Será que os "brandos costumes" vão sobreviver a esta crise?

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Sobreviver à crise
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Confiança no funcionamento da democracia está a bater no fundo

O último Eurobarómetro mostra que a confiança dos portugueses no funcionamento da democracia está a bater no fundo. Estão mais cépticos do que a maioria dos outros europeus, mas continuam a poupar nos protestos e vão fazendo o que sempre fizeram: ir embora. Como o pior ainda está para vir, há quem antecipe manifestações maiores e mais duras. Mas também quem preveja que a penalização se faça sentir da forma habitual: através do voto.

A 24 de Novembro, dia de greve geral em Portugal, Américo Monteiro, coordenador nacional da Pastoral Operária, ficou apreensivo: “Chegou-se ao fim da tarde e havia uma calmaria total, que preocupa.” A Pastoral Operária, que congrega os movimentos de trabalhadores de inspiração cristã, também apelou à adesão à greve e a que a jornada decorresse sem incidentes. Portanto, o dia até correra de feição. Mas Américo Monteiro, que é visceralmente contra acções violentas, não esperava todo aquele silêncio, embora olhando para trás pense que até era previsível. Conta que, nos últimos tempos, já viu “muita gente a chorar por ter perdido o emprego” e que todos estavam resignados.

Será que esta aparente ausência de expressão pública do descontentamento constitui mais uma prova de que o conformismo é, de facto, uma marca genética do país? Ou estará, pelo contrário, a funcionar como uma espécie de panela de pressão? O Público foi procurar respostas.

“Olhando para os resultados do último Eurobarómetro, não diria que os portugueses não reagem”, contrapõe Pedro Magalhães, especialista em estudos de opinião. Os inquéritos para este estudo à escala europeia foram realizados antes da aprovação do novo Plano de Estabilidade e Crescimento (PEC III) e do Orçamento do Estado para o próximo ano, onde está contemplado o maior plano de austeridade das últimas décadas. Os seus resultados, divulgados em Novembro, dão conta de que, em apenas seis meses, entre Novembro de 2009, altura em que foram realizados os inquéritos anteriores, e Maio de 2010, a confiança dos portugueses no funcionamento da democracia, nas instituições e no futuro quase se esboroou.

Já não era muita, encontrava-se em declínio lento há anos, mas agora está a bater no fundo e em ritmo acelerado – 69 por cento dos portugueses mostram-se insatisfeitos com o funcionamento da democracia, 76 por cento proclamam que não têm confiança no Governo, 67 por cento afirmam o mesmo em relação ao Parlamento e 82 por cento desconfiam dos partidos políticos. São níveis que, no geral, só são comparáveis aos registados em alguns países do Leste, frisa Magalhães.

À excepção da Grécia, a quebra destes indicadores, que dão conta dos índices de satisfação com o desempenho do regime, é bem mais acentuada em Portugal do que noutros países, onde, nos últimos meses, dezenas de milhares de pessoas têm estado sucessivamente na rua, em protesto. Para Pedro Magalhães testemunham que “ocorreu um salto dramático” na percepção que os portugueses têm dos efeitos da crise económica e financeira.

Vem aí mais abstenção?

Com epicentro no Outono de 2008, a crise não se abateu logo sobre Portugal e foi depois, segundo este investigador, mascarada pelo Governo, que em 2009, ano de eleições, “tudo fez para que não se sentissem os seus efeitos”.

A imersão na realidade foi adiada, mas não podia ser evitada. À semelhança dos outros europeus, a maioria antecipa agora que o pior ainda está para vir. Mas a greve geral parece ter passado à história logo no dia seguinte. Ana Belchior, socióloga, adverte: “Apesar da costumeira discussão em torno dos números, o impacto da adesão a esta acção veio no mínimo sinalizar que há um potencial de mobilização social que não deve ser negligenciado pelo Governo.”

A socióloga lembra que é essencialmente através do voto, “o canal mais tradicional”, que os portugueses veiculam a sua insatisfação. “Com o agravar das condições de vida, creio que se acentuarão as tendências já verificadas nas eleições legislativas de 2009, que viram crescer a expressão dos pequenos partidos na Assembleia da República.”

Outra possibilidade, que também pode decorrer em simultâneo, é a de um maior afastamento e cepticismo das pessoas em relação às instituições, o que se traduzirá num aumento da abstenção, acrescenta Magalhães. Até lá, adianta, é provável que se mobilizem mais, “mas não pelos canais convencionais”, aos quais tendem, mais uma vez à excepção do voto, a não reconhecer eficácia: “Mas mesmo que venha a acontecer, será sempre com níveis diferentes dos registados noutros países.”Todos os estudos de opinião realizados mostram que, na Europa, os portugueses são dos que têm níveis mais baixos de participação política. Característica que Magalhães atribui sobretudo ao baixo nível de instrução ainda dominante no país. Frisa que o envolvimento tanto nas práticas políticas convencionais, como sobretudo nas que fogem a estes canais, exige algo que muitos não têm por cá: “Competência, tempo e dinheiro.”

Mas os comportamentos políticos também reflectem, segundo Ana Belchior, algo que diz ser “inquestionável” – “há como que uma tradição de conformismo, passividade e impassibilidade no ser-se português”.

Já a historiadora Fátima de Sá não subscreve esta premissa: “Não há qualquer particularidade na acção colectiva em Portugal que não seja situada historicamente.” Explica que, à semelhança do que aconteceu noutros países europeus, com a adopção dos regimes liberais e parlamentares, deu-se “uma mudança de repertório da acção colectiva” – das formas de protesto locais e directas passou-se para outras de âmbito nacional, que “não visavam já apenas o alvo imediato de contestação”.

Um exemplo: antes contestavam-se os impostos “queimando as repartições de finanças locais”, depois começaram a fazer-se petições ou manifestações nacionais. Mas há muitos indícios de que os modos de protestos que surgiram “com a modernidade começam também já a envelhecer ou a mudar”.

Fátima de Sá não faz prognósticos para o futuro, mas recorda uma condição: “A acção colectiva para se desencadear precisa de ter recursos mobilizáveis, tanto materiais, como culturais.” E “não são geralmente as populações famintas ou os idosos de fracos rendimentos, os desempregados ou os trabalhadores precários que dispõem deles”, conclui.

Violência não é de excluir

O travão a uma maior agitação social poderá não ser apenas explicado pelas condições materiais dos segmentos mais atingidos. Aires de Almeida, professor de Filosofia no ensino secundário, aponta outra das causa possíveis: “Temos uma cidadania muito tutelada. Foram sempre as instituições a tomar conta de nós.” Passa-se o mesmo nas escolas. Apesar dos protestos a que têm dado corpo, e que estão agora em aparente retracção, “também os professores estão mais habituados a obedecer do que a questionar”: “O Ministério da Educação dá-lhes instruções para tudo e estas são cumpridas. Foi uma classe que, de certo modo, acabou por se infantilizar.”

É um traço que pensa ser extensível a outros grupos. Aires de Almeida não exclui, contudo, ainda que tenha dúvidas sobre a possibilidade de vir realmente a acontecer, que se venha a registar “um ponto de viragem e que o medo se transforme em revolta – e até em revolta brutal”. Protagonistas: os trabalhadores precários, mais de um milhão em Portugal, que se têm remetido ao silêncio por medo de perder o emprego. É o que tem visto acontecer com os professores que estão a contrato nas escolas, por exemplo. “É perigoso jogar com o medo das pessoas”, adverte.

Ana Belchior também não dá como garantido que “os brandos costumes que tradicionalmente se associam ao ser português possam imunizar a Sociedade de manifestações de descontentamento mais agudas e mesmo com algum grau de violência”.

“Há um factor de arrastamento nestes comportamentos e, por vezes, quando todos os ingredientes estão presentes, basta apenas uma faísca que acenda o rastilho”. O pano de fundo, segundo ela, é propício: a sociedade portuguesa é caracterizada “por uma profunda desigualdade social” e esse fosso irá agravar-se com as políticas de austeridade que foram aprovadas. Vão “penalizar fortemente” quem tem pouco ou quase nada. Já o também sociólogo Filipe Carreira da Silva considera que a probabilidade de derivas violentas “é muito menor do que em vários outros pontos da Europa“. Se noutros países, como na Grécia, “a passagem do descontentamento ao protesto violento ocorreu quase espontaneamente”, isso deve-se também, na sua opinião, a um “historial de violência civil”, a uma “tradição doméstica de terrorismo” que Portugal nunca teve.

Parem de brincar às greves

Américo Monteiro, da Pastoral Operária, congratula-se que assim seja. Afirma que “em democracia, quando se ultrapassam os limites legais, toda a gente perde”, mas também defende que é preciso encontrar outras formas de acção que permitam mostrar, sem margens para dúvidas, “que as coisas estão a doer”. Essa foi, segundo ele, a grande mensagem que faltou na última greve geral.

Também António Chora, coordenador da comissão de trabalhadores da Autoeuropa, em Palmela, encara a paralisação como uma oportunidade perdida: “Fui a Lisboa nesse dia e parecia um domingo, com a única diferença que as lojas estavam abertas.”

Lembra que, quando as pessoas ficam isoladas, a tendência para o fatalismo é maior e aponta o dedo às centrais sindicais: “Não podemos continuar a brincar às greves gerais. É preciso pôr na rua os trabalhadores que param.” Conta que no Parque Industrial de Palmela foram muitos os que pressionaram para que, à semelhança de outros países, a greve fosse acompanhada por manifestações, mas que os sindicatos recusaram: “Em vez de mobilizarem as pessoas para a rua, vieram montar-nos um piquete à porta, com gente de fora. Não precisamos disso para nada.”

Para Chora, o que se vier a fazer nos próximos tempos, para ser eficaz e mobilizador, terá que resultar de uma “concertação das centrais sindicais europeias para um ataque claro a Bruxelas“. Os dados do último Eurobarómetro mostram que os efeitos da crise e as respostas adoptadas pela União Europeia (UE) levaram a uma redução drástica dos níveis de confiança na UE. Pela primeira vez desde 2004, o indicador de confiança foi ultrapassado pelo medo e a desconfiança. Em Portugal subiu mais de 20 pontos – de 24 para 47 por cento.

O Eurobarómetro dá também conta de um “declínio muito nítido dos que consideram que o país beneficiou com a adesão à UE e com a adopção do euro”. Falta saber agora, segundo Pedro Magalhães, se esta derrapagem é meramente conjuntural ou se, pelo contrário, é sinal de “um cepticismo mais estrutural face à integração e moeda única”.

Votar com os pés

Entretanto, sem grandes manifestações ou acções de protesto, os portugueses estão a fazer o que sempre fizeram – ir embora. Só entre 2007 e 2008, 100 mil terão abandonado o país. Serge Tréfaut, realizador, esteve há pouco tempo a filmar no Egipto. Testemunhou que, apesar das enormes dificuldades com que as pessoas vivem o quotidiano, a opção de abandonar o país é sentida ali com dor. Por cá nem isso: “O desencanto e a desconfiança na falta de capacidade do Governo são tão profundos que as pessoas nem sentem mágoa quando equacionam ir embora. E há uma percentagem elevadíssima que, se pudesse, o faria já, sem qualquer hesitação.”

É uma tentação antiga. João Magueijo, cosmólogo, que saiu de Portugal há duas décadas e se tornou, em Londres, um físico com reputação internacional, remete para uma das músicas mais conhecidas dos Xutos e Pontapés: “A atitude tipo Contentores (“adeus, que vou para outro mundo”) é, de facto, mais forte em Portugal que noutros lados e a culpa é do país que não encoraja outra atitude. Não será escapismo, mas realismo.”O físico desafia: “Se os políticos assumissem as culpas pela fuga de cérebros e outras fugas, já seria um começo.”

“Há um afastamento progressivo dos jovens em relação ao país”, constata Miguel Portugal, líder da Associação Académica de Coimbra (AAC). Ao contrário do que aconteceu na década de 60, o fluxo de emigração já não é alimentado pelas camadas mais pobres. Muitos dos que estão a sair são jovens qualificados.

Com maior acesso à informação sobre as oportunidades de melhor formação e emprego que poderão ter lá fora e, geralmente, ainda sem encargos familiares, são os “que mais facilmente podem sair do país”, constata Filipe Carreira da Silva.

Esta expressão prática do que é “viver numa aldeia global” – e os jovens “vivem de facto nela”, lembra o líder da AAC – não significa, para o sociólogo, que não exista por detrás da debandada razões fortes de descontentamento. E não só porque “a taxa de desemprego entre os jovens é muito superior à taxa geral”. “Há um défice escondido nesta crise: trata-se de um défice de futuro que aqueles que nos governaram nos últimos anos vão legar aos mais jovens.”

Segundo revela também o último Eurobarómetro, a maioria dos europeus está de acordo com a ideia de que devem ser feitas reformas nos seus países que venham a beneficiar as gerações futuras, mas regista-se um empate (46 por cento) entre os que se dizem dispostos a reduzir o seu nível de vida actual para garantir o futuro dos mais novos e dos que virão depois e aqueles que chumbam esta possibilidade. Em Portugal, a situação é mais clara: só 29 por cento se mostraram disponíveis para esse sacrifício.

Magueijo não considera “que os jovens sejam particularmente submissos”. Pensa até o contrário. Só que “fica a ideia que, faltando uma intervenção à moda antiga, tipo FP-25, em Portugal o protesto não leva a lado nenhum, porque ninguém ouve; daí a aparência de apatia”. Filipe Carreira da Silva prevê que, nos próximos tempos, o descontentamento nesta camada se vá expressar assim: continuar a “votar com os pés, saindo do país, ou ficar em Portugal e protestar na rua”. Antecipa mesmo que sejam eles que venham a estar “na linha da frente dos protestos”.

“Estamos num ponto de viragem”, corrobora Miguel Portugal, que aponta como sinal a manifestação contra os cortes nas bolsas de estudo, realizada a 17 de Novembro passado. Terão participado entre cinco mil a sete mil estudantes. “Foi a maior desde a década de 90. Não nos revemos nos cortes preconizados para a Acção Social Escolar. São medidas que nos envergonham e contra as quais iremos continuar a lutar”, diz.

Há muitos anos, quando ainda não havia democracia em Portugal, Vítor Campos, ex-jogador da Académica, participou num momento que ficou para a história da contestação em Portugal. Na final da Taça de Portugal, disputada com o Benfica, os jogadores da Académica associaram-se ao luto académico decretado pelos estudantes da Universidade de Coimbra em protesto pela prisão de vários deles, entre os quais figurava o actual ministro da Justiça, Alberto Martins. Hoje, Vítor Campos tem esperança: acredita que os portugueses sabem manifestar o seu descontentamento e emociona-se quando vê que o fazem sem recorrer à violência, como aconteceu na última greve geral. “Vamos vencer esta crise. Espero que Portugal continue a ser um país onde as pessoas gostem de viver.”

Fonte: Publico

Artigo Original: http://www.publico.pt/Sociedade/sera-que-os-brandos-costumes-vao-sobreviver-a-esta-crise_1469304?all=1

2 COMENTÁRIOS

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