Por: Rui Mateus
Quando entreguei uma cópia do fax à jornalista “camarada” Helena Sanches Osório [1], para publicação no semanário O Independente, tinha duas certezas e outras tantas dúvidas. Sabia que o conteúdo do fax publicado a 16 de Fevereiro de 1990 não correspondia à verdade e que o financiamento político da Weidleplan através da Emaudio, pelo menos no que me dizia respeito a mim, não tinha nada de ilegal. Por outro lado, sem ter a certeza, estava convencido de que algo tinha sido prometido à Weidleplan [2], após ter enviado o seu fax em Outubro. A finalidade seria, aparentemente, obter a colaboração desta empresa num plano que visava ser-me aplicado um “castigo”. Também estava, simultaneamente, convencido de que as negociações com a Interfina prosseguiam a bom ritmo. Os montantes envolvidos de milhões de contos, esses sim, eram coisa que se visse quando comparados com os cinquenta mil contos oferecidos à Emaudio e que se situavam nos parâmetros das doações políticas habituais. Do meu ponto de vista, a divulgação do fax enviado pelos alemães ao então governador de Macau representava, pois, a minha forma de contra-atacar, com o objectivo de neutralizar as movimentações do grupo “soarista” contra mim e abortar qualquer acordo na forja com a Interfina. Não fora, como diria um semanário muito por dentro dos segredos de Belém, “a vingança de quem viu os dinheiros de Macau passar ao lado” [3] mas sim, como diria o advogado de Menano do Amaral, um “míssil político” [4] na guerra que estalara na Emaudio. Nem a Emaudio nem ninguém na minha presença tinha oferecido quaisquer contrapartidas à Weidleplan nem esta, inicialmente, associara a sua dádiva à exigência de qualquer favorecimento ilegal. Como já referi, a Weidleplan entraria em contacto com a Emaudio por intermédio de Strecht Monteiro que, por sua vez, entrara em contacto com a Emaudio por intermédio da presidência da República. Ofereceram-se para “doar” cinquenta mil contos a troco de contactos e abertura de portas. Um acto de provável “tráfico de influências”, utilizado por todos os partidos políticos e que a lei portuguesa não proibia.
No seguimento da publicação do fax, o procurador-geral da República declararia a 21 de Fevereiro a abertura de um inquérito “na defesa da legalidade e no próprio interesse da dignidade e bom nome da administração do território de Macau“, que seria levado a cabo pelo procurador-geral-adjunto, Rodrigues Maximiano. O ministério público tem obrigação de mandar arquivar o inquérito “logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime” ou se não obtiver “indícios suficientes da verificação do crime”, embora segundo a lei penal a prova seja “apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Assim, no espaço recorde de seis meses, para o que é alegadamente regra geral dos inquéritos conduzidos pelo ministério público [5], o procurador-geral-adjunto. Rodrigues Maximiano, deduziria acusação contra Carlos Melancia pelo “crime de corrupção passiva por acto ilícito” e contra mim, Richard Weidle, Peter Bier, Strecht Monteiro, João Tito de Morais e Menano do Amaral pelo “crime de corrupção activa” em co-autoria. Teria sido bem melhor para a “dignidade e o bom nome de Portugal” que essa acusação não tivesse sido deduzida, dada a evidente insuficiência de indícios e a chocante superficialidade da investigação. Atirar com um caso destes para tribunal, com base na “indiciação obtida, de acordo com as regras da experiência e o princípio da livre apreciação da prova” só por considerar que, em tribunal, existia “uma possibilidade razoável de condenação”, seria muito pouco para um caso com a complexidade do que foi e é o chamado “caso do fax de Macau“. Ou como diria um conhecido comentador “ao insistir em acusar e pedir a condenação nestas circunstâncias, o ministério público revelou que confiava mais nas pressões públicas e na convicção dos juízes do que na matéria de facto” uma vez que, “com o que tinha entre mãos, agora, o ministério público deveria ter tido a coragem de bater em retirada. E não venham com a argumentação da dificuldade probatória do crime de corrupção, porque isso é abrir a porta a todo o tipo de incompetência técnica e de facilidades processuais. Se não sabem como provar o crime de corrupção, não acusem”. [6]
Eu não fazia então a menor ideia de quem era o responsável pela investigação deste caso, mas estava confiante de que não seria necessário ser-se um génio para compreender, que à partida, o crime indiciado pelo texto do fax era altamente improvável até porque, tendo sido desclassificada, a Weidleplan, dificilmente poderia ter sido favorecida. Também não tinha qualquer tipo de lógica imaginar que, tendo a Weidleplan pago dinheiro a Melancia segundo as suas instruções e de acordo com os seus desejos, os tivesse, depois, ele próprio desclassificado. Só através de construções demasiado “florentinas” para um engenheiro é que se poderia imaginar que Carlos Melancia receberia dinheiro para primeiro “pré-qualificar” e depois dar “uma posição contratual no projecto do aeroporto de Macau” à Weidleplan e, finalmente, o não fizesse. E, depois, num exercício mental pouco louvável, justificar-se-iam intenções para explicar que não houvera pré-qualificação porque as únicas duas empresas interessadas, a Weidleplan e os Aeroportos de Paris seriam dispensadas dessa “pré-qualificação” e convidadas a apresentar propostas, associando essa dispensa à ideia do favor. Quando seria mais fácil, logo então, considerar que só havendo duas empresas interessadas seria a abertura de “pré-qualificações” que levantaria dúvidas dado que, nesse caso, a pré-qualificação de uma significava a derrota da outra e a duvidosa contratação automática da outra, qualquer que fosse o custo apresentado! Finalmente, para a acusação, constituiu favorecimento de parte do então governador o facto de “a própria empresa Weidleplan, ao apresentar uma proposta fora dos objectivos do GAIM e muito mais cara que a da empresa Aeroportos de Paris, inviabilizou uma decisão que lhe fosse favorável” quando toda a gente sabe que a decisão final caberia ao governador que, sobretudo em Macau, tudo pode! Este tipo de raciocínio, num estado democrático, parece-me extremamente preocupante e pode vir a conduzir, como já está a acontecer noutros sítios, a um governo corporativo dos magistrados. Se se iniciasse todo o raciocínio sobre o texto de fax a partir dos factos eliminava-se, logo à partida, o pernicioso exercício de dar o fax como verdadeiro e de só nele concentrar, em exclusividade, as atenções do investigador. Ou, como diria melhor que eu José Manuel Galvão Teles, “mandavam as mais elementares regras da boa averiguação dos factos que o ministério público, em vez de aceitar logo a tese da corrupção… tivesse procurado esclarecer o que estava por detrás do fax” [7] enquanto o advogado de Strecht Monteiro afirmava que “a parte processual deste caso é a menos interessante. Está por fazer a história recente, político-partidária do país”. [8]
No mesmo dia da publicação, Almeida Santos viria à sede da Emaudio onde, em reunião comigo e com Menano do Amaral, imediatamente, revelaria ter conhecimento de ter sido eu quem entregara o fax a O Independente avisando-me de que “seria melhor ficar calado a partir de então, se não queria piorar as coisas”. Embora insinuasse ter tido conhecimento da minha “proeza” pela própria jornalista, estou convencido de que a notícia partira de Strecht Monteiro, que eu, um dia antes de dar o fax à jornalista, avisaria da minha intenção de o divulgar, aconselhando-o a fazer o mesmo e a contactar, também, a referida jornalista. O pânico em que Monteiro e a Weidleplan entrariam a seguir, só demonstrava que o fax tinha sido “coacção” e, que o silêncio a que se tinham remetido nos últimos três meses, poderia indiciar que algo estaria a ser tramado contra mim. Como não houve investigação adequada sobre esta e outras matérias que antecederam o fax, é minha convicção que haveria contactos a partir de Outubro de 1989 no sentido de a Weidleplan vir a mover à administração da Emaudio um processo-crime por burla, no qual João Tito de Morais [9] não seria implicado por já se ter demitido da administração da Emaudio há data do envio do fax que “exigia” a devolução do dinheiro. Mas, o seu contributo — tendo em conta que aquela demissão se fizera dentro da estratégia do grupo liderado por Mário Soares, que exigira o meu afastamento — poderia ter sido importante para confirmar a tese de burla. Mas, com a divulgação do fax, em Fevereiro de 1990, a estratégia ficaria baralhada e a Weidleplan entraria em pânico, mandando esconder toda a documentação relativa a este assunto no escritório dos seus advogados. E, dias depois da divulgação do fax em Lisboa, o dono da Weidleplan apresentaria uma queixa contra anónimos por falsificação daquele documento e a 3 de Março, o mesmo Richard Weidle, declararia a um jornal alemão ser “o telefax absolutamente inexplicável”, afirmando depois que nas suas declarações à procuradoria de Stuttgart “pretendia provavelmente culpar outras pessoas” dado que “neste caso alguém pregou uma partida ao governador de Macau. Trata-se de um jogo sujo!” [10]. Tudo de facto leva a crer que se tratou de um jogo sujo nunca devidamente investigado para mal do bom nome de Portugal. Igualmente misterioso é o telefax que o advogado da Weidleplan enviaria ao advogado de Carlos Melancia a 26 de Março, confirmando a José Manuel Galvão Teles, que “continua válido, neste contexto, o acordo por si mencionado relativo a um completo silêncio”! Silêncio em relação a quê e em que contexto? O ministério público, abusiva e apressadamente, concluiria tratar-se de um “pacto de silêncio” entre todos os arguidos. Porquê? Para encaixar no habitual cliché de que a corrupção se caracteriza por “pactos de silêncio” e depois ouvir a frase repetida à exaustão sem noção da cronologia nem da relação entre os acusados? Porque não antes deduzir que o mencionado silêncio se referia aos documentos escondidos pela Weidleplan e à trama que estaria a ser urdida contra mim? E igualmente importante salientar neste contexto duas importantes peças para este puzzle: Almeida Santos teria dito à jornalista Helena Sanches Osório, logo após divulgação do fax, que eu “andaria a cuspir para o ar”. Por outro lado, num momento de grande emotividade que caracterizava Strecht Monteiro, este diria que “nada disto teria acontecido se o Almeida Santos, a partir de um certo momento, não tivesse dito para lançarem a acusação sobre o Rui Mateus” [11]. O mediador da empresa alemã, António Strecht Monteiro, seria ouvido pela primeira vez duas semanas após ter rebentado o escândalo, a 2 de Março, declarando nada saber sobre o fax enviado ao então governador de Macau [12]. O número do seu próprio fax, aparentemente, também não correspondia a nenhum dos números que pudessem identificar o documento. Mais tarde seria apurado que a sua secretária se teria enganado a programar o número de identificação daquele aparelho. Monteiro consideraria “inverosímil que Carlos Melancia tivesse recebido fosse o que fosse e que a empresa alemã tinha grande prestígio e nunca aceitaria tal coisa”. A título de curiosidade também declarava ser cidadão alemão. Eu estaria fora do país de 18 de Fevereiro até 10 de Março. No meu regresso seria alertado para uma longa entrevista com Strecht Monteiro, conduzida pelo ex-acessor do MASP e de Belém, António Carneiro Jacinto, em que pela primeira vez o meu nome apareceria ligado ao caso de forma muito estranha. Parecia um trabalho encomendado em que, “inocentemente”, Carneiro Jacinto, sem mais nem menos, perguntaria a Monteiro se me conhecia, respondendo este, que não [13]. Todos estes dados indiciam que eu seria, então, mais tarde ou mais cedo, incriminado por difamação do então governador de Macau.
Algo imprevisível iria, contudo, acontecer. Em princípio de Abril as autoridades alemãs viriam a descobrir o fax e outros documentos da Weidleplan relativos a este caso, “escondidos” nos escritórios dos advogados daquela empresa. Esta descoberta, assim como a descoberta, pela polícia portuguesa, de que o número de fax de Strecht Monteiro teria sido programado com um número errado, inviabilizariam a tentativa de atirar para cima de mim a acusação de difamar o então governador e até, quem sabe. de ter falsificado o próprio fax que entregara a O Independente! Foi então, estou convencido, que a estratégia terá regressado à tese da burla. Senão vejamos. A 9 de Abril, o procurador alemão encarregado do processo receberia um colega seu de nome Helmut Krombacher que lhe faria a seguinte declaração: “na semana passada, uma pessoa que eu não conheço muito bem contactou-me pelo telefone e informou-me que poderia fornecer informações úteis. Não me explicou como é que tivera conhecimento de que, à data, existia nesta procuradoria de Stuttgart uma carta rogatória portuguesa. Mediante combinação, o informador procurou-me no dia 6 de Abril de 1990… tendo-me declarado: soubera que em Portugal um certo sr. António Strecht Monteiro tinha solicitado a um cidadão alemão autorização para resgatar através da respectiva conta pessoal… um cheque no montante de 60.6000 marcos. Há cerca de três semanas deparara, absolutamente por acaso, que este cheque fora resgatado por Monteiro em 6 de Janeiro de 1989 e que, nesse mesmo dia, fora efectuado um levantamento em dinheiro nesse montante. Por outro lado, o informador soubera que o dinheiro passara das mãos de Monteiro para um certo Ruiz Matheos (fonético), um arquitecto”. No dia seguinte, a 10 de Abril, o procurador-geral-adjunto Rodrigues Maximiano receberia informação de Stuttgart de que Richard Weidle e Strecht Monteiro tinham estado a mentir e que o fax descoberto era, afinal, verdadeiro. No dia 27 de Abril o procurador-geral-adjunto, Rodrigues Maximiano, seria autorizado a fazer uma busca no edifício da Emaudio que não requeria a minha presença e revelando uma certa urgência, uma vez que autorizava mesmo as autoridades ao arrombamento da porta a fim de não poderem ser desviados documentos. Só seria efectuada, contudo, no dia 16 de Maio. Vinte dias depois!
No dia 3 de Maio, Strecht Monteiro seria ouvido de novo e continuaria a negar ter conhecimento do fax mas admitindo, então, ter efectuado um pagamento na Emaudio para “prestação de serviços” desta empresa à Weidleplan. Uma semana depois, a 9 de Maio, em nova audição, continuaria a dizer nada ter tido que ver com o fax, que diria desconhecer, mas o que fora uma “prestação de serviços”, a 3 de Maio, seria, então, significativamente, alterada para uma “burla” quando afirmaria “terem (ele e a Weidleplan) sido enganados por aqueles tipos” referindo-se a mim, a Tito de Morais e Menano do Amaral. Continuaria, contudo, a afirmar que o governador nada tivera que ver com o assunto. Também só no dia 4 de Maio se lembraria de que readquirira a cidadania portuguesa “sem saber”.
Eu regressaria a Lisboa de uma viagem de um mês aos Estados Unidos, na manhã do dia 16 de Maio. A porteira do prédio onde residia disse-me, à chegada, terem várias vezes ido à minha procura umas pessoas com muito mau aspecto. Pelas 14.30 h fui à sede da Emaudio tendo também ali sido procurado por uns “tipos estranhos” que nunca se quiseram identificar tendo, ao que parece, um deles entrado dentro do edifício e só sido visto à saída sem, contudo, conseguir ser identificado. Durante a minha ausência teriam disparado os alarmes em várias ocasiões durante a noite, tendo-se ali deslocado funcionários da empresa de segurança, sem nada notarem de anormal. Naquele dia, passada menos de meia hora da minha entrada, ser-me-ia anunciado que o procurador-geral-adjunto, Rodrigues Maximiano, munido de um mandato de busca passado vinte dias antes, estava na recepção e pretendia falar comigo. Mas, apesar de então ter pedido para falar comigo diria, depois, que a minha presença não seria obrigatória. Dir-me-ia, então, existirem suspeitas de difamação do governador de Macau ou de burla à Weidleplan. Perguntar-me-ia pelo fax do qual eu imeditamente lhe disse ter conhecimento mas não possuir comigo. Mandou então proceder à busca no meu gabinete e, cinco segundos passados, o sub-inspector António Coutinho da PJ, exclamando “cá está ela”, encontra num compartimento sem fechadura da mesa do telefone, uma caixa de cartão ainda com cintas de maços de notas. Perante a minha estupefacção perguntaria aos funcionários se alguma vez tinham visto aquela caixa. Todos negariam alguma vez terem visto aquela caixa e em especial a minha secretária, que tinha acesso ao meu gabinete assim como as mulheres da limpeza, de uma firma exterior à Emaudio. Eu guardava Medicamentos naquele compartimento e não era verosímil tal caixa ali ficar esquecida desde Janeiro de 1989! Servia, contudo, perfeitamente, a tese da “burla” preparando-se então o procurador-geral-adjunto e sua comitiva para abandonar o edifício. Eu há muito estava desconfiado de que algo estava a ser tramado contra mim. Assim, antes de partir para os EUA a 15 de Abril, colocara quatro recibos de pagamentos a Carlos Melancia num envelope branco com o meu nome e mandara-os colocar na casa forte. Outros documentos que eu ali mandara colocar e reproduzo em anexo, não despertariam o menor interesse. Mandara-os lá colocar para o que desse e viesse. Aliás, estou hoje fortemente convencido de que se eu não tivesse provocado o aparecimento daqueles documentos, teria sido logo ali detido e o rumo da chamada investigação, que então eu baralhara, iria conduzir-me a mim e a Menano do Amaral ao banco dos réus acusados de ter “burlado” a Weidleplan e “difamado” o governador de Macau. Mas quando vi a caixa ser produzida, além de surpreendido tive a nítida sensação de que fora lá recentemente colocada por alguém e que o sub-inspector sabia o que procurava. Assim, num ápice, quando Rodrigues Maximiano já se preparava para dar por terminada a sua rápida busca e, convencido de que aquele procurador me iria deter ali mesmo, vi a palavra “burla” diante de mim e “forçá-los-ia” a continuar a busca e a visitar a caixa forte, para encontrar os documentos. Esta caixa deveria ter sido um elemento fundamental na investigação mas, lamentavelmente, Rodrigues Maximiano só lhe ligaria importância para a considerar no quadro das declarações de Stercht Monteiro, isto é, que fora “aquela” caixa que transportara os cinquenta mil contos embora se enquadrasse, perfeitamente, no “timing do complot” que eu penso ter sido fabricado contra mim e já descrito. Considerei o desinteresse de Maximiano e a falta de isenção em não querer aprofundar as investigações sobre a referida caixa, como chocantes. Por esse motivo ficaria sempre com as maiores dúvidas sobre se o procurador, ao contrário do que acontecera comigo, não saberia antecipadamente que ali iria encontrar aquela caixa [14]. Eu estaria ausente do país de 15 de Abril a 16 de Maio. Em Março o conhecido dirigente do PS, José Manuel Galvão Teles, advogado de Carlos Melancia, receberia uma mensagem escrita do advogado da Weidleplan evidenciando um acordo secreto a que Rodrigues Maximiano viria a associar sem o menor pudor todos os acusados, sem nunca explicar como chegara a tão “brilhante” conclusão! No dia 9 de Março o ex-colaborador de Mário Soares, Carneiro Jacinto, associaria, pela primeira vez, o meu nome a este caso na já referida entrevista. A polícia alemã descobriria o fax escondido no início de Abril, dando disso conhecimento a Rodrigues Maximiano no dia 10 desse mesmo mês. No dia anterior uma denúncia anónima, que tudo leva a crer ser de um antigo associado alemão de Strecht Monteiro, indica na Alemanha pela primeira vez o meu nome como tendo recebido o dinheiro. No dia 27 de Abril (já a caixa teria sido colocada no meu gabinete), seria emitido um mandato de busca à Emaudio que — embora o não exigisse — esperaria pela minha chegada ao país, vinte dias depois! No dia 3 de Maio, Monteiro declararia ter entregue o dinheiro à Emaudio para “prestação de serviços”, portanto para um acto legal. Na manhã do dia 9 de Maio ainda acrescentaria que após ter entregue o dinheiro na Emaudio o vira sair “para um banco” mas, na sessão da tarde, Strecht Monteiro prescindiria misteriosamente da presença do seu advogado e iniciaria toda uma série de declarações que visavam o envolvimento dos administradores da Emaudio numa burla. O procurador-geral-adjunto confirmaria à sua chegada à Emaudio, a 17 de Maio, ser essa uma das suas suspeições mas, após “encontrar” os recibos de pagamentos a Carlos Melancia, que eu propositadamente colocara no cofre, regressaria à sua tese inicial (e, afinal, a única) de que o texto do fax correspondia à verdade!
No momento em que se encontravam no meu gabinete, onde eu e Menano do Amaral rubricaríamos os documentos encontrados, aquele administrador seria chamado ao telefone. Era o chefe da casa civil do presidente da República que queria marcar um encontro de Mário Soares com ambos, Amaral e eu, após o seu regresso de Marrocos onde então efectuava uma viagem oficial. Quando soube da presença do procurador entraria em pânico, desligando. Mas, mais tarde quis saber pormenores daquela visita e informou que já tinha avisado o presidente da República em Marrocos e que este enviara Almeida Santos (que se encontrava na sua comitiva) para tomar conhecimento da situação.
No dia seguinte, acompanhado do advogado Fernando de Oliveira começaria a ser ouvido em Monsanto por Rodrigues Maximiano enquanto o sub-inspector Coutinho escrevia à máquina.
Embora fosse “referenciado como muito próximo do PCP” [15] por alguns, também tinha fama de ser um “sampaista” ferrenho mas o meu advogado, que o conhecia de há anos, dir-me-ia que ele era uma pessoa conecta devendo eu responder com verdade a todas as perguntas. Contudo existiam, como é óbvio, condicionantes que não poderiam deixar de ser ignoradas. Além das visitas anónimas a casa e ao escritório, tinha recebido telefonemas estranhos de que informaria o ministério público nesse mesmo dia [16]. Por outro lado, o país estava à porta da campanha eleitoral e a jornalista Sanches Osório, embora dizendo-se socialista, tudo faria para me coagir a colaborar contra Mário Soares na campanha de O Independente a favor de Basílio Horta. Telefonava-me constantemente e até no seu depoimento de 6 de Março implicitamente reconhece essa coacção quando declara que “ao ter a percepção que estão preenchidas condições para “irritar” a sua fonte (referindo-se a mim) contacta aquela fonte e tenta obter dela mais elementos publicáveis relativamente a uma outra questão relacionada com Macau, o que não consegue [17]“, chegando ao ponto de me enviar bilhetinhos para encontros com Paulo Portas em sua casa com a alegada intenção de me “quererem ajudar” [18]. As pressões eram muitas, a começar com a “recomendações de amigo”, de Almeida Santos, que o presidente da República enviara apressadamente de Marrocos e com quem reuniríamos regularmente a partir do dia 17 de Maio em sua casa. Por outro lado eu estava ser “olhado” como um traidor à causa “soarista” que abraçara durante tantos anos e sentia que muitos colaboradores inocentes iriam ser prejudicados socialmente por causa da Imprensa onde, mais tarde ou mais cedo, estalariam as notícias, estando-o já a ser profissionalmente e economicamente. O meu objectivo principal era fazer compreender a Rodrigues Maximiano que enquanto estalara no seio da Emaudio uma guerra que conduzira ao fax, a sua divulgação visava impedir a consumação de qualquer acordo com a Weidleplan, ocorrido após o dia 5 de Julho de 1989 e qualquer acordo em curso com a Interfina. Eu entregar-lhe-ia cópias de actas, extractos de contas bancárias e todos os documentos que me foram pedidos, tendo eu mesmo voluntariado alguns deles. Nunca lhe neguei a existência do fax que lhe entregaria voluntariamente, creio que a 18 de Maio. Era minha intenção, não obstante os condicionalismos, ser absolutamente cooperante desde que ele assim o quisesse. Mas não seria esse o caso. Rodrigues Maximiano estava aparentemente decidido, desde o início, a dar como verdadeiro o texto do fax mesmo que para isso fosse necessário um grande exercício laboratorial e uma mãozinha da comunicação social. Logo na sessão desse primeiro dia, várias vezes interrompida por telefonemas do jornalista Joaquim Vieira, eu tentaria fazê-lo compreender que esta investigação iria ser complexa uma vez que, para ser levada a sério, ele não poderia “agarrar-se” ao fax. Sobretudo sabendo-se que “entre Abril e Junho de 1989 houve contactos entre representantes da Emaudio e da Interfina” e que embora eu não tivesse participado “nessas discussões chegara à conclusão… que a Interfina esperava obter contrapartidas em termos de adjudicações no território de Macau para poder concretizar a sua participação no aumento de capital da Emaudio“. Disse-lhe, admitindo a veracidade do fax que o seu signatário Strecht Monteiro só admitiria dois meses depois, que sugerira a Strecht Monteiro que “para chegar ao sr. presidente da República, talvez fosse mais sensato calmamente expor a situação previamente ao Dr. Almeida Santos, que é presidente da assembleia geral da Emaudio” e que era minha opinião que “o Dr. Almeida Santos terá recebido o Strecht por mais que uma vez”. Depois declararia que a primeira coisa que fizera após receber o fax do Strecht Monteiro fora “mostrá-lo ao Dr. Almeida Santos” que me respondera também ser “possuidor duma cópia…(acrescentando) a propósito que iria abordar o assunto com o sr. presidente da República“. Posteriormente em conversa com Mário Soares, em Novembro de 1989, eu abordara “o assunto com o sr. presidente e este disse-me que tinha conhecimento do assunto pelo Dr. Almeida Santos“. Depois de tudo isto, que a delegada do ministério público, Maria José Morgado, viria a apelidar de “pistas”, penso que o procurador-geral-adjunto tinha ali “pano” para escrever um “Livro Branco” sobre o tráfico de influências na vida político-partidária portuguesa e, sabe-se lá, dar a conhecer a verdade ao país sobre o financiamento dos partidos. Quer dizer que para além de lhe confirmar o meu envolvimento no fax, de lhe dizer logo nesse dia que “tinha indícios de que me estavam a tentar incriminar por razões de vingança” e de lhe tentar “abrir” os olhos para a existência de uma razão para a divulgação do fax, confirmar-lhe-ia que o presidente da República e o conselheiro de estado, Almeida Santos, conheciam bem o assunto muito antes da sua divulgação e nada fariam para a impedir ou para processar os seus autores. O que só por si seria mais do que suficiente para alargar o âmbito da investigação e o número de pessoas a serem inquiridas. Depois, a questão da Interfina seria só por si motivo suficiente para pensar mandar o fax “às urtigas”! Mas não, nem com os outros arguidos no processo abordaria o teor das minhas declarações que, valerá a pena lembrar, também nunca foram desmentidas pelos visados. Para além dos três administradores da Emaudio nenhuma empresa, nenhuma instituição e nenhum outro elemento foi inquirido nem sequer Almeida Santos que era (e ainda é) presidente da assembleia geral e tudo sabia. Quando o meu advogado, que não pudera acompanhar-me àquela audiência, teve conhecimento do que eu dissera ficou furioso e proibir-me-ia de voluntariar mais informações, uma vez que “era ao procurador-geral-adjunto que competia conduzir o inquérito”! No dia 28 de Maio “prontifiquei-me a fornecer aos autos o extracto da conta (da Emaudio) do primeiro trimestre de 1989, onde foi feito o depósito dos 31 mil contos”. Afirmei então que o dinheiro oriundo da Weidleplan não fora “repartido, entre os presentes” [19]. Nos meus depoimentos, além de alguns movimentos de ordem táctica, coordenados pelo meu advogado Germano Marques da Silva, nunca me furtaria à verdade nem entraria em contradição [20]. Já então, em 1990, diria o que já acima repeti, que o fax, no que respeita à Weidleplan “não visava acerto de contas ou devolução dos cinquenta mil contos oferecidos, mas sim pressionar o governador a adjudicar o projecto que tinham em Macau” e que “os cinquenta mil contos foram utilizados directamente pela Emaudio em si ou em empresas associadas”. Onde é que estariam as mentiras ou as contradições que o procurador-geral-adjunto, Rodrigues Maximiano, alegaria depois, é que seria difícil dizer. Mais fácil seria demonstrar que entre respostas verdadeiras que facilmente seriam demonstradas e “inverdades” de Strecht Monteiro, obtidas na ausência do seu advogado, o procurador-geral-adjunto preferiria estas últimas para, como já afirmei, laboratorialmente demonstrar que o texto do fax correspondia a uma verdade impossível.
As minhas dúvidas sobre a chamada investigação pré-acusatória são muitas e de vária natureza. Em primeiro lugar ela parece revelar uma fixação demasiado rígida no texto do fax. O investigador parece depender mais na sua livre convicção do que na lógica, rejeitando à partida qualquer análise ao conflito que estalara no seio da Emaudio e que provocaria, em última análise, aquele “míssil político”. Em segundo lugar, uma vez adquirida a convicção de que o texto do fax dizia a verdade, tentar-se-ia abusar dessa mesma lógica para esticar artificialmente todas as regras do bom-senso a fim de se provar o que era, à partida, impossível de provar: que houvera favorecimento da empresa Weidleplan.
Depois a investigação pré-acusatória aparentemente revelaria uma total falta de rigor. O arguido que mais contradições demonstrara nos seus depoimentos, o mediador Strecht Monteiro, nunca concederia aquilo sem o que Rodrigues Maximiano não tinha legitimidade moral para acusar: a prova relativa a um pacto de suborno do então governador. Monteiro, seriamente amedrontado a ponto de dispensar o seu defensor a partir do dia 9 de Maio, não conseguiria sequer merecer o estatuto de “arrependido” [21] uma vez que nunca confessaria o crime de corrupção activa nem possuía quaisquer provas para que esse crime se pudesse provar. Entretanto, alguns dos elementos por ele entregues serviriam mais para alimentar a confusão da já em si extremamente confusa acusação. As suas agendas, por exemplo. Entrega-las-ia no final dos seus inúmeros depoimentos e são consideradas essenciais para o apuramento da verdade. Mas levantam três tipos de problemas gravíssimos à consciência do acusador: Não existem peritagens que garantam que o que lá está não foi acrescentado à posteriori, não foram comparadas com as dos outros arguidos, conforme eu alertara antecipadamente, e revelam curiosos contactos com Almeida Santos, com a presidência da República e outras personalidades jamais ouvidas no processo. Depois não foi ligada a menor importância nem ao desaparecimento “temporário” dos documentos da Weidleplan para o escritório do seu advogado, nem à tentativa de incriminação de terceiros por falsificação do “seu” fax, nem ao aparecimento da caixa no meu gabinete, que só Strecht Monteiro reconheceria como sendo a que deu entrada na Emaudio. Entretanto, na entidade bancária onde ela terá sido entregue foi apenas dito que era uma caixa igual a muitas que aquele banco fornecia a clientes desprevenidos. Poderia, portanto, ter sido aquela caixa ou outra e Monteiro poderia não ter transportado, finalmente, o dinheiro em nenhuma delas até Lisboa. E mesmo que, por hipótese, o tivesse feito, ninguém garantiria que fora exactamente naquela! Investigar a caixa teria assim tido mais significado para o apuramento da verdade, do que só para afirmar (como aconteceria afinal) que fora nela que o dinheiro fora transportado. Existe igualmente um documento apresentado por Strecht Monteiro que é um autêntico pau de dois bicos para o ministério público. Uma alegada garantia que ele diz ter pessoalmente prestado à Weidleplan de devolução, por si, dos cinquenta mil contos entregues na Emaudio caso a Weidleplan viesse a perder o contrato em Macau. Tem a data de 31 de Dezembro de 1989, afirmando tratar-se de um erro dactilográfico pois teria sido alegadamente assinada, um ano antes, em 31 de Dezembro de 1988. Mas, se foi assinada em 1988, então Monteiro assinaria uma garantia antes de o dinheiro lhe ser entregue a ele, o que é, convenhamos, pouco verosímil. Ele alegaria que tinha tanta confiança na Emaudio que se dispôs a assinar essa garantia [22]. Contudo não teria sido mais lógico à Weidleplan pedir a garantia à própria Emaudio? Fica também no ar o porquê do fax da Weidleplan ao governador, exigindo a devolução do dinheiro quando, como o ministério público alega, a própria Weidleplan já possuía uma garantia do próprio Strecht Monteiro? No meio de tantas dúvidas mal explicadas não há qualquer dúvida, contudo, de que as explicações encontradas poderiam dar jeito à acusação, a braços com a necessidade de criar convicção de que os cinquenta mil contos se destinavam a pagar um favor. Entretanto seria mais plausível e mais lógico investigar se se tratara, de facto, de um erro dactilográfico e que por engano em 1989 se pretendera escrever 1988 para enquadrar esta alegada “garantia”, no esquema que estaria a ser montado para incriminar a Emaudio de burla. A tese da “garantia” de um empregado à empresa para quem trabalha não faz nenhum sentido na vida real e nenhuma das datas apresentadas — a verdadeira ou a falsa — se enquadra com lógica na acusação deduzida.
À falta de rigor há que juntar a total ausência de equilíbrio e “fair-play” dos investigadores. Pretendeu-se provar ter o governador favorecido a Weidleplan. O elemento de prova essencial, segundo o subinspector da PJ diria em tribunal, seria a verificação das agendas do governador onde se contariam as vezes que Carlos Melancia recebera a Weidleplan para concluir que estes seriam recebidos mais vezes do que seria normal. Entretanto, admitiria, não lhe passara pela cabeça comparar o número de vezes que o governador recebera outras empresas e, em especial, a empresa que sairia vencedora, Aeroportos de Paris.
Infelizmente há que juntar à fixação, falta de rigor e de equilíbrio, o desprezo pela prova positiva produzida, a incompetência, a falta de isenção e a falta de coragem do investigador. A meio da investigação e, perante a afirmação de que os trinta mil contos pagos a Carlos Melancia seriam o equivalente à compra das suas acções na Emaudio, Rodrigues Maximiano ordenaria uma inspecção geral de finanças à contabilidade da Emaudio para apuramento do valor das acções. Eu tinha sido sempre contrário à ideia de que dos trinta mil contos pagos 16 mil correspondiam às suas acções na Emaudio, atribuindo o valor da aquisição de antiguidades de Carlos Melancia [23] a um empréstimo que João Tito de Morais fizera. Mas Almeida Santos, naturalmente mais preocupado consigo próprio, ajudaria a convencer Menano do Amaral de que trinta mil contos poderia parecer dinheiro a mais para magistrados, aparentemente mal pagos. Mas disso falarei adiante. Se Rodrigues Maximiano tivesse investigado os aspectos políticos à volta deste caso, como a verdade exigia, compreenderia que a posição de Melancia na Emaudio se não poderia medir em meros termos contabilísticos. No quadro do acordo aquando da constituição da Emaudio ele teria direito a uma compensação que seria sempre definida pelo critério de quem vende e quem compra e não por métodos contabilísticos. Aliás ainda hoje, 5 % de uma empresa, de qualquer sociedade anónima, são um valor mais estratégico do que contabilístico. Em 1988, quando o montante seria fixado e, no início de 1989, quando seria pago, o potencial de 5 % da Emaudio para um “accionista” influente, era de longe superior a trinta mil contos. Embora, para um que saísse a mal, como estaria para ser o meu caso em 1989, teriam o valor que alguém quisesse dar por elas. Eventualmente, só teriam então o valor de impedir que estranhos entrassem na empresa. Hoje, depois do escândalo e da liquidação da Emaudio, o seu valor é mais político embora se não possa, mesmo assim, considerar nulo. Aliás o presidente da assembleia geral, Almeida Santos, admite-o, ao afirmar em carta recente enviada aos liquidatários da Emaudio, que qualquer valor a apurar pelas suas acções no acto de liquidação, deveria ser entregue ao Partido Socialista.
As conclusões da inspecção geral de finanças não seriam contudo do agrado de Rodrigues Maximiano. Esta inspecção conclui terem as acções sido transaccionadas num período anterior ao aparecimento da Weidleplan tendo um valor contabilístico variável no tempo e consoante situações não avaliadas, não podendo portanto determinar o valor daquelas. Com invulgar simplismo, o procurador-geral-adjunto concluiria então que o valor das acções era nulo e que portanto a explicação dada para os pagamentos a Melancia teria que ser falsa. Mas, o que a IGF e todos os especialistas chamados a depor concluiriam, seria, exactamente, o contrário. Este desprezo pela prova revela também uma profunda incompetência da procuradoria-geral da República para apreciar questões de natureza económica.
A investigação caracteriza-se também por uma enorme falta de isenção. O procurador-geral-adjunto mandaria analisar as minhas contas bancárias e as de minha mulher, as contas da Emaudio e uma conta conjunta utilizada para investimentos no grupo Emaudio. Creio que também as de João Tito de Morais e de Menano do Amaral. A primeira coisa que detectaria foi não existirem movimentos que pudessem revelar qualquer pagamento considerado ilícito, nem qualquer pagamento a Melancia, quer pessoal quer da empresa. Depois verificaria que os cerca de cinquenta mil contos da Weidleplan tinham sido depositados integralmente em contas da Emaudio. [24]
Também não havia quaisquer indícios de repartição dos cinquenta mil contos da Weidleplan entre os arguidos. Elementos de prova jamais considerados positivamente pelo investigador. O único elemento em contrário seria o texto do fax. Rodrigues Maximiano concluiria pela prova negativa. Entretanto não apareceriam análises nem à conta do MASP que daria início à Emaudio nem às contas bancárias de Strecht Monteiro, conhecido mediador de empresas alemãs em Macau e, também, arguido e co-autor do fax.
Finalmente, tendo em conta os meus depoimentos e, sobretudo, o primeiro de 17 de Maio, o qual, associado às reveladoras agendas de Strecht Monteiro e aos fortes indícios de conspiração contra mim, deveria ter determinado o rumo das investigações, só poderei concluir que ou ao investigador faltou a coragem ou confundiu a árvore com a floresta!
Antes da acareação que teria lugar no dia 3 de Julho entre os acusados, a Weidleplan daria mais um ar da sua graça. A 20 de Junho enviaria uma carta a Carlos Melancia pedindo-lhe desculpa pelo fax de Outubro de 1989, que teria sido gerado no meio da confusão, e tentando repor a verdade. Segundo esta os cinquenta mil contos teriam sido entregues na Emaudio para prestação de serviços, como Strecht Monteiro, inadvertidamente (ou porque ainda se encontrava acompanhado do seu advogado) tinha afirmado no seu depoimento de 3 de Maio. Era evidente, que com a “descoberta” dos recibos de pagamento a Melancia que eu propositadamente colocara no cofre da Emaudio, Rodrigues Maximiano dificilmente poderia continuar a remar no sentido da burla a que se destinara a caixa e as acusações contra terceiros por alegada falsificação do fax. Agora também a Weidleplan se via envolvida, o que explica a tardia e incompleta rectificação e, com grande probabilidade, o “complot” que estaria a ser tramado contra mim.
Eu cometeria entretanto um erro de palmatória durante a acareação. No seguimento de conversas com Almeida Santos, após os meus primeiros dois depoimentos, Menano do Amaral interromperia o seu interrogatório no dia 24 de Maio, alegando uma súbita indisposição, e eu regressaria ao ministério público a 28 de Maio, para aceitar a ideia de que o dinheiro da Weidleplan se destinara à “prestação de serviços”. Seria convencido de que nada tendo havido de ilegal e que, sendo a prestação de serviços igualmente legítima, poderia com esta alteração evitar um escândalo político naquele período pré-eleitoral e concordaria em aceitar que os cinquenta mil contos da Weidleplan, embora entregues na Emaudio e utilizados para projectos da Emaudio (o que era verdade), teriam sido destinados a honorários dos administradores pela “prestação de serviços” àquela empresa alemã e estaria na disposição de acertar contas com a Weidleplan. O procurador-geral-adjunto, tem toda a razão quando, nos seus conclusos, salienta o facto de eu ter declarado no meu primeiro depoimento “que na Emaudio não existe qualquer dossier relativo à Weidleplan pela razão de que não havia qualquer assunto relevante com aquela empresa que justificasse a abertura de um dossier” [25]. Era evidente que se os cinquenta mil contos tinham sido uma contribuição política à Emaudio, que compreensivelmente a Weidleplan ligava ao presidente da República e à área do PS, não poderia haver ali um dossier ou qualquer comprovativo de trabalhos efectuados. Sendo assim, devo também dizer, em abono da verdade, que se não havia dossier também grande parte dos contactos alegados por Strecht Monteiro que conduzem à tese da corrupção adoptada pelo procurador e fazem parte dos autos não são verdadeiros, nem têm qualquer justificação. Como aliás eu sempre manteria. Eu não sabia nem me interessava minimamente saber quanto era o valor das propostas (ainda hoje não sei), em que pé estariam os projectos, nem quaisquer pormenores do relacionamento entre a Weidleplan e o governo de Macau. Falara a Melancia para receber os alemães em 1988, arranjara um encontro entre eles em Lisboa em Abril de 1989 e dera a Strecht Monteiro informações obtidas junto de Stanley Ho sobre a CAM e outras empresas que, aparentemente, nem corresponderam à realidade. A minha concordância, para além de ser uma cedência de princípio fundamental custar-me-ia cara. Sempre acompanhado de Menano do Amaral encontrara-me várias vezes com Almeida Santos em 1990. Mas, depois de Julho, quando Strecht Monteiro revelaria ter sido Almeida Santos a mandá-lo acusar-me, deixaria de manter com ele qualquer relação. Desde Novembro de 1989, quando Mário Soares me acusara de estar por detrás da intriga que motivara o envio do fax da Weidleplan ao governador que este deixara de falar comigo. Entretanto, depois de começar a ser ouvido na procuradoria a 17 Maio, chamar-me-ia uma vez à sua casa de Lisboa e uma outra — a última — no dia 5 de Julho, à sua casa do Vau no Algarve. Não revelarei pormenores dessas conversas mas, como é normal para um presidente da Repúbliça, ele estava bem informado do andamento da investigação. Com Strecht Monteiro encontrar-me-ia no restaurante de Campolide no dia da acareação com os advogados para acordar metodologia para acertar contas com os alemães. Depois com João Tito de Morais, que deixaria de me falar depois do dia 20 de Julho de 1989, só o encontraria na reunião que teríamos, em Espinho, no dia 1 de Agosto com o advogado da Weidleplan e a filha do proprietário. O ministério público aludiria a “pactos de silêncio” entre os arguidos. Mais um “cliché” desnecessário. Seria bem se o acordo de silêncio que o advogado da Weidleplan refere ao seu colega José Manuel Galvão Teles tivesse sido devidamente investigado no seu próprio contexto, antes de se tomar a nuvem por Juno.
A reunião com a Weidleplan teria lugar no hotel Solverde em Espinho no dia 1 de Agosto. Estariam presentes, além de Strecht Monteiro e dos três administradores da Emaudio, os seus respectivos advogados. Na noite anterior, ao entrar no meu quarto n.° 362 após o jantar, encontraria as coisas remexidas e a porta de ligação com o quarto do lado aberta, do meu lado. Fui fazer queixa na recepção que me deu outro quarto para dormir “tranquilo”, o quarto n.° 366. O meu advogado seria de opinião que se não deveria participar daquela intrusão uma vez que a polícia estava visível em todo o hotel. Não me enganara, pois Strecht Monteiro coordenara a reunião com o ministério público que ali enviara observadores. Alguém terá andado à procura dos cinquenta mil contos por todo o lado tendo mesmo os alemães, no seu regresso, sido detidos no aeroporto para averiguações. Ali firmaríamos um acordo perfeitamente estúpido em que teríamos de devolver solidariamente, Menano do Amaral, Tito de Morais e eu, quarenta mil contos tendo-nos dez mil sido atribuídos a título de honorários. Seria acordado que esses quarenta mil contos só seriam pagos após liquidação da Emaudio prevendo-se assim juros a partir de então. Acontece porém que os alemães não me tinham perdoado a divulgação do fax, como verificaria aliás em Espinho, e, rompendo o acordo estabelecido, em Abril do ano seguinte a Weidleplan moveria uma acção cível contra Menano do Amaral e contra mim. Situação em tudo diferente do que se passaria com João Tito de Morais que a “Weidleplan não accionaria judicialmente”. Como a Emaudio em liquidação não tinha então dinheiro, acabaria por ter que vender parte do meu património familiar para poder pagar no dia 31 de Janeiro de 1992 à Weidleplan o montante de 14250 contos. Tito de Morais viria a liquidar a sua parte em fins de 1993 quando a Emaudio em liquidação, após venda da sua sede por 230 mil contos, tinha disponibilidades financeiras. A atitude discriminatória da Weidleplan foi para mim também sintomática.
No final de Setembro com grande alarido de alguma comunicação social à solta, o procurador-geral-adjunto acusava-nos formalmente com a convicção de haver fortes possibilidades de sermos condenados. Não houvera investigação condigna nem provas a apresentar. Só que, num simplismo confrangedor, seríamos acusados segundo indícios de um crime, “grosso modo, designado de corrupção” [26]. Tinha vencido a tese do primeiro-ministro, do presidente da República e do próprio procurador-geral da República de que em Portugal “não há condições nenhumas para que se repita aqui o fenómeno italiano” [27]. Pudera!
Referências Bibliográficas:
[1] Esta jornalista apresentava-se como sendo do PS
[2] Quando confrontado com o fax por Helena Sanches Osório o então governador admitiria que a Weidleplan, desclassificada em Maio de 1989, até então tinha tido possibilidade de obter em Macau um “terminal”, assim confirmando a minha suspeição. O Independente, de 16 de Fevereiro de 1990
[3] O Jornal, de 4 de Outubro de 1990
[4] Alegações finais do advogado Fernando de Oliveira
[5] Em entrevista ao Expresso–Revista o procurador-geral da República, Cunha Rodrigues, admitiria atrasos de anos nos processos pela escassez de meios para investigar, declarando que “só num caso” havia “noventa empresas a investigar”. Expresso de 8 de Outubro de 1994
[6] Miguel Sousa Tavares, “No Tribunal do juiz Roy Bean“, Público de 6 de Agosto de 1993
[7] José Manuel Galvão Teles, advogado de Carlos Melancia, à Visão, de 8 de Abril de 1993
[8] Advogado Strecht Ribeiro à Visão, de 8 de Abril de 1993
[9] João Tito de Morais demitira-se de administrador da Emaudio em Julho de 1989. Ele próprio confirmaria, posteriormente, ter-se afastado no quadro de uma estratégia contra mim e para me obrigar a entregar as acções da FRI a Mário Soares e por eu não “ter a imagem de marca para os negócios que pretenderiam desenvolver no quadro da Emaudio“
[10] Declarações do proprietário da Weidleplan ao jornal alemão Meinnung Information–Hintergrund, de 3 de Março de 1990
[11] Esta declaração seria feita num restaurante de Campolide, após uma acareação entre os arguidos na procuradoria-geral da República. No final da acareação seria decidido juntar-nos para uma decisão relativa a um acerto de contas com a Weidleplan. Estariam presentes Strecht Monteiro, Menano do Amaral e eu além dos nossos respectivos advogados. Curiosamente, durante a acareação, Monteiro ameaçara produzir ali mesmo as cassetes que tinha gravado tendo-o eu então dasafiado a fazê-lo. O procurador-geral-adjunto, Rodrigues Maximiano, ameaçaria então Monteiro com prisão sumária se ele levasse avante aquele propósito. Foi pena porque continuo a desconhecer o que é que se poderia descobrir nessas cassetes
[12] O mencionado fax era assinado por Richard Weidle mas era assinado também em nome de Peter Bier e Strecht Monteiro
[13] Entrevista de Carneiro Jacinto a Strecht Monteiro em O Jornal de 9 de Março de 1990, sob o título “Ter amigos no PS só me prejudicou…”
Pergunta: Quem eram as pessoas conhecidas do PS, com quem privou quando esteve lá?
Resposta: … O meu pai. Depois António Macedo e Mário Cal Brandão.
Pergunta: E o Rui Mateus?
Resposta: Não conheço.
Pergunta: Era o secretário das relações internacionais do PS, deve ter tido contactos com ele….
Resposta: Não. Tive uma vez, um contacto, em 1975.
Pergunta: E Almeida Santos?
Resposta: Conheço muito bem, em especial das campanhas eleitorais. Encontro-o de vez em quando, conversamos….
[14] O advogado de Strecht Monteiro, Strecht Ribeiro, insinuaria em tribunal que o ministério público teria algo que ver com aquela caixa, o que provocaria violenta reacção da delegada do ministério público, Maria José Morgado. Em qualquer dos casos nunca seria apurado, com seriedade, como ela lá teria ido parar
[15] Visão, de 8 de Abril de 1993
[16] Sob o título “Mateus na retranca” avisar-me-ia O Jornal que “a integridade física de Rui Mateus estaria alegadamente ameaçada havendo fortes indícios de que terão sido feitos contactos com indivíduos ligados ao mundo do crime para se encarregarem desta operação”. “Esta versão foi confirmada a O Jornal por uma fonte de Macau ligada aos negócios que estão na base de todo o desentendimento…”, 4 de Outubro de 1990
[17] Depoimento de Helena Sanches Osório, de 6 de Março de 1990
[18] Helena Sanches Osório declararia ao Diabo, de 19 de Setembro de 1995, após sair de O Independente, que aquele semanário estava ao serviço do CDS/Partido Popular
[19] Referência aos 50 mil contos entregues a 6 de Janeiro de 1989 à Emaudio e que o procurador-geral-adjunto diria na acusação terem sido repartidos entre os acusados
[20] O jornalista de O Independente, Pedro Guerra, que eu acusaria de frequentemente confundir jornalismo com a divulgação de actividades e opiniões da Procuradoria–Geral da República, escreveria um insidioso e suspeito artigo a 19 de Maio de 1995 afirmando que eu entrara em contradição nos meus depoimentos de 1990
[21] Apesar de ter sido considerado pelo tribunal como o “elo mais insignificante da cadeia de contactos”, por alegadamente ter colaborado com a entidade policial e o tribunal para o “apuramento da verdade”, Strecht Monteiro negaria sempre a existência de um pacto de suborno ou que lhe tivessem sido dadas garantias de que a “sua” empresa sairia vencedora. Tudo indica que o relacionamento de Monteiro com o ministério público durante os inquéritos em que não estaria presente o seu advogado não abona a favor do ministério público e serviria, mais para criar confusão, do que para o apuramento da verdade, como se verifica pela leitura dos seus depoimentos. Entretanto, também a sua constante recusa em corroborar a tese do ministério público, quanto ao pacto de suborno ou quanto à intenção de corromper o então governador, parecem contradizer a afirmação dos juízes de que ele teria colaborado com a polícia e com o tribunal para o “apuramento da verdade”. Por outro lado, a ter-se verificado o crime de que ele fora acusado, a afirmação dos juízes de ele ter sido o “elo mais insignificante da cadeia de contactos”, carece de sustentação. A ideia de associar Strecht Monteiro a uma espécie de “arrependido” só poderia, contudo, justificar-se, de uma perspectiva eticamente correcta, se ele, em sede de julgamento ou de investigação pré-acusatória, não tivesse sempre negado o seu envolvimento no acto ilícito de que estava a ser acusado e, finalmente, demonstrasse arrependimento. A maneira como o “fenómeno” Strecht Monteiro seria apresentado e a sua pena suspensa, além de intrigantes, mais parecem de gato escondido com o rabo de fora…
[22] Além de não ser sustentada por nenhuma prova concreta esta “garantia”, que seria “exibida” a 8 de Maio por Strecht Monteiro e não confrontada com nenhum outro documento, parece contradizer outra declaração feita ao ministério público no mesmo dia. Afirmaria, então, que “não obstante” estar convencido da seriedade e influência dos administradores da Emaudio, “propôs à empresa alemã a colocação no território de Macau de um engenheiro bilingue… para acompanhar no local toda a situação, mantendo-se assim informado do que acontecia e das decisões”. Quem tem tais dúvidas dificilmente assina garantias antes de receber o dinheiro que, alegadamente, iria garantir. A verosimilhança do documento é pouco provável até porque a Weidleplan não terá aceitado a sugestão do seu representante alegando “o bom suporte que tinha em Lisboa” através da Emaudio! O que significa que Monteiro, apesar das dúvidas estaria disposto a dar uma “garantia” e a Weidleplan que não parecia ter dúvidas, exigiria uma tal “garantia” a Monteiro e não ã Emaudio! Convenhamos que não bate certo.
[23] Um dos documentos “encontrados” pelo procurador-geral-adjunto na Emaudio era uma cópia de uma factura de aquisição de antiguidades em nome de Carlos Melancia no valor de 15492 contos. Eu declarara ao procurador-geral-adjunto nada saber sobre o que estaria por detrás daquela aquisição. O que é verdade, mas seria deixado na Emaudio por Tito de Morais quando abandonara a empresa pretendendo dá-lo então como “recibo” do último pagamento devido a Carlos Melancia
[24] A IGF também confirma este ponto com o “depósito n.° 6617 em numerário no montante de 31 mil contos contabilizados na empresa” em 6 de Janeiro de 1989 e, em “8 de Fevereiro de 1989 depósito em numerário de 19 mil contos. Esta importância, acrescida do depósito efectuado em 6 de Janeiro de 1989 na conta da empresa, prefaz 50 mil contos, montante de expressão idêntica ao pagamento efectuado pela Weidleplan, relatório da IGF pp. 810-12 dos Autos
[25] Página 1252 dos Autos
[26] Conclusos de Rodrigues Maximiano, p.1203 dos Autos
[27] Declaração do procurador-geral da República, Cunha Rodrigues, em entrevista ao Expresso, de 19 de Agosto de 1994