em Portugal uma grande conferência de solidariedade com os estados da linha da frente e assim apoiar a posição que a União Soviética defendia para a resolução dos conflitos na África Austral, com particular relevo para Angola e a África do Sul. Convidariam para essa conferência muitos dos partidos da Internacional Socialista e, em particular, os nórdicos. As cartas e telegramas de convite eram assinados por Vasos Lyssarides, do minúsculo Partido Socialista do Chipre, que era conhecido pelas suas conotações com o Conselho Mundial para a Paz, por Silas Cerqueira que, em Portugal, coordenava as organizações frentistas soviéticas e por dois dirigentes do “ex-secretariado” do Partido Socialista, José Manuel Galvão Teles e João Cravinho. Após ter sido consultado sobre a iniciativa pelo secretário-geral da IS e por vários partidos europeus convidados, eu faria circular uma nota em que diria que os socialistas signatários, embora invocando a sua qualidade de dirigentes socialistas o faziam “sem conhecimento da comissão permanente do partido que (sublinhava) não participa nesta iniciativa”. Acrescentava também que a sede do secretariado da dita conferência “pertencia ao Conselho Português para a Paz que é a secção portuguesa do Conselho Mundial da Paz” [13].
Em Novembro de 1981 aceitei, após várias pressões do Partido Baath e de alguns dirigentes socialistas que ali se tinham deslocado por motivos vários, visitar o Iraque. O convite partia daquele país e vinha na sequência de inúmeras visitas de socialistas portugueses a Bagdad. Em Abril de 1977, Marcelo Curto assistira ao congresso do Partido Baath e no ano seguinte Maria Fernanda de Castro, secretária de Mário Soares, e Rodolfo Crespo regressariam àquele país. Em 1979 e 1981 viriam delegações iraquianas aos terceiro e quarto congressos do PS e, em 1980, Francisco Ramos da Costa acompanhado de Fernando Medeiros do departamento internacional seriam recebidos em Bagdad com todas as honras. Em Julho de 1981 o director do Portugal Hoje participaria numa conferência anti-sionista naquele país. Seria ele que, como resultado dos seus contactos, insistiria para que Mário Soares fosse àquele país. O seu jornal começara a ter dificuldades financeiras e, segundo ele, uma delegação chefiada por Mário Soares poderia em Bagdad encontrar “o tesouro de Ali-Baba“! A comissão permanente achou que deveria ser eu e não Mário Soares a ir àquele país que estava em plena guerra com o Irão, à frente de uma missão que integrava o gestor do PS, Menano do Amaral, e o administrador do Portugal Hoje, Edmundo Pedro. Eu fui, mas fui contrariado. Nunca tivera pré-disposição para aceitar convites de ditadores e os inúmeros que chegavam constantemente ao PS, seriam distribuídos por socialistas sempres desejosos de viajar: à Roménia, à Coreia do Norte, à Líbia etc. Ao chegar a Bagdad expliquei que tinha compromissos importantes em Portugal e só poderia ali permanecer dois dias. Era portador de uma carta de Mário Soares para Saddam Hussein em que este afirmava estar “convencido que a visita de alto nível do Partido Socialista ao Iraque nesta ocasião iria fortemente contribuir para um relacionamento mais profundo entre os nossos dois partidos” e esperava que esta visita pudesse “ser seguida por uma outra de alto nível do Partido Árabe Socialista Baath a Portugal e conduzir a uma profunda cooperação entre os nossos dois partidos a todos os níveis e em todas as áreas onde os nossos dois partidos e os nossos dois países possam ter interesses mútuos” concluindo que estando os dois partidos fundamentalmente interessados na paz mundial, “poderão juntar forças em muitos fóruns internacionais” [14]. Ficaríamos principescamente hospedados em enormes suites do hotel Melia e no segundo dia teríamos um encontro com o então primeiro-ministro Tariq Aziz, a quem eu entregaria a carta para o presidente Hussein, e com dirigentes do Partido Baath numa sede de construção imponente, só comparável à arquitectura fascista dos anos 30 e dos países comunistas do pós-guerra. Evidentemente que a questão de assistência económica ao Portugal Hoje seria colocada por Edmundo Pedro. Mas esta só seria iniciada, através do embaixador daquele país em Lisboa, após a visita de uma delegação do Partido Baath que Mário Soares receberia na rua da emenda no dia 26 de Janeiro de 1982. Aparentemente os nossos anfitriões sentir-se-iam ofendidos se a nossa visita durasse apenas dois dias e a partir do dia 4 de Novembro, durante quatro dias, era-nos dito para prepararmos as malas para sair no voo dessa noite que seria sempre misteriosamente “cancelado”. Também era impossível fazer chamadas para fora do Iraque tendo eu conseguido enviar um telex do hotel para o departamento internacional do PS. Soube então através da minha secretária que durante aquele tempo não houvera voos cancelados a partir de Bagdad. Confrontados com esta informação os nossos anfitriões deixar-nos-iam, finalmente, após seis dias de visita turística, sair do Iraque.
A esquerda europeia estava em Guerra com a administração Reagan. Na América Central, o confronto entre os Estados Unidos e a Nicarágua assim como El Salvador e a ilha de Grenada parecia inevitável. Na África, enquanto continuava o apoio aberto a Jonas Savimbi e os EUA se recusavam a reconhecer o governo de Eduardo dos Santos e do MPLA, também a estratégia de mudança na África Austral diferiria da preconizada por Olof Palme e pela maioria dos partidos socialistas europeus. Na Europa, agravavam-se as tensões entre a União Soviética e os Estados Unidos, aproximando-se muitos partidos da Internacional Socialista cada vez mais das teses de Leonid Brejnev. E, como se estes temas não bastassem para alargar o crescente fosso entre a Europa e o seu tradicional aliado do outro lado do Atlântico, Israel iniciaria a operação “Paz na Galileia“, com a invasão e ocupação de parte do Líbano a 6 de Junho de 1982. O primeiro-ministro israelita Menachem Begin e o seu poderoso ministro da defesa, Ariel Sharon, iniciariam uma perigosa escalada das tensões no Médio Oriente, a propósito do assassinato do seu embaixador em Londres pelo grupo dissidente da OLP, a Abu Nidal. Segundo Bob Woodward do prestigioso Washington Post os israelitas “estavam a atacar os palestinianos errados, mas do ponto de vista de Sharon, isso pouca diferença fazia” e “no espaço de dias as suas forças de defesa israelita (IDF) estavam às portas de Beirute” [15]. No momento da invasão israelita Bashir Gemayel chefe da milícia falangista cristã do Líbano, que nos anos 70 tinha sido “recrutado pela CIA” [16] preparava-se para assumir a presidência do seu país. Durante os anos que precederam a sua ascenção àquele cargo Gemayel também “tinha desenvolvido relações íntimas com Sharon e com a Mossad israelita”. [17]
Quando o secretário de estado Alexander Haig visitou Lisboa, em Fevereiro, já o seu interesse pelo papel que Mário Soares poderia desempenhar na cena internacional era superior à sua amizade com o general Ramalho Eanes. Haig fazia parte do poderoso “lobby” judaico dos Estados Unidos e, como tal, a sua preocupação com a situação no Médio Oriente era evidente. Crítico da esquerda europeia em geral e sobretudo do Partido Trabalhista inglês e do Partido Social-Democrata alemão achava que a posição dos socialistas europeus estava influenciada pelo que ele chamava “paranóia”‘ [18] e que consistia na percepção europeia de que os Estados Unidos estariam dispostos a travar uma guerra nuclear com a União Soviética, limitada ao espaço europeu. A posição dos partidos da Internacional Socialista em relação a Israel também desagradava profundamente a Alexander Haig. Assim, compreendera o que já Carlucci e a administração de Carter tinham compreendido antes, que num quadro de crescente hostilidade entre os socialistas europeus e o governo dos Estados Unidos, Mário Soares e o seu partido eram um aliado precioso. Tinha-o demonstrado antes.
Na Internacional Socialista quem tradicionalmente se ocupava das questões do Médio Oriente era o chanceler austríaco Bruno Kreisky. Tinha chefiado várias missões ao Médio Oriente e, apesar de ser judeu, tinha as melhores relações com o Mundo Árabe e os seus principais dirigentes. A Áustria tinha igualmente importantes relações com os países árabes, onde detinha enormes interesses. Contudo, Bruno Kreisky não só criticara os bombardeamentos israelitas como discordava publicamente da Política do governo do Partido Likud, chefiado por Menachem Begin. Segundo Kreisky, que apoiara os acordos de Camp David entre Begin e o presidente egípcio Anwar Sadat, os bombardeamentos do sul do Líbano visavam uma Política de expansionismo a norte, como moeda de troca pela devolução da península do Sinai ao Egipto e coincidiam com essa mesma devolução que teria lugar a 25 de Abril de 1982. A Síria ocupava militarmente grande parte do Líbano e dava protecção aos radicais da Abu Nidal no Vale do Beka. Esta situação em nada agradava à família Gemayel e, para Bashir, que se tornaria presidente em Agosto, a ocupação israelita não só facilitaria a sua eleição como transferiria o Líbano da estrutura de defesa Síria para a esfera de influência israelita. O Partido Trabalhista Israelita, embora em desacordo com a política de Begin e do Partido Likud, não considerara oportuno, por razões de interesse eleitoral e de estratégia política, criticar publicamente a invasão israelita. Shimon Peres, então líder do partido e candidato a primeiro-ministro, estava entre a espada e a parede e não tinha alternativa nem vontade de contrariar a política do seu partido rival.
Dentro da Internacional Socialista o desagrado não poderia ter sido maior havendo mesmo partidos, como aconteceu com o PSOE e o Partido Social-Democrata sueco, a sugerirem que a organização estudasse a suspensão do partido de Shimon Peres. O presidente da Internacional, Willy Brandt, enfrentava uma situação extremamente difícil. Era presidente da IS e do SPD. As suas credenciais, enquanto combatente contra Adolf Hitler, estavam acima de qualquer suspeita mas, em qualquer caso, o facto de ele ser alemão não poderia ser completamente ignorado. A tradição democrática do Partido Trabalhista de Israel, com grandes líderes históricos como Golda Meir, era igualmente inquestionável. E, dentro dos principais partidos da Internacional Socialista, como o britânico, o francês e o holandês, existiam importantes sectores pró-israelitas.
Na reunião do “Presidium” [19] da Internacional Socialista, realizada em Bona no dia 2 de Abril, seria abordada a eventualidade de uma nova missão para estudar a situação provocada pelos bombardeamentos e fazer recomendações à organização. Shimon Peres declararia aceitar uma tal missão ao seu país e aos países do Médio Oriente, mas recusar-se-ia a aceitar que ela fosse liderada por Bruno Kreisky. Entre os vice-presidentes presentes só Ian Mikardo do Partido Trabalhista Britânico, Mário Soares e Lionel Jospin, em substituição de François Mitterrand, que após a sua eleição em 1981 suspenderia a sua actividade na IS, manifestariam alguma simpatia pelas posições de Shimon Peres. A 19 de Abril Alexander Haig, secretário de estado dos Estados Unidos, enviaria a Lisboa o seu acessor Michael Ledeen para discutir com Mário Soares a situação no Médio Oriente e as crescentes tensões no seio da Internacional Socialista. Sugeriria a Mário Soares que, à semelhança do seu papel na missão à Nicarágua, se candidatasse a chefiar a discutida missão da IS ao Médio Oriente, declarando que o Partido Trabalhista de Israel aceitaria o seu nome. Os americanos estavam bem atentos ao que se passava na IS e dispostos a interferir, sempre que isso fosse do interesse da sua política externa. Mário Soares declararia a Michael Ledeen que não estava por dentro da situação no Médio Oriente, mas que se as partes achassem que ele poderia ser útil, então aceitaria. A Internacional Socialista reuniria de novo em Helsínquia a 26 de Maio e o nome de Mário Soares é pela primeira vez sugerido por Shimon Peres, em perfeita sintonia com o seu amigo americano. A IS recusaria então a proposta e tomaria a decisão de considerar o envio de uma delegação chefiada pelo secretário-geral, Bernt Carlsson. Mário Soares que eu acompanharia a Helsínquia, visitaria, depois, Estocolmo onde eu conseguira um encontro com Olof Palme no dia 28 de Maio. Durante a agradável viagem de barco por entre as milhares de ilhas do arquipélago de Estocolmo disse-me então pela primeira vez que a missão lhe interessava e que tinha “que mexer as coisas”, convencido que estava, que dela poderia retirar dividendos políticos. Entre os partidos da IS e para o próprio secretário-geral, Bernt Carlsson, o nome de Mário Soares levantava as maiores dúvidas. Mas tanto Bruno Kreisky como Shimon Peres considerariam — na única vez em que estariam de acordo — que uma missão chefiada pelo secretário-geral da Internacional Socialista seria, irrelevante, ignorada e sem qualquer utilidade prática.
No dia 15 de Junho, oito dias depois do início da ocupação e com as tropas israelitas às portas da capital libanesa, Bruno Kreisky insistiria na sua liderança e exigiria por telegrama uma reunião urgente do “Presidium” com “a finalidade de discutir a situação no Líbano” [20], a qual, formalmente, nunca teria lugar. Mas no dia seguinte Bernt Carlsson estaria em Oslo, onde se realizaria uma mini-reunião de emergência com Brandt, Palme, Kreisky e Peres. Às 10:45 o secretário-geral tenta contactar Mário Soares enviando um telex pedindo para este o contactar telefonicamente para Oslo. Seria eu a falar com ele e queria saber se a sugestão de Peres para ele chefiar uma missão ao Médio Oriente seria aceite por Mário Soares. Eu dir-lhe-ia que sim, em princípio, se o convite fosse confirmado por Willy Brandt e que dependeria do âmbito da missão e das condições. Por qualquer razão não tinha sido possível entrar em contacto com Mário Soares nessa manhã. Enviar-lhe-ia então um telex às 16:45, com o seguinte teor: “Willy Brandt pergunta se tens possibilidade de conduzir uma missão da Internacional Socialista ao Médio Oriente, enquanto seu vice-presidente. O objectivo é exprimir a preocupação da Internacional Socialista em relação ao conflito no Líbano. O itinerário é Tel-Aviv e também — se possível — Beirute“. Duas horas depois, às 18:20, enviaria outro telex com os termos de referência da viagem que incluíam: “representar o presidente da Internacional Socialista; exprimir a maior preocupação sobre a actual situação; tentar conhecer planos para o futuro na região; e inteirar-se da situação em que se encontra Walid Jumblatt, líder do Partido Socialista Progressista do Líbano“. Como dossier sobre a situação, juntava uma declaração que Willy Brandt pensara fazer mas acabaria por arquivar. Nela se condenava de maneira invulgarmente dura o governo israelita que era acusado de querer “esmagar a organização política do povo palestiniano, a OLP” e em nome da segurança do estado ser igualmente responsável pela “injustificável morte de centenas de civis inocentes”. No dia seguinte, após aceitação de Mário Soares, para quem esta missão “caíra do céu”, eu enviaria dois telexes ao secretário-geral da Internacional Socialista: o primeiro às 14:32 agradecendo o convite e perguntando a Bernt Carlsson se ele e outros representantes de partidos acompanhariam Mário Soares nesta missão e o segundo telex, enviado às 16:23, perguntando quais os contactos efectuados em Israel e no Líbano. O secretário-geral da IS, evidentemente desiludido com a situação encontrada, responder-me-ia que “Mário Soares foi convidado a conduzir esta missão sozinho. Não se espera que participe ninguém do secretariado” adiantando que “o Partido Trabalhista de Israel confirmou que Mário Soares é muito bem-vindo”. Depois de alguma confusão e de um longo comunicado da Internacional Socialista, enviado aos partidos antes da decisão final ter sido tomada em Oslo, declarando que o presidente da Internacional tinha encarregado “o secretário-geral da Internacional Socialista a visitar Israel e o Líbano“, tendo Willy Brandt pedido a este “seu representante… para transmitir aos partidos membros e a outros na região: que a acção do exército israelita tinha ultrapassado o que poderia ser justificado em interesses de segurança israelitas… e que a Internacional Socialista considera imperativa a imediata retirada de todas as tropas estrangeiras do Líbano” [21].
Bernt Carlsson, de quem eu fui amigo íntimo desde os meus tempos de estudante exilado na Suécia, até ser barbaramente assassinado com todos os outros passageiros por uma bomba colocada por palestinianos extremistas no voo da Pan American que sobrevoava Lockerbie na Escócia [22] contar-me-ia, posteriormente, ter havido uma espécie de “golpe palaciano” na Internacional Socialista e que Brandt nunca convidara Soares pessoalmente mas sim que, uma vez confrontado entre as posições de Shimon Peres e de Bruno Kreisky, de quem era amigo íntimo, concordara em mandar consultar Soares. Aí Kreisky terá ficado zangado e afirmado que mandar Soares seria a mesma coisa que mandar os americanos. Brandt confirmaria três anos depois ao ex-secretário-geral da Internacional Socialista, Hans Janitschek, que “Kreisky evidentemente não estava nada satisfeito em relação a isto” [23] referindo-se à consulta a Soares adiantando “que necessitava não só alguém que tivesse bons contactos com os árabes mas também nos Estados Unidos” [24]. Os documentos em meu poder confirmam que a consulta a Mário Soares foi transmitida pelo secretário-geral da IS no dia 16 de Junho, por um Willy Brandt sob pressão e contrariado e não que “Willy Brandt lhe telefonara dizendo que precisava dele para chefiar uma missão” [25], conforme versão dada para a sua biografia “oficiosa”. Aí, após aceitação de Soares, Willy Brandt lavaria as mãos do assunto e o secretário-geral, Bernt Carlsson, recusar-se-ia a integrar a missão em solidariedade com Kreisky, tendo então Brandt concordado com a ideia de que Soares fosse sozinho e que, antes disso, o secretário-geral fosse em sua representação numa visita a Israel conforme comunicado difundido pela Internacional Socialista a 25 de Junho. Kreisky num gesto de grande dignidade discordaria então desta “visita” divulgada em nome de Willy Brandt no que seria acompanhado por Shimon Peres. Bernt Carlsson seria então desautorizado e, no dia 27 de Junho, iniciar-se-ia a primeira de três missões da IS ao Médio Oriente chefiadas por Mário Soares. Integraria também Bernt Carlsson, o vice-secretário-geral da IS, Robin Sears, e eu próprio.
Visitaria Israel, onde contactaria para além de Shimon Peres e do Partido Trabalhista, o primeiro-ministro Begin, o ministro da defesa, Sharon e o ministro dos negócios estrangeiros, Shamir. Visitaria também o Líbano mas num helicóptero das forças armadas Israelitas que nos mostrou as zonas ocupadas e nos levou às portas de Beirute e ao Palácio de Walid Jumbiatt onde, dada a sua ausência num esconderijo de Beirute, contactaríamos com Anwar Fatay e Ziad Bitar, dirigentes do seu partido. Depois de Israel seríamos forçados a regressar a Atenas, onde teria lugar um encontro com Andreas Papandreou que nos proporcionou um encontro em Damasco com o presidente da Síria, Hafed Al Assad. Como o Mundo Árabe celebrava então o ramadão, Bernt Carlsson sugeriu que, em solidariedade com os nossos anfitriões, também nos abstivéssemos de comer. Ao que todos responderiam que não. Nem pensar. Após o encontro com o presidente sírio, seríamos convidados a almoçar pelo ministro dos negócios estrangeiros e Bernt Carlsson decidiria fazer abstinência. Mas qual não foi a sua surpresa quando o ministro dos negócios estrangeiro sírio começaria a comer e beber com enorme apetite. No final explicaria a Carlsson, no meio de grande galhofa, que ele era católico e não seguia as regras islamitas! Daí, graças ao presidente sírio, seguiríamos num avião militar para Amman na Jordânia onde teríamos contacto, no aeroporto, com o ministro dos negócios estrangeiros, Marwan El Qasem, seguindo depois para o Cairo, onde chegaríamos de noite, com Bernt Carlsson perfeitamente esfomeado. Não foi possível ter nesta visita contactos nem com o rei da Jordânia nem com o presidente Moubarak do Egipto, tendo neste país tido contactos com o então primeiro-ministro Fouad Moheidine e o ministro dos negócios estrangeiros, Kamal Hassan Ali, assim como com o ministro de estado e homem das relações internacionais do Partido Nacional Democrático, Boutros Boutros-Ghali; o actual secretário-geral da ONU já anteriormente tinha estado no terceiro congresso do Partido Socialista. No regresso do Egipto teríamos um encontro em Bona com Willy Brandt a quem Soares relataria o resultado dos seus contactos tendo, no dia 13 de Julho, em Copenhaga, durante uma festa de aniversário do primeiro-ministro Anker Jorgensen, então, recebido luz verde para continuar as missões a esta conturbada zona do mundo.
A segunda missão foi a Beirute de 22 a 28 de Agosto a partir da ilha de Chipre e integraria além do secretário-geral da IS, Jacques Huntzinger do PS francês, Erkii Liikanen da Finlândia e Lasse Budtz da Dinamarca. Bernardino Gomes substituir-me-ia nesta visita, uma vez que eu tinha um compromisso anterior de visita à Austrália, a convite do governo daquele país. Em Beirute a missão encontraria Yasser Arafat, o já então eleito presidente Bashir Gemayel, Walid Jumblatt, líder dos Druzos e de um minúsculo partido filiado na Internacional Socialista. Também haveria um encontro com o então enviado especial norte-americano ao Médio Oriente, Philip Habib. Antes da terceira e última missão, que teria lugar somente em 1983, de 27 de Janeiro a 5 de Fevereiro, Frank Carlucci, na altura secretário adjunto da defesa dos Estados Unidos, viria a Lisboa, tendo-se encontrado com Mário Soares e comigo no dia 16 de Outubro. Os americanos estavam visivelmente satisfeitos com as orientações preconizadas para o Médio Oriente, mas continuavam particularmente preocupados com as posições dos socialistas quer em relação à América Central quer em relação ao problema do desarmamento na Europa. Previa-se que esta última missão prepararia uma posição a adoptar no próximo congresso da Internacional Socialista, a realizar’ nesse ano. Visitaria de novo Beirute, a Jordânia onde teria um encontro com o príncipe herdeiro e daí atravessaria a famosa ponte sobre o rio Jordão para novos contactos com Shimon Peres e com o governo de Israel. Dali seguiria para Túnis para um novo encontro com Yasser Arafat e com o secretário-geral da Liga Árabe, Chadli Klibi.
Mário Soares sairia prestigiado destas missões num momento em que estava a ser particularmente criticado entre os seus pares, como aliás ele próprio previra quando me pediu para tudo fazer para lhe conseguir a nomeação. O número de partidos participantes aumentara substancialmente, sendo significativo o facto de Bruno Kreisky ter designado para esta missão o secretário internacional do Partido Socialista austríaco, Walter Hacker. Gratificante para mim seria também o facto de ter sido eleito em Bruxelas no dia 3 de Fevereiro, enquanto me encontrava ausente na missão da IS, vice-presidente da União dos Partidos Socialistas da Comunidade Europeia. O primeiro-ministro holandês seria eleito presidente e além de mim seriam igualmente eleitos vice-presidentes o primeiro-ministro da Dinamarca, Anker Joergensen, o secretário das relações internacionais do PS francês, Jacques Huntzinger e Bruno Friedrich do SPD. Seria o reconhecimento do trabalho efectuado no quadro da Internacional Socialista e da União (hoje Partido Socialista Europeu) a que eu conduzira o Partido Socialista em 1979.
O prémio destas missões seria altamente significativo. O secretário da defesa dos Estados Unidos e o seu adjunto, Frank Carlucci, conseguiram o encontro que Mário Soares solicitara no ano anterior, que eu prepararia cuidadosamente com a ajuda do embaixador Allan Holmes e do seu ministro-conselheiro, Jim Creagan. Os meus velhos amigos Michael Ledeen — que com a demissão de Alexander Haig transitaria para o conselho nacional de segurança da Casa Branca — e Carl Gershman, acessor de Jeane Kirkpatrick e presidente do National Endowment for Democracy, seriam igualmente preciosos aliados para definir as condições em que Reagan receberia Mário Soares. Mário Soares e eu seríamos recebidos pelo presidente Ronald Reagan na Casa Branca, em Fevereiro de 1983. A visita a Washington tinha como objectivo uma conferência a convite do National Endowment for Democracy sendo recebido pelo presidente Ronald Reagan na Casa Branca durante cerca de meia hora, enquanto líder da oposição. Seria, provavelmente, o único socialista a ser recebido numa visita privada pelo presidente norte-americano durante os seus dois mandatos, facto, no mínimo, altamente significativo. Era o reconhecimento de que Soares era um aliado e um interlocutor privilegiado da administração americana. Toda a Internacional Socialista compreenderia. Para além do encontro com o presidente haveria ainda encontros com o então vice-presidente George Bush, com o novo secretário de estado George Schultz, com Frank Carlucci e com o novo director-adjunto da CIA, John McMahon.
A desagregação da Aliança Democrática aconteceria mais cedo do que os socialistas desejavam e do que a estratégia pessoal de Mário Soares previra. E, se após a trágica morte de Sá Carneiro já se preconizava esta desagregação, como Soares diria em carta a James Callaghan em Janeiro de 1981, a crise económica, com o país à beira da ruptura devido à acumulação de um enorme défice da balança de transacções, precipitaria eleições antecipadas. Seriam marcadas para o dia 25 de Abril de 1983 e como acontecera em 1976, o Partido Socialista seria de novo chamado a governar em situação de crise económica. O previsível candidato a primeiro-ministro do Partido Socialista, António de Almeida Santos, “tinha sido o teórico preparador das 100 medidas e o motor da campanha e Mário Soares era um candidato presidencial e não um candidato a primeiro-ministro” [26].
0 décimo sexto congresso da Internacional Socialista estava marcado para o dia 7 de Abril em Sidney, na Austrália. Ali seria discutido e aprovado o relatório que Soares se propunha apresentar como resultado das missões ao Médio Oriente. O facto de ele estar disponível para se deslocar à Austrália, duas semanas antes das eleições legislativas, era mais uma indicação de que na previsível vitória do PS, Almeida Santos seria o primeiro-ministro do oitavo governo constitucional. A situação não era contudo muito pacífica na comissão permanente e no partido em geral, havendo algumas pessoas que não consideravam ser essa uma boa solução. E, embora a ideia de que ele viria a ser o próximo primeiro-ministro tivesse sido claramente definida, no contexto da moção vencedora do congresso, nunca o seu nome seria referendado. Uma coisa parecia certa: ninguém pretendia, em 1981, que Mário Soares voltasse a ocupar aquele cargo, nem a repetir os erros dos seus primeiros governos. Aliás para além da expectativa criada à volta da figura de Almeida Santos, a situação económica do país não recomendava que Mário Soares viesse a ocupar de novo um cargo onde tão poucas saudades deixara. Eduardo Pereira apoiava a oposição de Gama a Almeida Santos, enquanto Mário Soares mantinha um misterioso silêncio sobre o assunto. Eu, pelo contrário, era abertamente a favor de Almeida Santos e ferozmente contrário a um regresso de Mário Soares de novo para o governo.
Em 1982, realizei uma viagem com ele e sua filha Isabel à Costa Rica onde assistiríamos à tomada de posse do presidente Luís Alberto Monge, regressaríamos, a convite de Carlos Andrés Perez, via Santo Domingo, na República Dominicana. Carlos Andrés Perez ia passar uns dias de descanso em casa de um milionário venezuelano, perto da estância La Romana, nos arredores da capital dominicana e oferecera uma boleia a Mário Soares. Por não haver lugar para nós no avião, Isabel e eu iríamos ter a Santo Domingo, via Miami. Tivemos então os três uma conversa sobre o Partido Socialista que jamais esquecerei. Seria a primeira vez que me zangaria seriamente com Mário Soares e que perceberia que, para ele, o Partido Socialista não era um instrumento de transformação do país baseado num ideal generoso, mas sim uma máquina de promoção pessoal. Tinha-se passado exactamente um ano desde a sua vitória sobre o “ex-secretariado”. Soares guardava-lhes ainda um enorme rancor e jurava nunca mais lhes poder perdoar. Eanes ficara-lhe atravessado na garganta para sempre e ele sentia-se profundamente traído pelos membros do “ex-secretariado”, muitos dos quais, dizia, nunca teriam sido ninguém na Política se ele os não tivesse promovido. Com Zenha era diferente e estou convencido de que o diferendo entre ambos, embora iniciado em 1976, era muito mais profundo e íntimo. Soares gostaria de fazer as pazes com ele mas sabia que o seu velho amigo nunca mais mudaria de ideias, como viria, afinal, a acontecer. Eu, que também não morria de simpatias pelos “ministeriáveis”, dir-lhe-ia que o essencial seria preservar o espírito do partido que criáramos em 1973, considerando que a sua maior contribuição seria a consolidação definitiva de um grande Partido Socialista que, à semelhança dos partidos escandinavos, pudesse efectuar a transformação democrática do país e o progresso dos portugueses. Dir-lhe-ia que pensava que não deveria mais participar em nenhum governo mas sim concorrer a Belém em 1985 e, simultaneamente, tornar-se uma grande figura internacional patrocinando mesmo uma espécie de “Conferências de Bilderberg” que promovesse as suas ideias e debatesse os grandes temas internacionais. Esse objectivo teria que inevitavelmente passar por uma espécie de “pacto de partido” entre as várias facções que pudesse garantir a sua sucessão sem feridas nem sobressaltos. Aí Isabel teria uma explosão emotiva comentando, indignada, que sem o pai o PS nunca seria nada e indicando que a direcção partidária não passaria de um grupo de parasitas. Eu embora conhecesse a sua “relação muito obsessiva” [27] com o pai, como seria classificada pelo autor da biografia de Mário Soares, achá-la-ia exagerada e até insultuosa, pelo menos para mim. Fiquei à espera de uma resposta de Mário Soares e quando não notei qualquer intenção de Mário em contrariar a filha disse-lhe que não estava a ser justa nem sensata. Soares olhou para mim e comentaria que os que estivessem com ele nunca teriam razão para se arrependerem desse apoio. Os outros — e seria essa a palavra usada — que se “lixassem”. Fiquei estupefacto. Pela primeira vez, ao longo de mais de uma década de amizade e total lealdade, achei que afinal nem eu nem os portugueses o conhecíamos! Ele notou que eu ficara ofendido e, mais tarde, quando estávamos dentro de água, numa pequena baía idílica, privada, da mansão do milionário venezuelano, ambos tropeçaríamos em ouriços do mar no fundo da água. No meio da dor, enquanto empregados nos tiravam os espinhos com cera de velas derretidas, Andrés Perez chamar-nos-ia nadadores de pés no chão e no meio da “galhofa” que se estabeleceu Soares, virando-se para mim com afabilidade, dir-me-ia para não pensar mais no assunto da desagradável conversa. No regresso a Portugal, dir-me-ia que tinha gostado da ideia de ele poder vir a promover uma espécie de “Conferências de Bilderberg“. Contudo eu nunca mais esqueceria aquela conversa.
No início de Fevereiro de 1983 o Partido Trabalhista da Austrália, surpreendido pela iminência de eleições antecipadas no seu país, pediria o adiamento do congresso da Internacional Soacialista. O secretário-geral achou que a razão invocada era justa e pronunciar-se-ia a favor do adiamento mas Willy Brandt — que entrara em conflito com ele a partir do momento em que Bernt Carlsson o deixara mal colocado quando da confusão estabelecida em relação à nomeação de Mário Soares para chefiar a missão ao Médio Oriente —, estava determinado a manter o congresso nas datas previstas e a mudar de secretário-geral. Eu fazia parte da comissão organizadora do congresso e Jaime Gama representava o PS na comissão que redigia a nova declaração de princípios da Internacional Socialista sob liderança de Felipe González. Estávamos ambos em Madrid no dia 10 de Fevereiro, quando foi conhecida a notícia do adiamento.
Hans Jurgen Wischnewski, antigo ministro alemão do interior, que ficaria celébre com a libertação, por um comando alemão antiterrorista, dos passageiros do avião sequestrado por um comando palestiniano em Entebe, dir-me-ia que Brandt não aceitaria o proposto adiamento e perguntar-me-ia se o PS não estaria interessado em organizar aquele congresso em Portugal. Disse-lhe que iria consultar Mário Soares que me diria imediatamente que sim, que seria óptimo para nós, do ponto de vista eleitoral. Teríamos menos de um mês para o organizar mas, no dia 7 de Abril, Mário Soares e Willy Brandt abriam oficialmente, no hotel Montechorro, em Albufeira, o décimo sexto congresso da Internacional Socialista. Tudo funcionaria impecavelmente graças aos funcionários do Partido Socialista, com destaque para a directora do departamento internacional, Maria Manuel Marques do Santos e Fernando Medeiros, do grupo socialista do Parlamento Europeu, que com Robin Sears e Luis Ayala do secretariado da Internacional Socialista e Hans Khulman, do gabinete de Willy Brandt, conseguiriam por em marcha um acontecimento memorável. Estariam presentes representantes de 126 partidos e organizações de mais de noventa países que utilizariam nos trabalhos mais de dez toneladas de papel. Entre oito primeiros-ministros e três presidentes da República estariam também, pela primeira vez na história da Internacional Socialista, lado a lado, representantes de Israel e da Organização de Libertação da Palestina, assim como de países árabes como a Argélia, Egipto, Eritreia, Irão, Marrocos, Sahara Ocidental, Somália e a Tunísia.
O congresso acabaria, contudo, em tragédia. O representante da OLP e meu amigo pessoal, Issam Sartawi, seria barbaramente assassinado por um comando extremista palestiniano da organização Abu Nidal que entrara clandestinamente em Portugal. Na manhã do último dia de trabalhos, entraria no átrio do hotel, misturando-se entre os convidados, e dispararia vários tiros à queima-roupa sobre Sartawi, que teria morte imediata. O seu acompanhante, Anwar Abu Eisheh, seria também baleado e ferido numa perna. Issam Sartawi, não quisera, por razões de sua alegada segurança, informar nem a IS nem os responsáveis pela organização do congresso da sua chegada e terá entrado em Portugal anonimamente. Recusara-se portanto a aceitar quaisquer medidas de segurança que o MAI portugês tinha posto à disposição de Personalidades e pessoas consideradas de alto risco. Eu encontrar-me-ia com ele na noite anterior, numa recepção nos jardins do hotel Atlantis juntamente com o embaixador do Iraque e combináramos ter uma conversa no dia seguinte no decurso do congresso. Nessa manhã o congresso reuniu-se inicialmente só com os partidos filiados na Internacional, exactamente para aprovar a resolução apresentada por Mário Soares sobre o resultado das missões ao Médio Oriente. Os observadores e convidados encontravam-se espalhados pelos bares e restaurantes do hotel, enquanto aguardavam para poderem entrar. Estava previsto que Issam Sartawi fosse um dos primeiros oradores dessa sessão de encerramento. No átrio do hotel e dentro da sala de reuniões encontravam-se dezenas de guarda-costas portugueses e estrangeiros. À entrada do hotel dois agentes fardados da GNR munidos de metralhadoras um dos quais, segundo leria na Imprensa depois, ainda terá corrido, mas em vão, atrás do assassino que sairia correndo do hotel. Eu seria chamado por um funcionário, que entraria na sala da reunião a correr, para ir à porta de entrada da sala de reuniões. O ministro conselheiro da embaixada americana, Jim Creagan, tinha vindo chamar-me urgentemente mas não pudera entrar na sala. Ao deparar com ele lívido percebi que algo tinha acontecido. Disse-me então que alguém tinha sido assassinado no átrio do hotel. Corri com ele até ao local do crime, onde deparei com Sartawi esvaído em sangue e uma multidão à sua volta. Foi talvez um dos dias mais terríveis de toda a minha vida, que me deixaria perturbado durante largos meses. Sartawi era um homem extraordinário e um moderado. A sua alocução que eu publicaria num livro em língua inglesa sobre o congresso não chegaria a ser lida por ele. Sartawi iria dizer que “era na verdade uma ocasião histórica de particular importância e significado o facto de a OLP ter sido convidada para o congresso da Internacional Socialista enquanto observadora e que tenha aceitado participar nos trabalhos do presente congresso enquanto tal. Este auspicioso acontecimento representa a coroação dos dedicados esforços multilaterais que paciente e persistentemente foram sendo folheados com grande sentido de participação e dedicação durante vários anos” reconhecendo depois “com gratidão e apreciação” as contribuições de Willy Brandt, dos dirigentes da Internacional Socialista “e em particular a do chanceler Bruno Kreisky“.
Um dos temas menos conhecidos mas mais quentes deste congresso seria a escolha do sucessor de Bernt Carlsson para secretário-geral da IS. Nas reuniões confidenciais do “Presidium“, compostas por Willy Brandt e os principais líderes, que tinham lugar antes e depois das reuniões formais e às vezes se prolongavam até altas horas da madrugada, Willy Brandt explicaria que não existiam condições de trabalho entre ele e o actual secretário-geral, o sueco Bernt Carlsson, de quem eu fui amigo íntimo até à sua morte em 1988. Perante esta posição nada mais haveria a fazer senão escolher outro. Olof Palme acabaria também por aceitar a vontade do seu amigo Willy Brandt e prometeria um lugar a Bernt Carlsson no seu governo, designando-o, depois, secretário de estado para os assuntos nórdicos [28]. Antes do início oficial do congresso, no dia 6 de Abril de 1983, Willy Brandt convidara-me para a sua suite onde me disse que gostaria de propor o meu nome para substituir Carlsson. Já anteriormente me tinha sondado. Eu há sete anos que era responsável pelas relações internacionais do Partido Socialista e o lugar de secretário-geral da IS era tentador e honroso. Comovido, agradeci-lhe a amizade e confiança e prometi dar-lhe uma resposta posteriormente. Contudo minha mulher, que evidentemente consultaria, embora achando que a decisão teria de ser minha, não se mostrara muito entusiasmada com a ideia de mudar de residência para Londres nem com as intermináveis viagens que o lugar implicava. Por outro lado ela adorava viver em Portugal. Como não poderia deixar de ser, consultei igualmente Mário Soares a quem a ideia também parecia não agradar. Brandt tinha-o igualmente contactado e Soares dir-me-ia que, embora pudesse ser bom para o partido ter um seu dirigente no lugar de secretário-geral da Internacional Socialista, achava que isso iria obviamente afectar a minha carreira Política em Portugal, uma vez que ficaria afastado dos acontecimentos nacionais durante muito tempo. Lembrar-me-ia aliás de que o PS estava a um passo do governo. Quando Brandt sugerira o meu nome numa primeira discussão entre os seus pares, todos unanimemente concordariam à excepção de Mário Soares que explicaria que embora a decisão tivesse que ser minha ele achava má ideia, uma vez que eu lhe era muito útil no partido e que muito provavelmente, caso o PS ganhasse as eleições como se previa, poderia vir a integrar o próximo governo. No encontro que tive com Brandt onde ele me explicaria o que se passara, dir-me-ia que tinha concordado com a posição expressa por Soares e que, evidentemente, considerava ser mais importante para mim ser ministro dos negócios estrangeiros do que seu secretário-geral. Receberia, mesmo, felicitações de alguns dos líderes presentes naquela reunião. A segunda escolha recairia igualmente por unanimidade sobre Elena Flores, secretária das relações internacionais do PSOE há três anos e conhecida pela sua simpatia e dinamismo. Substituíra o histórico dirigente Luis Yanez. Mas González alegaria também não poder concordar por razões mais ou menos semelhantes. Joop den Uyl lançaria então o nome do seu secretário das relações internacionais, Marten van Traa e Mário Soares proporia Paolo Vittorelli, colaborador de Bettino Craxi. Nenhum deles obteria o necessário consenso e a escolha recairia, então, sobre um outro nórdico, o finlandês Pentti Vaananen.
Duas semanas depois, como se previa, o Partido Socialista sairia vencedor da eleições legislativas com o seu melhor resultado de sempre. Obteria trinta e seis por cento, que corresponderiam a 101 mandatos na Assembleia da República contra 75 do PSD. Os principais elementos do “ex-secretariado”, Constâncio, Sampaio, Guterres e Cravinho recusar-se-iam em bloco a aceitar integrar as listas do Partido Socialista, em protesto contra a não inclusão de alguns deles. Entre as principais “vítimas” que Mário Soares pretendia “punir”, encontravam-se António Guterres que era então considerado a “alma” do movimento contestatário que reuniria no sótão da sua casa “onde os dissidentes… discutem reformas, conspiram, festejam” [29] e Arons de Carvalho, um dos fundadores do PS a quem o secretário-geral nunca perdoaria a “traição”. Seria sem dúvida um gesto de dignificante solidariedade que também serviria para demonstrar que afinal, apesar dos seus desmentidos, o chamado “ex-Secretariado” existia como força organizada dentro do partido. Existira para derrotar Soares no interior do partido e para tentar afastá-lo da liderança do PS. Continuaria a existir para re-conquistar o poder que chegariam a deter durante o ano de 1980. Mas o resultado eleitoral representaria uma tremenda derrota do “ex-secretariado”. Não participara na campanha eleitoral e, apesar da sua ausência, o resultado dos “soaristas” tinha sido o melhor de sempre desde as eleições para a assembleia constituinte em 1975. Seria a total desmistificação das pretensas qualidades geniais que o grupo se atribuíra a si próprio e a prova de que mesmo sem eles, sem a protecção de Eanes e sem a cobertura de frentes eleitorais, o partido conseguiria ganhar eleições.
No dia 26 de Abril partiria para Maputo onde representaria o Partido Socialista no congresso da FRELIMO, só regressando no dia 2 de Maio. Quatro dias depois, a 6 e 7 de Maio, reuniriam as comissões política e nacional, precedidas da comissão permanente, para discutir o acordo com o PSD. Fora decidido na minha ausência promover um referendo entre os filiados no PS, para saber se aprovavam ou não uma coligação com o PSD. Antes do início da reunião do dia 6, Mário Soares chamar-me-ia à parte para me consultar sobre a hipótese de “ter” que vir a ser de novo primeiro-ministro. Almeida Santos tinha uma imagem negativa junto dos portugueses e a sua ida para primeiro-ministro iria produzir uma nova “Guerra” dentro do partido, numa alusão à contestação iniciada por Jaime Gama. Depois, o resultado eleitoral tinha sido “melhor do que se esperava” e o PS — decidido como estava a negociar uma coligação com o PSD — iria não só dominar o governo como ainda por cima, sem qualquer opção, o PSD iria, inevitavelmente, apoiar a sua candidatura a Belém. Lembrei-me então da conversa que tivéramos menos de um ano antes em Santo Domingo e percebi que “Mário Soares receava ser secundarizado” e não queria arriscar que, dentro do partido, lhe acontecesse o mesmo que lhe acontecera em 1980. Receava mesmo ser “até eventualmente esquecido se Almeida Santos tivesse êxito no seu governo” [30].
As eleições legislativas tinham chegado dois anos antes do que teria sido desejável e, de repente, numa total inversão do que tinha sido definido anteriormente invocaria razões novas para ser candidato a Belém. Os problemas dentro do partido só lhe interessariam na medida em que pudessem prejudicar a sua candidatura a Belém e, numa nova falta de visão, que fazia lembrar 1976 e, sobretudo, 1978, estava convencido de que para se chegar a Belém era mais fácil partir de São Bento do que da rua da emenda. Apesar de ser “motivo de grande incomodidade pessoal e de indiscutível sacrifício” [31], aceitar “a tarefa” que o presidente da República lhe acabava de confiar, embora ninguém tivesse insistido com ele para que aceitasse tal tarefa, Soares queria à força ser de novo primeiro-ministro, mesmo contra os interesses do Partido Socialista. Tinha reconhecido não ter sido o melhor primeiro-ministro que o PS poderia ter tido nos governos anteriores mas, num gesto de constante hipocrisia que o tem caracterizado desde que disse em 1979 não estar no seu horizonte voltar a ser primeiro-ministro, aceitaria de novo o cargo. Em 1979, declarara que só fora primeiro-ministro de 1976 a 1978 porque “não havia, de facto, outra alternativa”. Só que em 1983 havia alternativas e, no caso particular, a alternativa chamava-se António de Almeida Santos. Por outro lado, tinha sido estrategicamente definido, entre a maioria dos vencedores do quarto congresso do PS, em 1981, que Mário Soares não seria mais primeiro-ministro. Não para lhe evitar a “incomodidade” e o “sacrifício” mas para bem do Partido Socialista que não queria reviver com Mário Soares o passado em São Bento, em evidente prejuízo do partido que ele ajudara a fundar. Só que, como me dissera em Santo Domingo, o PS era assunto de somenos importância. Mário Soares não confiava em ninguém, queria ser primeiro-ministro e presidente da República e adorava dar a ideia de que o partido e o país não sobreviveriam sem ele. Erradamente, convencera-se, como em 1976 se convencera de que uma coligação com o PSD liderado por Sá Carneiro o colocaria a ele na penumbra, que uma coligação com o PSD, em 1983 — sem Sá Carneiro — o lançaria a ele, automaticamente, para Belém.
Eu seria claramente contra esta opção, acabando por ser, na comissão permanente, senão o único a pensar assim, pelo menos o único que diria o que pensava alto e bom som. Seria, também, o segundo acontecimento a criar um atrito entre nós. Mas desta vez, ao contrário das palavras afáveis no ameno clima da América Central, seria ele quem ficaria furioso comigo durante longo tempo.
A minha posição era facilmente defensável. O país atravessava uma situação de crise económica sem precedentes, com um défice da balança de transacções correntes superior a três mil milhões de dólares e a dívida externa praticamente igual às reservas de ouro, ou seja, superior a treze mil milhões de dólares. Portanto, num país normal uma situação pouco aconselhável para um primeiro-ministro que queria ser presidente da República. Segundo alguns profetas, o PSD era em 1983 um partido em destroços e só tinha duas soluções: ou se desintegrava completamente, fundindo-se em parte no PS, como Sá Carneiro chegara a admitir em condições obviamente diferentes, ou apareceria um novo “Sá Carneiro” que moralizasse e dignificasse o PSD. É curioso como, tendo o próprio PS acabado de atravessar um período de profunda descaracterização, entre 1978 e 1981, Mário Soares não quis compreender que o fenómeno que lhe permitira, graças a Ramalho Eanes, identificar o “inimigo” e ganhar o partido tinha todas as condições de se repetir no PSD. Por outro lado, tendo Mário Soares sido anteriormente um péssimo primeiro-ministro, agora, em condições mais adversas e simultaneamente obcecado com Belém, iria provavelmente ser ainda pior, com o risco de destruir o Partido Socialista e até de não fazer eleger o seu candidato à presidência. A minha posição e minhas opiniões, embora sinceras e com base naquilo que eu pensava ser o melhor possível para salvaguardar os interesses do partido e eleger Mário Soares, em 1985, nunca seriam perdoadas por Mário Soares e seus familiares que não terão gostado de ouvir a verdade. Também nunca foram devidamente compreendidas pelo resto do partido pelas mais variadas razões.
As primeiras abordagens sobre a composição do futuro governo de coligação entre o PS e o PSD teriam lugar mesmo antes de ser conhecida a opinião dos militantes do Partido Socialista. De qualquer forma, nem o referendo seria suficientemente idóneo para ser levado a sério — dada a óbvia vontade “irrecusável” do secretário-geral em se coligar com o PSD, segundo um compromisso que estabelecera com Mota Pinto mesmo antes de conhecer a opinião do partido —, nem o chamado referendo seria significativo uma vez que nele não participaria sequer metade dos filiados. À semelhança do que acontecera em 1978, quando Soares impusera um acordo de consequências trágicas com o CDS, também o terceiro governo constitucional liderado pelo Partido Socialista se inciaria da pior maneira. Os principais negociadores do Partido Socialista seriam o próprio secretário-geral e Almeida Santos, sendo seguro que Mota Pinto, enquanto novo líder do PSD, queria para si o lugar de vice-primeiro-ministro em cúmulo com outra pasta que todos presumiam vir a ser a dos negócios estrangeiros. Almeida Santos, apesar do vexame a que fora submetido, continuava disposto a fazer parte do governo. O que Mário Soares, em particular, justificava acontecer, pelas mesmas razões que o convenceriam a ele a não apoiar a sua inicialmente prevista designação de primeiro-ministro. Contentar-se-ia com o lugar de ministro de estado para os assuntos parlamentares, enquanto Jaime Gama se preparava para a defesa e Eduardo Pereira para a administração interna. Perante a explicação de que Mota Pinto, enquanto número dois do nono governo constitucional, acumularia com os negócios estrangeiros eu veria frustrada, embora com total naturalidade, a esperança e a “promessa” de vir a ser ministro dos negócios estrangeiros. Mas, praticamente em cima da hora, Carlos da Mota Pinto, declararia querer a pasta da defesa o que surpreenderia tudo e todos. Aí Jaime Gama afirmaria aceitar ficar no partido, enquanto secretário-geral interino, situação estatutariamente inexistente e que Almeida Santos recusaria terminantemente. Se Gama não fosse para o governo também ele não iria. Eduardo Pereira colocar-se-ia numa posição semelhante declarando que Jaime Gama poderia ocupar-se de novo da administração interna, mas Gama, por sua vez, também declararia não aceitar ir para o governo se Almeida Santos não fosse.
Nunca consegui apurar o que realmente estava por detrás desta reunião da comissão permanente, mas tive a nítida sensação de estar a assistir a uma farsa previamente encenada e em que eu era o principal visado. Colocado perante uma situação de gravidade para a unidade do partido — era essa a ideia que se quereria promover — eu permaneci calado. “Bom” disse Soares com um ar solene, “se vocês não se entendem na comissão permanente então o melhor é desistir já de formar governo. O Gama não tem outra solução senão ir para o governo como estava previsto. Ia para a defesa mas como o Mota Pinto agora quer a defesa não vamos discutir por causa disso. Fica o Gama com os negócios estrangeiros”. Eu fiquei estupefacto mas não disse nada. Gama responderia que “só aceitaria com o acordo do Rui Mateus” e na condição de reunir comigo regularmente. Eu estava entalado, furioso e, sobretudo, sentia-me impotente. Disse unicamente que achava que Jaime Gama seria um excelente ministro dos negócios estrangeiros. Depois, nunca tomei qualquer iniciativa de reunir com ele enquanto ministro dos negócios estrangeiros nem o contrário tão pouco ocorreria. Mário Soares, em termos semelhantes aos que tinham ocorrido aquando da nomeação de Medeiros Ferreira, em 1976, queria ele próprio ser primeiro-ministro e ministro dos negócios estrangeiros. Com esse objectivo necessitava de mim nas relações internacionais do PS para conduzir, com a sua reconhecida habilidade, uma autêntica diplomacia paralela, perante um Jaime Gama prisioneiro do corpo diplomático. Raramente, nos anos que se seguiriam, Jaime Gama apareceria ao lado de Mário Soares para conduzir os grandes acontecimentos da política externa portuguesa. Após esta reunião cancelei todos os compromissos que tinha e fui para o Algarve onde reflecti sobre se deveria ou não demitir-me da comissão permanente.
Mário Soares telefonar-me-ia então convidando-me a mim e a minha mulher para almoçar na sua casa do Algarve no domingo dia 26 de Junho. Disse-lhe que considerava que o que ele me tinha feito era inqualificável e que revelava as suas duas faces: a do Mário Soares afável, solidário e generoso e a outra, a do arrogante, egocêntrico e autoritário. O primeiro, quando atravessa momentos de dificuldade, é capaz de todos os actos de charme e contorcionismo para conseguir apoios para um determinado objectivo e o segundo, quando sente ter conseguido esse objectivo e o poder na mão, tenta sempre apagar da História os que o ajudaram a conquistar posições de relevo. Respondeu-me irritado que eu não tinha direitos adquiridos no partido e que, afinal, tanto direito tinha eu a ir para o governo como o “Lacão” (que na altura era seu funcionário no partido) ou como o “Menano“. Eu disse-lhe que ele estava propositadamente a desviar a conversa em termos insultuosos porque o que estava em questão não eram os direitos dos outros mas sim a forma como ele me tratara. Eu nunca lhe pedira para ir para o governo, embora do ponto de vista curricular e partidário tivesse tanto direito a poder ambicionar ser ministro como ele próprio e talvez até mais do que muitos outros que foram ministros e cuja escolha se baseara unicamente em critérios exclusivamente seus. Que aliás frequentemente se comprovaram ter sido errados em muitos casos, a começar pela sua própria autodesignação de primeiro-ministro, em três infelizes ocasiões. O almoço acabaria mal e eu, que decidira pedir a demissão da comissão permanente disse-lhe isso mesmo: que após um período de reflexão decidira pedir a minha demissão, mas que em virtude da persistência da sua arrogante atitude que me magoara profundamente o não faria. Ele que me demitisse quando quisesse pois que, para mim, o PS não passava de uma “empresa” dele. Em 1980 eu pretendera demitir-me do secretariado, como fizera Maldonado Gonelha, mas Soares em dificuldades com a tentativa do “ex-secretariado”, quase me suplicara para o não fazer. Assim, depois de humilhado e enganado, ele que tomasse a iniciativa de me demitir, dado que tinha poderes para isso.
Depois desta conversa não tive praticamente actividades políticas em representação do PS, dando ao secretário-geral todos os argumentos para me “despedir” com justa causa. Fui aos Estados Unidos a convite do meu amigo Robert Hunter do Centro de Estudos Estratégicos de Washington, onde dei uma conferência sobre Política externa e ao Rio de Janeiro participar numa conferência a convite da Universidade Cândido Mendes. Aproveitaria para fazer vários contactos nesses países, tendo nos Estados Unidos alugado uma viatura e visitado a minha velha “família” americana em Iowa, amigos no Arizona, o Grand Canyon e o magnífico parque de Yosemite, da Califórnia. No Rio de Janeiro encontrar-me-ia com Lionel Brizola e só regressaria à actividade partidária no dia 30 de Setembro para participar no quinto congresso do Partido Socialista. Antes, encontrar-me-ia com Mário Soares, no dia 28, num jantar em Azeitão, enquanto convidados do proprietário americano do Palácio da Bacalhoa, Thomas Scoville que era amigo de um amigo meu, Bernie Arondsen, subsecretário de estado. Disse-me que tinha chegado a hora de enterrar o “machado de Guerra” e acabar com os “amuos” e que queria “recompensar-me”, o que me deu a sensação de algum arrependimento pela forma grosseira como me tratara. De facto, não só não fora demitido da comissão permanentemente como continuaria, após o quinto congresso, por sua proposta, à frente das relações internacionais do Partido Socialista. A recompensa viria no claro apoio à minha eleição para presidente da comissão parlamentar de integração europeia e, juntamente com o deputado alemão do Parlamento Europeu, Klaus Wettig, co-presidente do comité misto da Assembleia da República do Parlamento Europeu. Pedir-me-ia igualmente para acompanhar as negociações entre o ministro dos negócios estrangeiros e o departamento de estado norte-americano, para constituição da fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e para pensar na ideia de que lhe falara na República Dominicana sobre a criação de uma organização semelhante às “conferências de Bilderberg“. Pelo meio, viria a saber depois, desistira da ideia de me substituir na comissão permanente. E que durante a minha “prolongada” ausência, não só chegara a discutir na comissão permanente a minha substituição como encarregara o seu chefe de gabinete e homem de confiança para a concretização dos primeiros projectos com a CIA, Bernardino Gomes e a sua mulher, Maria René, que ele entretanto colocara como funcionária da fundação de Relações Internacionais, para lançar uma conferência no âmbito dessa fundação que pudesse ser o embrião da tal ideia das “conferências Bilderberg“. Mas o resultado seria um autêntico desastre. A carta-convite endereçada a inúmeras personalidades com data de 8 de Agosto de 1983 propunha-se discutir em Lisboa, sob a presidência do primeiro-ministro Mário Soares, “A segurança económica e política de Portugal“, nos dias 4 e 5 de Novembro e referia ser este “um projecto discutido em pormenor com o professor Vitor Halbertstadt dos Países Baixos” que era nada mais nada menos do que o secretário-geral das “conferências Bilderberg“, com quem Bernardino Gomes tinha previamente tido alguns negócios particulares luso-israelitas. Propunha-se ser “uma reunião privada, fechada, informal e de alto nível”, tal e qual acontece na “Bilderberg“. Dos distintos convidados como David Rockefeller do Chase Manhattan Bank, Robert McNamara do Banco Mundial, Giovanni e Umberto Agnelli da FIAT, Winston Lord do Council on Foreign Relations, Andrew Knight do The Economist, Samuel Brittan do Financial Times, Daniel Janssen da UCB, Alain Gomez da multinacional Thomson-Brandt, W. Dekker da Philips, Robert 0’Neill do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos dos EUA, o ex-secretário de estado Henry Kissinger, o ex-primeiro-ministro francês Raymond Barre, o presidente da SAAB, Sten Gustafsson, Sylvia Ostry da OCDE, Bernard Rodgers, comandante supremo das forças aliadas na Europa, entre muitos outros, agradeceriam o convite mas, responderiam negativamente. O presidente da Confederação Europeia de Sindicatos, Georges Debunne, responderia mesmo com alguma dose de humor ao convite de Mário Soares afirmando ter ficado “atónito ao verificar que os convidados eram de um modo geral personalidades do mundo capitalista e da direita. Em tais circunstâncias, era-lhe difícil dar o seu acordo ao convite que lhe era endereçado”. Em virtude de tamanhas “negas”, o então primeiro-ministro escreveria uma carta a 19 de Outubro adiando a conferência devido a alegados “compromissos não previstos e inesperados”. Nunca mais teria lugar, mas explicaria em parte as razões do meu “reencontro” com o secretário-geral do Partido Socialista.
Segundo me contaria Almeida Santos, que acredito ter “vivido” com alguma angústia a paródia em que se revestira a reunião da comissão permanente em que eu seria excluído do governo a que nunca me candidatara, chegando mesmo a sugerir que eu aceitasse “uma secretaria de estado”, a questão levantada por Mário Soares para que fosse discutida a minha eventual substituição não passara de um estratagema que tinha como finalidade fazer chegar essa mensagem aos meus ouvidos. O nível de coscuvilhice na comissão permanente terá mesmo chegado ao ponto da utilização da diplomacia para o exercício de espionagem, tendo Jaime Gama relatado que na conferência que eu dera em Washington no dia 26 de Julho no Centro de Estudos Estratégicos teria sido “organizada” pela CIA. A razão para esta estranha afirmação prendia-se com o facto de haver, entre os convidados do Centro de Estudos Estratégicos, elementos da CIA. De facto, entre os convidados encontrava-se uma senhora, de nome Sharon Foster daquela agência. Mas entre os convidados do Centro de Estudos Estratégicos e internacionais a que era completamente alheio, encontrava-se o embaixador de Portugal Leonardo Mathias, o embaixador Paul Boeker do departamento de estado, o conhecido congressista de origem açoriana, Tony Coelho, o economista de renome mundial Michael Samuels, em representação da Câmara de Comércio dos EUA, o famoso ex-CIA, Richard Bissel que então representava a USIA [32], Norman Bailey da Casa Branca, Michael Polt do departamento de estado, Alfonso Finocciaro director do BPA em Nova Iorque, o luso-americano de origem açoriana Miguel Bensaúde, Rafel Diaz-Palart do banco nacional de Washington, William Kelly da Ford e o actual secretário da defesa, William Perry, então, juntamente com o meu amigo Robert Hunter, em representação dos anfitriões. Mário Soares contar-me-ia depois, um pouco em tom de intriga, esta pequena inconfidência de Jaime Gama, que não passara de um desperdício do esforço diplomático português. Mas pelo sim pelo não eu lembraria então Mário Soares que o primeiro funcionário da CIA que eu conhecera, enquanto tal, fora em 1979 e por sua indicação. Após Carlucci ter deixado Lisboa, em 1979, chegaria a Lisboa o novo embaixador Richard Bloomfield, que seria confrontado com um grande dilema. Era um católico devoto e um homem de esquerda com evidentes simpatias pelo PS, mas com a missão de desenvolver boas relações com o governo da Aliança Democrática e, em particular, com Sá Carneiro. Bloomfield, aparentemente, recusar-se-ia a veicular os contactos da CIA com o secretário-geral do PS, tendo-me então Mário Soares posto em contacto com o chefe da CIA em Portugal. Tanto quanto me recordo, nunca me daria nenhuma mensagem de particular relevo e, sempre que necessário, encontrar-se-ia com o secretário-geral do PS na minha casa. Eu ficaria amigo dele e do seu sucessor que ele me apresentaria, depois. Aliás, em 1994, o então presidente da República, condecorá-lo-ia no Palácio de Belém com a Ordem do Infante D. Henrique.
Helmut Schmidt, então fora do governo, fora o único dos convidados a aceitar participar na conferência que Mário Soares pensara realizar em Portugal sem a minha colaboração, com a finalidade de me demonstrar que eu era perfeitamente dispensável. Infelizmente para ele a sua iniciativa revelar-se-ia infeliz, não porque eu de algum modo fosse indispensável, mas porque nem ele nem o seu chefe de gabinete tinham compreendido que para organizar actos desta envergadura se requer uma longa preparação e muitos contactos prévios. Não bastaria invocar o título de primeiro-ministro que, aliás, para bem do bom nome e dignidade do país, se não deveria sujeitar a receber tantas embaraçosas “negas” ao seu convite. Neste caso, um primeiro-ministro manda contactar informalmante os potenciais convidados, para ver se o projecto tem ou não viabilidade, antes de enviar o convite formal. Exactamente para não sofrer o embaraço de ser reconhecido como chefe de governo de um país do Terceiro Mundo. Aliás, no âmbito da fundação de Relações Internacionais teríamos no ano seguinte uma nova alteração a propósito de uma conferência sobre a América Latina. Ao mesmo tempo que lançara a ideia da conferência que nunca viria a ver a luz do dia cedera a pressões dos americanos para organizar uma conferência sobre a América Latina e instruíra o seu chefe de gabinete para se encarregar da sua organização.
Eram conhecidas as divergências entre a esmagadora maioria dos partidos da Internacional Socialista e a administração Reagan a propósito da América Central. Também era do conhecimento geral que Mário Soares, enquanto vice-presidente da IS, alinhava sempre, nesta matéria, pelas posições norte-americanas. A fundação que tinha, dois anos antes, sido lançada com apoio da CIA era agora cobiçada para montar uma operação de relevo. Dado o papel de Mário Soares, presidente da FRI, secretário-geral do PS, vice-presidente da Internacional Socialista e primeiro-ministro de Portugal, o departamento de relações internacionais da AFL/CIO sugere que a FRI realize em Portugal, à semelhança de outras iniciativas de prestígio, uma conferência intitulada “O Desafio Democrático na América Latina“. Teria lugar no hotel Ritz em Junho de 1984 e seria organizada por Bernardino Gomes e por dois americanos conotados com a CIA. Não sei se eram ou não mas, no seio da Internacional Socialista, não se livravam da fama. Eram eles, Joe Godson e John Doherty da central sindical americana AFL/CIO. Eu tentaria demover o primeiro-ministro a emprestar o seu nome a uma conferência que em nada poderia favorecer o Partido Socialista. Compreendia, perfeitamente, que tudo na vida tem as suas contrapartidas e tendo o PS e a administração Reagan posições semelhantes em relação aos principais temas de então, nada mais natural que promover uma reunião conjunta. Aliás, no seguimento da invasão norte-americana da pequena ilha de Grenada em 25 de Outubro de 1983, o primeiro-ministro concordaria em enviar a sua filha Isabel aquela ilha e à América Central a partir de onde, enquanto jornalista de A Capital, ela poderia escrever alguns artigos de apoio às posições americanas. A sua viagem teria lugar três meses após a invasão. Agora, aceitar pressões e executar “encomendas”, não era bem o meu estilo. Na minha opinião a realização desta reunião prejudicaria a imagem do PS junto da Internacional Socialista e inseria-se num objectivo puramente americano. Felipe González que Mário Soares anunciaria na abertura dos trabalhos, não apareceria. A Frente Sandinista, principal alvo a atacar, recusaria o convite que eu lhes endereçaria à última hora, para equilibrar a conferência. Da Europa não viria um único participante de relevo e esta acabaria por se transformar num confronto entre a IS e as posições americanas.
A conferência teria a presença do presidente da Costa Rica, Luís Alberto Monge, e de Carlos Andrés Perez da Venezuela, assim como a do presidente da AFL/CIO, Lane Kirkland. Mas também a de Irving Brown, conotado com a CIA. Monge, Kirkland e Mário Soares seriam os “anfitriões” mas, Mário Soares compreenderia à última hora o que estaria em jogo e apressar-se-ia a convencer o seu amigo Raul Morodo a “patrocinar” a conferência, através da Universidade Menendez Pelayo de que era então presidente. Pela parte dos americanos conseguiríamos o nome da Universidade de Georgetown e Gunter Grunwald autorisaria a utilização do nome da fundação Ebert. Mas a única a financiar a conferência seria a AFL/CIO tendo, inclusivamente, pago, por intermédio da UGT, a publicação de um livro com as conclusões. No final, o “Desafio Democrático na América Latina” acabaria por não correr tão mal como se preverá, mas quem ler as suas conclusões compreenderá o fosso que então dividia os socialistas europeus. Na Internacional Socialista, contudo, ninguém terá ficado com dúvidas de que Mário Soares se prestara a fazer aquele serviço à Política americana.
Por outro lado, o aproveitamento da aceitação de Helmut Schmidt para a eternamente adiada conferência “A Segurança Económica e Política de Portugal“, transformado à última hora num convite para uma conferência particular daquele estadista, teria lugar no hotel Altis [33] e seria um retumbante sucesso. Já antes a fundação de Relações Internacionais realizara com a Universidade Internacional Menendez Pelayo de Espanha um importante simpósio para discutir “o papel da cultura nas sociedades democráticas” e eu tinha iniciado pedidos de depoimentos a grandes figuras internacionais para preparar um livro a utilizar como pré-lançamento da candidatura de Mário Soares à presidência da República. Insistiria junto de dezenas de líderes para que escrevessem umas linhas sobre Mário Soares com a finalidade de com elas publicar um livro. Reuni, pouco a pouco, pacientemente e com grande perseverança cartas e depoimentos de inúmeras personalidades com quem mantinha relações de amizade, desde Edward Kennedy a Leopold Senghor, e encarreguei João Gomes, então director do Portugal Hoje, de editar um livro com as partes mais significativas e, sobretudo, as que elogiavam Mário Soares.
Por sua vez, João Gomes, teria a ideia de solicitar ao “cartoonista” Vasco de Castro uma série de caricaturas dos principais contribuintes para o livro, que viria a ser intitulado «Soares, Portugal e a Liberdade» e seria publicado pela editora Moraes. Num interessante prefácio de Almeida Santos, por sua vez intitulado “retrato de um amigo em corpo inteiro”, este afirmaria que “o meu camarada e amigo Rui Mateus… teve uma ideia feliz: solicitar aos mais representativos líderes políticos do vasto mundo que melhor conhecem Mário Soares, um depoimento sobre a personalidade e o papel histórico do secretário-geral do PS” sendo “o destino desses depoimentos… o de, através da sua publicação em volume… ser prestada justa homenagem ao nosso camarada Mário Soares, na efeméride do seu sexagésimo aniversário” [34]. De facto este trabalho iniciado por mim em Abril de 1983, ainda durante o congresso de Albufeira da Internacional Socialista, destinava-se a ser divulgado em 1985 mas Soares, em 1984, sabendo do projecto e estando de novo em queda livre nas sondagens de opinião pública, resolveu pedir-me para apressar a sua conclusão a fim de se tirar proveito do mesmo. Assim seria efectuada uma cerimónia de apresentação no Grémio Literário, em Dezembro de 1984, tendo entregue ao homenageado um volume encadernado com todos os originais dos depoimentos e das caricaturas. Este presente ia no seguimento do desejo que o homenageado manifestara de poder juntar este volume à sua colecção de livros. O “cartoonista” Vasco de Castro, que fizera as caricaturas, seria pago pela FRI assim como o coordenador da edição, João Gomes, que o contratara.
Quatro anos depois, em 1990, teria conhecimento que aquele artista tinha processado a fundação com a alegação que esta lhe deveria ter devolvido os originais das caricaturas. Quando tive conhecimento deste processo, era presidente da fundação de Relações Internacionais, cargo em que por sugestão de Mário Soares o substituíra em 1986. As caricaturas tinham sido pagas e quem negociou os seus termos fora o jornalista e dirigente socialista João Gomes. Pedi a Roque Lino, fundador do PS e advogado, que se encarregasse do assunto e pediria a João Gomes que o informasse dos termos em que fizera o “contrato”. Caso se verificasse que aquele artista tinha direitos sobre os originais, contrariamente ao que me fora dito sete anos antes, não haveria outra solução senão pedir a Mário Soares para os devolver ao artista, conforme era solicitado. Longe de mim qualquer intenção de ficar com um trabalho de tão alegado valor artístico. Mas Mário Soares não devolveria os seus originais e eu acabaria por ter que ir a tribunal enquanto presidente da FRI. Tanto quanto me seria então dito, o artista estava disposto a trocar a autoria dos seus “cartoons” por uma compensação de quinhentos contos, que eu teria de pagar do meu bolso logo ali, uma vez que então a fundação não possuía meios para pagar esta dívida. A Mário Soares, que detém o livro, ninguém lhe ouviu uma única palavra não obstante toda a publicidade que jornais, com relevo para o Público — de que o artista então era colaborador — dariam àquele caso. A dívida da fundação, hoje na área do Partido Socialista, seria classificada na rubrica de “dívidas a fundadores”.
O ano de 1984, embora pródigo em acontecimentos e actividades internacionais para o PS e para o seu governo, pronunciava já o “anno horribilis” dos socialistas. Acabara o estado de graça vivido em 1983 e quando a Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez, mais conhecida pela Lei do Aborto, começou a ser discutida na Assembleia da República, em Janeiro de 1984, já a impopularidade do governo de Mário Soares atingira o seu ponto mais baixo e punha perigosamente em causa a estabilidade do “bloco central”. A Igreja lançaria uma campanha feroz contra o governo, com apelos aos católicos para não votarem nos partidos ou nos deputados que votassem favoravelmente aquela lei. A proposta do PS seria mesmo votada no dia 14 de Fevereiro, desencadeando o primeiro grande conflito com o seu parceiro, o PSD.
Uma vez mais, Mário Soares, preocupado com a repercussão desta lei, começara com antecipação a preparar uma estratégia internacional com o objectivo de colmatar a impopularidade negativa desta lei para a sua campanha presidencial junto dos católicos portugueses. Inicialmente a comissão permanente e a direcção do grupo parlamentar concordariam na ideia sempre presente de salvaguardar a imagem de Mário Soares, dando a impressão de que o projecto de lei era do grupo parlamentar do PS, um tanto ou quanto à revelia do primeiro-ministro. Só que a Igreja, recuperada de um longo período de apatia, seguira de perto os resultados do quarto congresso e não “engoliria” a ideia, apontando as suas armas contra o líder socialista. Mas, na expectativa desta reacção da Igreja, seriam atempadamente mobilizados os contactos com Bettino Craxi e com representantes de uma empresa que já tinha apoiado o PS e onde o Estado do Vaticano, aparentemente, então tinha interesses, para conseguir um encontro de Mário Soares com o Papa João Paulo II, que teria lugar poucos dias após a votação na A.R. da polémica lei, a 5 de Março, dando o Vaticano um bom exemplo de “realpolitik“. Quem não gostaria da “brincadeira” seria o cardeal patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, que acusaria Mário Soares de ir “ao Vaticano procurar créditos políticos para futuras campanhas eleitorais” o que ele considerava “uma atitude absolutamente condenável, não só porque representa pura demagogia, mas ainda pelo aspecto de certa profanação que envolve” [35]. A Igreja acusava que “a iniciativa da deslocação partira do primeiro-ministro e os primeiros preparativos foram levados a cabo, sob grande secretismo” e o editorial do Expresso intitulado “Soares, Deus e o Diabo” afirmaria que “cumpre reconhecer que o comportamento de Mário Soares, ao longo deste processo, foi demasiadamente ambíguo. Percebendo — talvez tarde — que o problema do aborto podia pôr seriamente em causa a sua candidatura presidencial” Soares procuraria “movimentar-se no sentido de não ser pessoalmente atingido pela iniciativa” [36]. Mas como é dom dos bons cristãos, a Igreja também perdoaria Soares e adoptaria a estratégia mais realista que João Paulo II tinha demonstrado.
Estava-se a reviver o passado em São Bento quando o primeiro-ministro concederia que os grandes erros dos seus dois primeiros governos teriam sido “a) formar um governo minoritário” em 1976 e “b) aceitar um acordo de incidência governamental com o CDS” cuja acção teria sido “caracterizada por uma desastrada política informativa de comunicação social” [37]. Esquecendo-se por completo das circunstâncias e até do facto de cinco anos antes ter admitido poder não ter sido a melhor escolha para primeiro-minstro, perguntava-se então com a volubilidade que o caracterizava: “A História repete-se? Não creio. Os portugueses aprenderam” [38].
Na Assembleia da República também já estava agendada a discussão sobre a Lei de Segurança Interna para o mês de Junho, quando se realizou a segunda visita oficial de trabalho do primeiro-ministro aos Estados Unidos. Vinha no seguimento da aprovação do diploma que constituía os Serviços de Informação e Segurança. O ministro dos assuntos parlamentares, Almeida Santos, apontara o assassinato de Issam Sartawi, no congresso da Internacional Socialista em Albufeira e perguntaria, se “não era socialmente patológico que uma tal D. Branca (pudesse) sem aparente incómodo, ser colega de profissão do honrado professor Jacinto Nunes?” para justificar os Serviços de Informação que a partir de então iriam ser “o que esta Assembleia quiser que sejam. Os seus defeitos serão apenas os da vossa vontade, que em democracia por definição os não tem” [39]. O brilhante discurso não passava de mero sofisma. Aparentemente, nem os deputados sabiam então que a democracia estava cheia de defeitos como não poderia ser função do SIS investigar o “parentesco” profissional da Dona Branca com o professor Jacinto Nunes. E como é costume na política portuguesa, faltou dizer que o SIS se enquadrava no esquema de defesa dos valores ocidentais e que Portugal era o único país da NATO que não possuía Serviços de Informação civis e autónomos. Também faltaria dizer — mas isso Almeida Santos provavelmente já não saberia — que os SIS eram a consequência lógica da cooperação esboçada a partir do chamado “Plano Callaghan“, em Novembro de 1975.
Era a primeira vez, após o 25 de Abril, que um primeiro-ministro seria recebido em Washington como um amigo de confiança. Não era só uma visita formal como tantas em que se discutem interesses mútuos. Era o culminar de anos de cooperação e defesa de interesses comuns. Além de encontros com o presidente Ronald Reagan que ofereceria um almoço de trabalho muito íntimo e significativo [40] na Casa Branca, houve encontros com o vice-presidente George Bush, com o secretário de estado George Schultz, com o seu antecessor, Alexander Haig, com o secretário da defesa, Caspar Weinberger, com o subsecretário para os assuntos africanos, Chester Crocker, com o presidente da confederação sindical AFL/CIO e com o director adjunto da CIA, que viria ao hotel Madison, numa das horas que no programa da visita apareciam em duplicado com um dos membros da administração. Haveria também um encontro com Carlucci que entretanto se ocupava de negócios enquanto número dois da Sears World Trade, uma empresa de comércio externo criada pela gigante do comércio americano, Sears. Esta visita tinha sido precedida de uma visita de dois dias à montanha de Cheyene [41] no Colorado para visitar o famoso e ultra-secreto Comando de Defesa Aeroespacial Norte-Americano (NORAD) onde seria recebido pelo general James Hartinger. Para além do clima informal de toda a visita seria esta a componente que os Estados Unidos só oferecem a pessoas de confiança. E ao contrário do que acontecera com Willy Brandt, Harold Wilson, e estava a acontecer com Olof Palme e vários outros dirigentes do socialismo europeu, Mário Soares era um homem de confiança dos serviços secretos ocidentais.
Como o assunto já tinha sido abordado na reunião com MacMahon no ano anterior, o que permitiria ao chefe da estação em Lisboa desencadear os contactos necessários, este reafirmaria a disponibilidade da CIA para colaborar na preparação dos Serviços de Informação portugueses, oferecendo-se o próprio director-adjunto para vir a Portugal discutir o assunto cora o responsável do governo, o ministro da administração interna. Entre as questões de decisão Política, a que mais interessava os americanos seria o nome do provável responsável pelo SIS. O primeiro-ministro de Portugal tinha um ano antes pensado no seu cunhado, José Manuel Duarte, que no PS se interessara por esta área tendo, depois, adquirido boas relações com o sector militar de informações enquanto governador civil do distrito de Lisboa. O próprio José Manuel Duarte, com quem eu sempre tivera excelentes relações, convencido de que eu poderia ter alguma influência na matéria, me falaria no assunto antes da visita aos EUA. Sendo o primeiro-ministro seu cunhado, eu acharia esta abordagem estranha, concluindo desde logo que para ele falar comigo era porque o seu cunhado já estaria a pensar noutro nome. Também posso revelar que em conversas em Lisboa com o embaixador Allan Holmes, o conselheiro Jim Creagan e o chefe da estação da CIA, este era um assunto frequentemente abordado fazendo os americanos “lobbying” em favor de Ladeiro Monteiro. Como eu estivera presente na reunião no hotel Madison, acabaria por ser convidado, em Junho, para um jantar no Restelo em casa do chefe da CIA em Lisboa, onde estariam como convidados de honra McMahon e Eduardo Pereira, ministro português da administração interna. Aqui os dois combinariam uma visita do ministro português aos Estados Unidos, sendo sugerido que eu o acompanhasse. Eu, entretanto, recusaria o convite, por não estar a par destes assuntos que nada me interessavam. Uns dias depois, em conversa com o primeiro-ministro, eu dir-lhe-ia que não pretendia estar associado a este assunto, decidindo então ele enviar o seu chefe de gabinete, Bernardino Gomes, para acompanhar o ministro. Uma vez que a visita era reservada, Soares ordenaria que eles fossem acompanhados das respectivas mulheres e que os bilhetes, a cargo dos anfitriões, fossem comprados por intermédio da fundação de Relações Internacionais, de que Soares era presidente e Eduardo Pereira e Bernardino Gomes igualmente vice-presidentes. Quando a lei de segurança interna começou a ser discutida no plenário da Assembleia da República, “Eduardo Pereira, ministro da administração interna, não compareceu ao debate por, como informou Almeida Santos, se encontrar, possivelmente, nos Estados Unidos” [42] onde seria acompanhado de Bob Skidmore que, pouco tempo depois, viria para Lisboa substituir o chefe da delegação da CIA no nosso país. Quando este chegou a Portugal, na primavera de 1985, o seu antecessor convidar-me-ia para um café no hotel Ritz a fim de o conhecer. Tinha um estilo de agente ao serviço da United Fruit Company que chega a uma República das bananas. Disse-me sem rodeios que estava em Portugal com a tarefa de desfazer as asneiras do Frank Carlucci. Começavam a correr ventos de direita em Portugal e, nos EUA, alguns elementos da CIA, também reviviam o passado na América Central com o chamado Iran-Contra “affair“. Depois daquele breve encontro só falaria com ele duas vezes, sendo a última em condições algo misteriosas.
Após a independência de Moçambique, em 1975, as relações deste novo país com Portugal nunca seriam particularmente afectivas. Muito menos ainda o eram as relações do PS com a FRELIMO quando eu participei no seu quarto congresso em Abril de 1983. Eu sentira em 1976, em Luanda, que Agostinho Neto desejara fazer uma aproximação ao Ocidente o qual, lamentavelmente, não responderia com a recomendada celeridade aquele apelo. Os esforços portugueses para uma aproximação a Moçambique também seriam então pouco significativos e pouco se sabia dos dirigentes da FRELIMO, para além de anedotas torpes que circulavam em Lisboa em relação ao presidente Samora Machel. E, enquanto em Luanda, após a independência, os angolanos se queixavam da hostilidade da Imprensa portuguesa, em Moçambique, com muito maior justificação, existia um certo distanciamento em relação a certas atitudes de natureza racista do nosso país. Em 1976, por ocasião do segundo congresso do Partido Socialista, numa conferência de imprensa presidida por Salgado Zenha em que seria anunciado que iriam estar presentes convidados estrangeiros de 55 partidos e organizações internacionais, seria notada a ausência da FRELIMO, tendo eu então explicado que a FRELIMO, também solicitada a fazer-se representar no congresso, nem sequer respondera ao convite. O presidente moçambicano, Samora Machel, era, contrariamente ao que se fazia crer em Portugal, um homem de uma grande inteligência e perspicácia e com um refinado sentido de humor. Tinha também à sua volta quadros de grande qualidade intelectual e humana. Durante o congresso em que predominavam os convidados de países de leste, o Partido Socialista, acabado de sair vencedor das eleições de 25 de Abril e em vias de estabelecer uma coligação com o PSD, seria violenta e deselegantemente atacado pelo representante do Partido Comunista Português [43] durante a sua alocução aos congressistas moçambicanos. O presidente Samora Machel ficaria chocado com o teor de discurso do seu convidado do PCP que não aplaudiria. A “plateia” imitá-lo-ia, aplaudindo frouxamente. Estava previsto que eu falasse após o PCP e Samora Machel receou que eu, usando do meu direito de resposta, transportasse para Maputo as quezílias entre o PS e o PCP e transformasse o seu congresso num indesejável espectáculo mediático. Quando eu fiz uso da palavra em nome do PS, iniciaria o meu discurso dizendo que o congresso se realizava num momento de grande tensão na África Austral, causado pelo regime racista da Africa do Sul e pelos reflexos da crise económica mundial que afectavam “embora desproporcionadamente tanto os países industrializados como os países em vias de desenvolvimento” e que, como tal, o PS não tinha vindo a Moçambique “para falar da política interna portuguesa mas sim para reiterar ao partido FRELIMO o seu apoio e solidariedade na luta pelo desenvolvimento, independência económica e defesa da soberania… e o desejo de que a cooperação entre os nossos dois povos se continuasse a desenvolver no interesse mútuo dos dois países” [44]. Quando terminei de falar, após várias considerações sobre a situação na Africa Austral, Samora Machel levantar-se-ia do seu lugar de presidência e dirigindo-se a mim deu-me um efusivo abraço, enquanto os congressistas aplaudiam com um vigor que contrastava significativamente com o que tinham dispensado ao PCP. Nessa noite, durante um jantar no palácio presidencial, Samora Machel teria uma amistosa conversa comigo, contando-me algumas histórias sobre os momentos que se seguiram à sua chegada a Maputo e distanciando-se, claramente, da União Soviética. Falar-me-ia também nas grandes esperanças que depositava na sua próxima visita oficial a Portugal, que teria lugar em Outubro. Num depoimento meu à comunicação social de 11 de Outubro, sobre a visita do presidente Samora Machel, eu diria que “aquando do meu encontro com o presidente Samora Machel em Maputo, em finais de Abril tivera oportunidade de lhe dizer que seria certamente muito bem recebido em Portugal, mas creio que todas as expectativas foram ultrapassadas”. De facto, Samora Machel encantou os portugueses que só o conheciam de uma certa intriga política racista de extrema-direita. Não só pelo seu charme como pela sua inteligência e moderação. Como eu diria então, o PS contribuíra, “de uma maneira clara e decisiva, para o relacionamento entre os dois países que… entrava agora numa nova fase”. O próprio presidente enviaria uma carta aberta ao povo português no dia 11 de Novembro, em que declarava que “vós, povo português, soubestes receber-nos com a amizade de quem recebe em sua casa um irmão”. A partir de então as relações com a FRELIMO e com Moçambique modificar-se-iam significativamente. Eu iria de novo a Maputo a 10 de Junho de 1984, onde assinei com Joaquim Chissano [45], então ministro dos negócios estrangeiros e responsável pelas relações exteriores da FRELIMO, um acordo de cooperação com o Partido Socialista. No seu discurso, Joaquim Chissano diria, referindo-se a mim, que eu demonstrara desde a minha juventude ser um “ardente combatente contra o fascismo” e que por isso mesmo me vira obrigado ao exílio, tendo porém continuado, “sem vacilar a lutar para a libertação do povo português” ao mesmo tempo que reconhecia o meu papel na fundação do Partido Socialista e a minha luta contra “o fascismo e o colonialismo”. “É esta trajectória combatente que queremos saudar. Queremos também manifestar-lhe o nosso apreço pelo seu empenho desde há muito demonstrado no desenvolvimento das relações entre os nossos dois partidos, como fora demonstrado ainda com a minha participação no quarto congresso do Partido Frelimo” [46].
Eu teria também um importante encontro com o presidente Machel nesta ocasião onde ficaria definido que o PS e a fundação de Relações Internacionais iriam desenvolver programas de cooperação que incluíam seminários de formação sobre o funcionamento das instituições de financiamento internacional e a criação de um Instituto de Opinião Pública naquele país. A FRI, que já tinha também desenvolvido programas idênticos com Cabo Verde, começava a intervir na política externa segundo os objectivos para que fora inicialmente constituída com financiamentos norte-americanos. No dia 31 de Agosto, o primeiro-ministro Mário Soares inciaria em Maputo a sua primeira visita oficial à frente de uma delegação de mais de cem pessoas que incluíam Jaime Gama e o ministro do comércio, Álvaro Barreto. Pela Assembleia da República, Manuel Alegre e eu enquanto deputados do PS e Rui Almeida Mendes do PSD. O porão do avião da TAP transportaria, entre as bagagens, um contentor com máquinas de escrever, fotocopiadoras etc., que a fundação de Relações Internacionais oferecia à FRELIMO ao abrigo do acordo de cooperação que eu assinara. No final da visita oficial a Moçambique, a delegação portuguesa regressaria a Lisboa no avião da TAP. enquanto Mário Soares e eu acompanharíamos o presidente Samora Machel e Joaquim Chissano no avião do presidente de Moçambique para a cidade de Arusha, na Tanzânia, onde a Internacional Socialista e o grupo socialista do Parlamento Europeu realizariam a sua primeira conferência com os estados da Linha da Frente, com o congresso nacional africano da África do Sul e com a SWAPO da Namíbia.
Teria lugar nos dias 4 e 5 de Setembro e seria uma reunião única na história da Internacional Socialista. Contaria com a presença dos presidentes Julius Nyerere, da Tanzânia, Kenneth Kaunda, da Zâmbia, Robert Mugabe, do Zimbabwe, Samora Machel, de Moçambique e os então líderes do congresso nacional africano da África do Sul, Oliver Tambo e Sam Nujoma da SWAPO [47] da Namíbia. Da parte dos europeus encontravam-se em Arusha os ex-primeiros-ministros da Holanda e da Dinamarca [48] e Lionel Jospin da França. Mas o maior destaque iria para os primeiros-ministros da Suécia, Olof Palme e Mário Soares, de Portugal. Cada um à sua maneira representava uma nuance na Política da Internacional Socialista para a África Austral que, naquele momento, atingia o auge da polémica em virtude do acordo de não-agressão e boa vizinhança que Samrora Machel assinara, pouco tempo antes, com o presidente da África do Sul na localidade fronteiriça de Nkomati. Para Palme e para a maioria dos países da Linha da Frente o acordo representava um perigoso precedente de cedências à África do Sul que a Internacional Socialista e os países da Linha da Frente pretendiam isolar completamente. Recorrendo mesmo, se necessário, à mobilização de apoios e da opinião pública para a luta armada contra o regime sul-africano. Com o acordo de Nkomati, se bem que nunca referido pelo nome, existia o perigo de um futuro reconhecimento do “status quo” na Africa do Sul com prejuízo para a luta do ANC [49] e para a independência da Namíbia. Para Samora Machel o acordo de Nkomati era um acto de soberania que resultava de um reconhecimento das realidades existentes naquela zona. Segundo Machel, a existência da Africa do Sul, como potência regional, não era um fenómeno de então, do mesmo modo que “o racismo não era um fenómeno nascido em 1948 quando o apartheid foi institucionalizado” ao mesmo tempo que se poderia afirmar que “o colonialismo não nascera quando a Liga das Nações entregou a Namíbia à Africa do Sul” [50].
O objectivo do acordo que seria conhecido por “cooperação construtiva” tinha o apoio de Mário Soares, que se pronunciaria de forma clara contra o clima de agressões que se vivia na Africa Austral e fazia parte da política do PS que, nesta área, também se encontrava algo isolada do resto da Internacional Socialista e próxima das posições norte-americanas. Para o PS era necessário um clima de paz, o estabelecimento de relações construtivas num quadro de não alinhamento, para se conseguir o desenvolvimento. Nada de novo aliás e muito em sintonia com a tradicional moderação dos socialistas europeus dos anos 70. Mas, parafraseando um velho provérbio mexicano, alguns diriam “pobre PS tão longe do socialismo e tão perto dos Estados Unidos“. Na realidade, em matéria de política externa, o PS português lideraria a Internacional Socialista em relação aos principais conflitos internacionais tendo ocasiões em que, dentro do possível, também moderaria a tendência dos EUA para posições mais radicais. E bastaria, a posteriori, comparar as posições do PS, próximas ou não das dos americanos, com as da Internacional Socialista em matéria de democratização da América Latina, paz no Médio Oriente, fim do regime de apartheid e paz na Africa Austral, para verificar que o PS estava no caminho certo. As posições de Palme e de Soares chegariam a ter a forma de um confronto político com praticamente todos os líderes africanos a apoiar Palme e só Machel a apoiar Soares.
O prestígio de Mário Soares na IS tinha sido restabelecido com as missões ao Médio Oriente, não obstante a Imprensa portuguesa persistir em afirmar esse declínio, que derivava essencialmente da diferença de discurso entre ele e o radicalismo que emergiria no movimento socialista europeu nos anos 80. Olof Palme com quem eu mantinha uma grande amizade há mais de dez anos e tinha sido um dos heróis da minha juventude, estava convencido de que Mário Soares se tinha “vendido” aos americanos e associava-me, a mim, a essa traição ao socialismo. Palme era um homem generoso e, talvez, de perspectivas diferentes, aquele a quem mais o PS devia. O PSD sueco ajudara o PS e Mário Soares, mais do que nenhum partido europeu antes do 25 de Abril, dentro de uma proporção da própria realidade ASP/PS e sem nenhuma exigência de subserviência ou contrapartida. As imposições algo grosseiras dos alemães no campo económico, dos americanos no campo político e as pretensões francesas no campo cultural eram completamente indiferentes aos suecos que se moveriam por imperativos de ordem moral e ética pouco vulgares em Política e, essencialmente, por solidariedade. No entanto Palme, talvez devido ao meu relacionamento com a cultura sueca, e talvez com alguma dose de razão, sentira-se desiludido pelo meu alinhamento político com o líder do meu partido. E não esconderia essa desilusão após a reunião de Arusha. Pelo meu lado eu sabia que Palme estava convencido de ter razão e que a sua luta em prol da libertação dos povos da Africa Austral era genuína. Tão genuína como tinha sido o seu apoio desinteressado ao PS e à democracia em Portugal. Palme não tinha confiança na CIA nem na coerência dos governos dos EUA. Tinha vivido de perto e com algum conhecimento de causa a intervenção norte-americana no Vietename, estando sempre com grande coragem ao lado dos oprimidos, tinha sentido com sinceridade a dor do povo chileno, apoiara como ninguém os movimentos de libertação em África e na América Latina. O seu papel em relação a Portugal e à Espanha não poderia ter sido mais sincero e generoso. Nos anos 80, Palme seria, contudo, um homem diferente, com algumas ideias com que eu nunca poderia estar de acordo. A sua generosidade era tão sincera e genuína como a sua inexperiência das realidades do Terceiro Mundo. O seu desejo de bem-estar dos outros povos era acompanhado de um profundo desconhecimento das realidades desses mesmos povos e de uma vivência num país e num ambiente onde as questões eram geralmente tratadas em termos laboratoriais. Para ele o mundo dividia-se um pouco entre o bem e o mal, entre a riqueza e a pobreza absoluta, entre o opressor e o oprimido. Para ele a CIA estava sempre do lado negativo o que, convenhamos, era provavelmente o seu grande “handicap“. Eu, que em termos humanos nunca duvidei da sua sinceridade e da sua generosidade, e que em termos de superioridade moral e intelectual nem sequer colocava a questão, encontrava-me do lado de Mário Soares. Acho que por todas as razões opostas às mencionadas mas, por força do pragmatismo, os americanos e Mário Soares tinham razão. Palme nunca o compreenderia!
No mês de Outubro realizar-se-ia a primeira reunião da Internacional Socialista no Brasil. Lionel Brizola tinha sido eleito governador do estado do Rio de Janeiro e o seu partido, o PDT, lançado em Lisboa anos antes, fazia então parte da grande família socialista internacional. A contribuição do PS para esta evolução seria aliás mais do que uma vez salientada, não só por Lionel Brizola mas também por outros brasileiros como o malogrado primeiro presidente do Novo Brasil Democrático, Tancredo Neves e, Fernando Henriques Cardoso, então ligado ao PMDB e hoje igualmente presidente daquela grande nação. A reunião da IS teria igualmente para mim um significado importante para além da emoção de poder encontrar-me com Brizola, agora governador, que eu apoiara contra tudo e contra todos. A IS aceitaria pela primeira vez convidar para uma reunião sua representantes da oposição ao regime sandinista da Nicarágua, tendo mesmo aceitado promover sob os seus auspícios, uma reunião entre o comandante Bayardo Arce da Frente Sandinista (FSLN) e Arturo Cruz da Coordenadora Democrática (CDN) que assinariam um primeiro acordo de cessão de hostilidades e eleições democráticas em Janeiro de 1985. Arturo Cruz canditar-se-ia com o apoio dos quatro partidos que compunham a CDN contra o candidato oficial da Frente Sandinista, Daniel Ortega, mas acabaria por desistir, em virtude do desrespeito pelo que ficara acordado no Rio de Janeiro. De qualquer modo, do ponto de vista do PS, o simples reconhecimento da CDN era um primeiro passo e a admissão de que talvez o entusiasmo “revolucionarista” de alguns dirigentes daquela organização tivesse ido mais longe do que o respeito pela democracia poderia tolerar!
Entretanto, no Rio aconteceria um imprevisto social. Manuel Bullosa, grande empresário português expropriado pela “Revolução dos Cravos“, tinha convidado para almoçar no seu iate o então ministro da cultura, Coimbra Martins, que se encontrava de visita ao Brasil, assim como dois ex-colaboradores da banca portuguesa, Raul Capela, então, do banco Totta e Alfonso Finnocciaro, do BPA em Nova Iorque. Com o ministro da cultura encontrava-se também Teresa Patrício Gouveia, que na altura fazia parte do ministério da cultura. Soares e a sua delegação à reunião da IS seriam também convidados, tendo contudo Joaquim Catanho de Menezes recusado o convite. Mário Soares ainda o tentaria convencer mas Catanho, na talvez única vez em que o vi zangado com Mário Soares, responder-lhe-ia que ele enquanto líder do PS não deveria aceitar um convite de um homem tão ligado ao anterior regime. Eu, pelo contrário, pensava que Bullosa tinha começado do nada e conseguira acumular uma grande fortuna graças aos seus esforços e à sua capacidade, o que num país normal costuma ser motivo de orgulho. Para mim era o estado português que estava em dívida pela forma como efectuara as nacionalizações com grande aplauso do PS e de alguns destacados socialistas. Aceitaria assim o convite com o maior prazer. E, assim, ficaria a saber pela primeira vez que Mário Soares tinha trabalhado para Manuel Bullosa durante o seu exílio em França. Durante a agradável conversa, com o Rio de Janeiro como pano de fundo, foi revivido um pouco o passado, tendo Manuel Bullosa contado que depois de “ajudar” Soares, tinha sido duramente recriminado pelo presidente do conselho, Marcello Caetano a quem ele responderia que era um homem de negócios e não um político e, como tal, achava por bem dar-se com o governo e com a oposição. Caetano ter-lhe-ia respondido que Soares não era oposição mas um traidor exilado, ao que o empresário comentaria mais ou menos com as palavras de que “fazia desejos para que o senhor professor nunca viesse a ter que conhecer o exílio, mas se isso acontecesse que teria o maior gosto em poder ajudá-lo também”. Manuel Bullosa, no entanto, não morria exactamente de amores pelo líder socialista, a quem criticaria a atitude tomada durante as nacionalizações. Apesar dos protestos de “não diga isso senhor Manuel Bullosa“, este nunca se conformaria com a forma como os seus bens e o produto do seu trabalho tinham sido nacionalizados e numa carta que me enviaria pouco depois, manteria essa amargura e crítica velada a Mário Soares. Acontece que aquele diálogo, que parecia prometer em revelações, seria interrompido por uma repentina tempestade que ia provocando um naufrágio. Ondas enormes abater-se-iam sobre todos nós e o vento fortíssimo começaria a criar fissuras no iate e, Manuel Bullosa, visivelmente preocupado, lá conseguiria conduzir-nos a bom porto ao fim de uma boa meia hora. Tive momentos em que pensei que a tempestade parecia um castigo, que eu pensava não merecer.
No início de 1985 não resistiria aos convites que o embaixador do Japão insistentemente me fazia e aceitei o convite do seu governo para visitar, com a Gunilla, aquele extraordinário país. Era a componente da Trilateral [51] que acciona o mundo desenvolvido, que eu nunca tivera oportunidade de conhecer. Num programa organizado pelo ministro dos negócios estrangeiros japonês tive oportunidade de conhecer e contactar com todos os partidos com representação no parlamento, “Diet“, sendo recebidos com particular carinho pelos líderes do PS e PSD, ambos membros da IS e que eu conhecia de reuniões anteriores. Falei com empresários, com especial relevo para o presidente da Mitsui e o presidente da empresa Toyota e com a confederação empresarial Keidandren. Discutimos Portugal, o clima de investimentos do nosso país e o governo. Numa longa conversa com o então ministro dos negócios estrangeiros Shintaro Abe, no dia 21 de Janeiro, compreenderia que apesar da visita oficial que Mário Soares efectuara àquele país, no ano anterior, e da tentativa para convencer investidores nipónicos das vantagens da próxima entrada do nosso país na CEE, como porta de entrada na Comunidade Europeia, os japoneses permaneciam pouco confiantes pela falta de estabilidade que se sentia em Portugal. Pude também verificar que, apesar dos importantes laços culturais que unem os dois países, o esforço diplomático português naquele poderoso país se limitava a um embaixador e um secretário sem meios de trabalho nem contactos com ninguém.
Mas durante esta visita reencontraria o meu velho colega Hiroshi, que no ano de 1961 era, como eu, bolseiro do American Field Service, e vivia com uma família americana na mesma rua e estudava na mesma escola que eu. Foi um agradável reencontro ao fim de mais de vinte anos e a renovação de uma relação que hoje continuamos a manter com alguma regularidade. Graças a ele e à amizade da nossa adolescência, nesta e em futuras visitas que fiz ao Japão, pude melhor compreender e interpretar aquela, que apesar dos avanços tecnológicos, permanece uma das mais misteriosas sociedades do globo e, talvez, o país onde os europeus têm mais dificuldades de penetração. Quando visitei o patriarca da Toyota, no luxuosíssimo último andar da sede daquela empresa em Nagoya, verifiquei que à entrada da porta do seu escritório, o presidente da Toyota, um dos homens mais ricos e poderosos do mundo, tinha uma placa onde se podia ler “cônsul de Portugal“. Durante o nosso encontro, em que seríamos recebidos com regras e num ordenamento que data das audiências dos “shoguns“, não resisti a perguntar-lhe a razão pela qual ele era cônsul de Portugal em Nagoya, sendo certo que naquela imensa cidade, era improvável a existência de portugueses e quando a empresa de que ele era proprietário movimentava valores superiores aos do OGE português. Dir-me-ia então que no Japão não existia nobreza no estilo europeu e que este posto honorífico, que permanecia na sua família desde a chegada dos portugueses a Nagasaki, no Século XVI, correspondia a um dos mais prestigiados títulos de nobreza daquela potência oriental.
Em 1985, o mais sério polo de tensão entre a Internacional Socialista e os EUA relacionava-se com a questão do desarmamento no quadro das tensões Leste–Oeste. Esta questão era, e é, ainda hoje, fundamental para a sobrevivência da Europa e, em grande parte, do mundo actual e das suas diferentes culturas. A corrida aos armamentos nucleares aumentara perigosamente na década de 60, quando a União Soviética começou a dominar a técnica de lançamento independente de ogivas nucleares de longo alcance já existente nos EUA. Esta, que tinha o nome de MIRV (Multiple Independently Targeted Reentry Vehicle), seria conhecida pela primeira vez em relação aos mísseis balísticos intercontinentais americanos “Minuteman III“, no ano de 1968, e levaria os soviéticos a tentar adaptá-la aos seus “SS–9“. Consistia essencialmente na capacidade de lançamento de um míssil com uma ogiva nuclear que ao penetrar o espaço aéreo inimigo se multiplicava em vários mísseis de grande precisão, cada um deles podendo atingir alvos separados. O conselheiro de segurança nacional, Henry Kissinger, encarregado a partir de 1969 pelo presidente Nixon de controlar os serviços de inteligência dos EUA verificaria que, contrariamente às previsões da CIA, a capacidade nuclear soviética e o seu domínio da tecnologia “MIRV” era muito superior ao que todos pensavam. Seria esta descoberta, causada em grande parte pela “distracção” americana durante a Guerra do Vietname, que provocaria o início do chamado diálogo Leste–Oeste sobre armas nucleares e conduziria ao primeiro tratado para a limitação de armas estratégicas, “SALTI“, assinado em 1972 entre as duas superpotências. Mas o acordo, que aparentemente Nixon assinaria sob pressão para ganhar dividendos eleitorais, não previra uma verificação efectiva da limitação acordada no tratado. Quando Nixon se demitiu, em 1974, os serviços de informação americanos estavam convencidos de que os soviéticos em vez de reduzir as suas tecnologias e armas nucleares, as tinham aumentado consideravelmente. Em 1979, Jimmy Carter e Leonid Brejnev, assinariam o segundo tratado, o “SALT II“, o que não impediria o bloco comunista de continuar a desafiar sem precedentes os EUA em todos os recantos do mundo.
O período da presidência de Jimmy Carter, apesar dos avanços na área da defesa dos direitos humanos, da democratização de Portugal, Espanha e Grécia e dos acordos de Camp David entre Israel e o Egipto, ficaria marcado como um dos mais graves períodos de declínio ocidental e de ascenção do imperialismo soviético. Na África Austral, na América Central e na Europa, onde à sombra do “SALT II” e dos acordos de Helsínquia, a União Soviética começaria uma insólita penetração dos partidos socialistas democráticos a par do desenvolvimento de uma nova e aterradora série de mísseis balísticos de médio alcance, os “SS 20“, capazes de atingir qualquer ponto da Europa Ocidental. Ronald Reagan e sobretudo os seus secretário de estado e da defesa, respectivamente Al Haig e Caspar Weinberger, chegados ao poder em 1981, responderiam ao repto que o chanceler alemão Helmut Schmidt lançara aos EUA, numa conferência que teve lugar em Londres em 1977. Schmidt convidaria os EUA, no que veio a ser conhecido por “two-track policy” — Política em duas fases — a, primeiro, instalar na Europa mísseis de cruzeiro modernos e substituir os velhos mísseis Pershing pelo modelo Pershing II com ogivas múltiplas e, numa segunda fase, iniciar negociações no quadro da NATO com a União Soviética para a redução de armas nucleares na Europa.
Os movimentos pacifistas, muitos deles implantados no coração de partidos socialistas europeus e fortemente motivados por organizações soviéticas como o Conselho Mundial para a Paz e Cooperação, iniciariam uma campanha sem precedentes a favor do desarmamento nuclear unilateral na Europa. A esta onda adeririam mesmo alguns importantes líderes de partidos da Internacional Socialista que constituiria para o efeito uma comissão para discutir o desarmamento, chefiada pelo então primeiro-ministro da Finlândia, Kalevi Sorsa. Criou-se a ideia de que a haver um conflito militar Leste–Oeste os EUA estariam relativamente protegidos das suas consequências, pois nele estariam unicamente envolvidos mísseis ocidentais instalados em países da Europa Ocidental e mísseis soviéticos de médio alcance, incapazes de atingir os Estados Unidos, protegidos pelo tratado SALT sobre mísseis balísticos de longo alcance. O clima de histeria e de irrealismo instalado na Europa era altamente favorável à União Soviética que aparecia aos olhos de muitos como uma pomba branca. A União Soviética, embora se recusasse a negociar o desmantelamento dos seus mísseis da série SS a que chamava “defensivos”, considerava mísseis instalados na Europa com características semelhantes como sendo “ofensivos”. Para a União Soviética era de todo conveniente dar a entender que o seu conflito era exclusivamente com os EUA e portanto de natureza intercontinental enquanto os EUA, egoisticamente, pretenderiam salvaguardar o seu território e sacrificar o “teatro” europeu no caso de um eventual conflito Leste–Oeste.
A questão nuclear tornar-se-ia tão importante e a oposição à instalação dos Pershing II e cruzeiro foi de tal maneira alastrando, sobretudo na Alemanha e na Inglaterra, que o próprio Helmut Schmidt, que em 1977 pedira os mísseis pela primeira vez, lançaria em 1981 a ideia de uma “opção zero”, ou seja: a promessa soviética de desmantelamento dos “SS-20” a troco da não instalação dos “Pershing II” e “cruzeiro” na Europa Ocidental. Como se poderá imaginar, no quadro da Internacional Socialista, o entendimento era de todo impossível. Por um lado, britânicos, holandeses, suecos, noruegueses, finlandeses, dinamarqueses e austríacos aceitavam a “opção zero” mas pretendiam que a iniciativa pertencesse à NATO, dando aos soviéticos o benefício da dúvida. Do outro, os socialistas portugueses, espanhóis, italianos, franceses e belgas aceitavam a “opção zero” no quadro de um processo de desarmamento gradual e simultâneo. Os países da NATO poderiam instalar “Pershing II” e “cruzeiro” até se chegar a um acordo para o desmantelamento simultâneo. Os socialistas alemães, para quem compreensivelmente este debate tinha maior acuidade, encontravam-se divididos entre a linha de Willy Brandt e a linha de Helmut Schmidt.
Foi com este cenário político e depois de inúmeras reuniões inconclusivas — e em que uma vez mais o PS, em geral, e Mário Soares, em particular, eram acusados de “excessivo pró-americanismo” por alguma imprensa [52] e por destacados membros do chamado “ex-secretariado”, que colaboravam em Portugal nas iniciativas do Conselho Mundial da Paz —, que eu tive a primeira iniciativa no quadro da Internacional Socialista que evitaria o que, cada vez mais, parecia uma ruptura insanável. Os dois grupos opostos reuniriam separadamente para preparar a estratégia para as reuniões da comissão da IS para o desarmamento que, para além de ser presidida por um finlandês e secretariada por um austríaco, países neutros onde o peso da ameaça soviética mais se fazia sentir, tinham a participação de partidos latino-americanos para quem as questões sobre o desarmamento eram meramente retóricas e indissociáveis de um compreensível antiamericanismo histórico.
Lançaria então o que chamei “reunião dos partidos socialistas dos países da NATO“, convidando esses partidos para uma primeira reunião que teria lugar em Lisboa [53]. A minha ideia fora simples: enquanto até ali os partidos se reuniam em grupos divididos regionalmente, segundo a linha norte-sul da Europa e por serem pró ou contra o desarmamento nuclear, fomentando atitudes de desagradável confronto entre socialistas, a criação deste terceiro grupo tinha toda a razão de ser. Eram todos socialistas, todos tinham em comum serem oriundos de países da NATO e, por isso mesmo, tinham que assumir em conjunto as suas responsabilidades. Empenhar-se-iam nesta ideia pelo PS também, Jaime Gama, José Luís Nunes e José Lello. Os nórdicos e os “neutros” não ficariam muito satisfeitos com a conferência de Lisboa mas, a verdade é que, quando o comité da IS presidido pelo primeiro-ministro Kalevi Sorsa reuniu três meses depois em Viena, já se sentiria pela primeira vez um esboço de concertação entre os socialistas da Aliança Atlântica. A ideia prosseguiria com nova reunião era Bona, no mês de Novembro, onde os partidos louvariam a inicitiva do PS português.
No dia 23 de Novembro, já em fase de digestão do previsível desastre eleitoral, encontrava-se reunida a comissão nacional do PS no largo do rato quando recebi uma estranha chamada telefónica. Era o chefe da estação da CIA junto da embaixada dos EUA a dizer que tinha urgência em falar comigo. Eu disse-lhe que estava convidado para jantar nessa noite em casa do ministro-conselheiro da embaixada, Jim Creagan, e que poderíamos falar então. Disse-me que era da máxima urgência e eu, que tinha falado com ele pouco tempo antes a pedido de Mário Soares, pensando tratar-se do assunto discutido, encontrar-me-ia com ele minutos depois num café no largo do rato. Disse-me então, para minha surpresa, que necessitava urgentemente de falar com Mário Soares. Disse-me que o governo dos Estados Unidos necessitava da ajuda de Soares para convencer o novo governo a autorizar um avião israelita numa “missão humanitária” a aterrar em Lisboa e transferir a carga para um outro avião. Aparentemente a CIA encontrara dificuldades de contacto com o recém-chegado governo de Cavaco Silva e vinha fazer um apelo à velha amizade com o então candidato presidencial.
Dois meses antes, Mário Soares, preocupado com a aparente falta de apoio dos EUA à sua candidatura pedira-me para falar com Frank Shakespeare, o novo embaixador em Portugal, com quem eu estabelecera uma boa relação no quadro da fundação Luso–Americana para o Desenvolvimento, e com o homem da CIA. Os americanos estavam renitentes em dar a Soares a ajuda que este lhes pedira e, a nível de embaixada em Lisboa, corriam mesmo rumores de que Freitas do Amaral seria o candidato preferido. Afinal Skidmore não pretendia abordar esse assunto, mas sim acenar com a gratidão americana a troco desta ajuda de emergência. Eu responder-lhe-ia que Soares não estava na reunião uma vez que, formalmente, entregara o seu cartão do PS ao candidatar-se à presidência e que teria que tratar pessoalmente do assunto com ele. Foi a última vez que falei com ele e não sei se chegou ou não a falar com Soares. Mas viria a descobrir, por mera coincidência, que o célebre avião israelita em “missão humanitária” não era mais que um dos carregamentos de mísseis “HAWK” a caminho de Lisboa “onde deveriam ser transferidos para outro avião” [54] que deveria seguir para o Irão, no quadro do “Irangate” que tanta tinta faria correr.
NOTAS:
[1] Mário Soares, O Futuro Será o Socialismo Democrático, ed. cit., p.91
[2] Manuscrito de Bernardino Gomes sobre filosofia empresarial a adoptar pelo PS
[3] Manuscrito sobre filosofia empresarial do PS
[4] Público, de 28 de Janeiro de 1994
[5] Carta de Mário Soares a James Callaghan, de 29 de Janeiro de 1981
[6] Tony Benn, The End of an Era, ed. cit., p.108
[7] Teresa de Sousa, ob. cit., pp.114-5
[8] Teresa de Sousa, ob. cit., pp.114-5
[9] A National Endowment for Democracy nunca teria a amplitude e os meios das fundações alemãs e viveria sempre rodeada de grande polémica. Nunca seria «oficialmente» financiada pelo governo, comprovando o que Carter dissera
[10] Shirley Christian, Nicaragua: Revolution in the Family, p.162, Random House, Nova Iorque, 1985
[11] Em 1987 visitaria Washington a convite de Frank Carlucci, então conselheiro nacional de segurança, que organizaria na Casa Branca uma reunião com várias personalidades que incluiriam o subsecretário para a América Latina, Elliot Abrahams, a quem tentaria convencer que seria um erro concentrar todos os apoios nos chamados “contras”, abandonando grupos com maior receptividade entre os socialistas europeus, como era o caso de Eden Pastora que reclamava continuar a resistência a partir da fronteira com a Costa Rica. Pastora não teria então meios para continuar a alimentar e armar os seus homens, em virtude do corte dos EUA. A posição do “task-force” então reunido por Carlucci era, contudo, visivelmente contra as pretensões de Pastora. A CIA deixara cair o “comandante Zero” e parecia comprometida com os “contras”. Como se iria verificar pouco tempo depois daquela reunião, rebentaria o escândalo “Irão-contras” que, aparentemente, fora militantemente liderado pelo próprio director da CIA, William Casey
[12] Este comité viria posteriormente a ser presidido pelo holandês, Joop den Uyl
[13] Carta do departamento internacional enviada aos partidos da Internacional Socialista, a 7 de Maio de 1982
[14] Carta de Mário Soares a Saddam Hussein, 2 de Novembro de 1981
[15] Bob Woodward, VEIL, p.217, Simon and Schuster, Londres, 1987
[16] Bob Woodward, ub. cit., p.204
[17] Bob Woodward, ub. cit., p.204
[18] Alexander Haig, Caveat, ed. cit., p.226
[19] O «Presidium» da IS era composto por Willy Brandt, os 21 vice-presidentes, o secretário-geral e ex-oficio pelos responsáveis das relações internacionais cujos partidos detinham vice-presidências
[20] Telegrama da Internacional Socialista, de 15 de Junho de 1982
[21] Comunicado da Internacional Socialista n.° 18/82, de 25 de Junho
[22] Este atentado teria lugar a 22 de Dezembro de 1988
[23] Hans Janitschek, ob. cit., p.39
[24] Hans Janitschek, ob. cit., p.39
[25] Teresa de Sousa, ob. cit., p.122
[26] Francisco Marcelo Curto, Para a história do PS, p.34, Editorial Esquerda Democrática, Lisboa, 1986
[27] Hans Janitschek, ob. cit., p.94
[28] Bernt Carlsson, assassinado no atentado bombista ao avião da Pan Am, em 1988, seria, posteriormente alto comissário da ONU para a Namíbia
[29] Expresso-Revista, de 7 de Outubro de 1995
[30] Francisco Marcelo Curto, ob. cit., p.35
[31] Discurso de Mário Soares na posse do nono governo cosnstitucional, no dia 9 de Junho de 1983
[32] United States Information Agency
[33] A conferência individual de Helmut Schmidt teria lugar a 4 de Novembro de 1983
[34] António de Almeida Santos, Virtuosa Sensaboria, p.13, Perspectivas & Realidades, Lisboa
[35] Expresso, de 10 de Março de 1984
[36] Expresso, de 10 de Março de 1984
[37] Conferência do primeiro-ministro Mário Soares na SEDES, a 14 de Maio de 1984
[38] Conferência do primeiro-ministro Mário Soares na SEDES, a 14 de Maio de 1984
[39] António de Almeida Santos, Virtuosa Sensaboria, ed. cit., pp.72-77
[40] A viagem teria lugar durante a “Quaresma” e o secretário de estado, George Schultz, cumpria a rigor as recomendações da igreja. O presidente dos EUA contaria então uma séria de anedotas. Reagan era um homem extremamente bem disposto e muito mais aberto do que muitos comentadores diziam. Eu contar-lhe-ia então a história do sonho de Brejnev e do presidente Reagan: Brejnev sonhara que ao visitar Washington toda a cidade estava vestida de vermelho e que por cima da Casa Branca estava um enorme letreiro que dizia: “Proletários de Todo o Mundo: Uni-vos!” Aí o presidente dos EUA responderia que tinha sonhado que tinha ido a Moscoco e que a cidade estava engalanada de vermelho. Normal, diria o presidente soviético. E quando Reagan chegara ao Kremlin havia também um grande letreiro. E o que é que dizia esse letreiro, perguntaria o presidente soviético? Não sei, responderia Reagan. Estava escrito em chinês! O presidente gostaria tanto da anedota que pediria ao seu conselheiro de segurança, Bud MacFarlane, para a escrever
[41] A montanha de Cheyene é vulgarmente conhecida por ter inspirado o filme sobre a Guerra das Estrelas
[42] César de Oliveira, ob. cit., p.299
[43] Sérgio Vilarigues
[44] Discurso que eu proferiria no quarto congresso da FRELIMO, em Maputo, a 29 de Abril de 1983
[45] Como é sabido Joaquim Chissano é actualmente presidente de Moçambique
[46] Joaquim Chissano, Maputo, 13 de Junho de 1984
[47] South West African Peoples Organisation
[48] Respectivamente Joop den Uyl e Anker Joergensen
[49] ANC — African National Congress, da África do Sul
[50] The Arusha Conference, p.70, Socialist International, 1984
[51] “Trilateral” ou os três lados em que se baseia o mundo desenvolvido, EUA, União Europeia e Japão, é igualmente o nome de uma organização não governamental lançada por David Rocketeller. E constituída por 100 membros de cada “continente” distribuídos entre empresários, políticos, intelectuais, cientistas, etc. De Portugal fazem parte 5 membros, tendo eu pertencido ao grupo português de 1987 a 1992, juntamente com António Vasco de Mello, Francisco Pinto Balsemão, Ilídio Pinho e Jorge Braga de Macedo
[52] Em entrevista de Mário Mesquita a Mário Soares, aquele jornalista “acusaria” Mário Soares de excessivo pró-americanismo. Diário de Notícias de 24 de Abril de 1984
[53] Esta reunião teria lugar em Lisboa, a 21 de Fevereiro de 1985
[54] Oliver North, Under Fire, p.26
P.S. Existem fotos nesta secção do livro original que está em pdf
Fonte: Livro «Contos Proibidos – Memórias de um PS Desconhecido» de Rui Mateus