Por: Rui Mateus
A partir de Maio de 1985 os membro do “ex-secretariado”, com destaque para Jorge Sampaio, João Cravinho, António Guterres e Luís Filipe Madeira, pressentindo o iminente desastre eleitoral do PS, abandonariam as questões de princípio que os levara, em bloco, a recusar participar nas anteriores eleições, em 1983, e aceitariam ser, de novo, candidatos do PS nas eleições legislativas de 6 de Outubro. Graças ao apoio dos “três estratos” [1] eanistas dentro do PS, o general Ramalho Eanes, longe de contribuir para a estabilidade do regime democrático, aproveitara bem os últimos cinco anos de mandato, para fomentar divisões nos dois principais partidos, o PSD e o PS, e para ajudar a lançar um partido novo que proporcionasse “um aprofundamento da Democracia” [2] que concretizasse “as esperanças do 25 de Abril” [3] e que introduzisse, a moral e a ética na política portuguesa. O resultado das eleições seria um verdadeiro “terramoto” político que quase abalaria definitivamente o Partido Socialista. O PSD, contudo, apesar do “fenómeno” Cavaco Silva só conseguiria 88 deputados, mais treze, do que tivera em 1983. O PS conseguiria apenas eleger 55. Menos 46 que nas eleições anteriores e o efémero partido eanista, o PRD, atingiria quase tanto como o PS, quarenta e cinco deputados. Em Lisboa o PRD elegera mesmo mais deputados que o PS, que só conseguiria obter 11 mandatos à Assembleia da República. Eu tinha o quarto lugar na lista de Lisboa onde Sampaio, ironicamente em 12.° lugar, só conseguiria um lugar na A.R. graças à suspensão do mandato de Mário Soares para se candidatar à presidência. Curiosamente o PSD conseguiria pouco mais do que nas eleições anteriores de 1983 não obstante o “fenómeno” Cavaco Silva e as gigantescas manifestações organizadas pelo aparelho “laranja”, com destaque para a manifestação na alameda da universidade no dia 3 de Outubro. Nesse dia, ao fim da tarde, quando já dezenas de milhar de pessoas ali estavam concentradas, uma caravana automóvel do PS passaria por entre os gritos e bandeiras dos manifestantes do PSD. A mim, que fizera geralmente campanha com Igrejas Caeiro, caber-me-ia a companhia de Jorge Sampaio nesse dia mas, quando a caravana se começou a aproximar da “hostil” manifestação, reparei que Sampaio estava lívido. Ninguém nos molestaria e, depois de passado o susto, lembrar-me-ia de Obeye Diop em Santo Domingo. Sampaio dir-me-ia, já recomposto, “isto está feio!” Na realidade os tempos não eram de feição ao PS.
Os dois anos de governo do bloco central não seriam muito diferentes dos dois primeiros governos do PS, todos liderados por Mário Soares. Repetiram-se praticamente os mesmos erros a nível do país e a nível do partido mas, enquanto de 1976 a 1978, todas as preocupações estariam concentradas numa eventual candidatura de Mário Soares a Belém, que sairia frustrada em virtude da crise interna instalada no PS pelos eanistas, de 1983 a 1985 invertiam-se os termos. As preocupações com a sua candidatura a Belém também dominariam toda a acção do governo mas, com a emergência dos eanistas do PRD e um PS de rastos, em 1985, aquilo que os eanistas do PS mais desejariam era a candidatura de Mário Soares a Belém. Com a tremenda derrota do PS nas legislativas e a previsão generalizada de derrota semelhante de Soares nas presidenciais, facilmente ganhariam o partido. As sondagens davam, então, a Soares, cerca de 6% da intenção de votos na primeira volta das presidenciais.
Mas havia outras esperanças pelas quais valia a pena lutar. Em Março de 1984, quando da visita oficial aos EUA, visitámos no dia 17, dia livre em Nova Iorque, o velho amigo e antigo secretário-geral da IS, Hans Janitschek, na sua residência frente ao central park. Aí falar-se-ia abundantemente da próxima candidatura a Belém. Um dos “handicaps”, evidenciado pelo total desinteresse que a visita do primeiro-ministro despertara na comunicação social norte-americana, prendia-se com o “feedback” desse aparente desinteresse que a televisão rapidamente transmitia aos eleitores portugueses. Era necessário algo na área da cultura que o projectasse de fora para dentro como o “maior português do século”. Janitschek sugeriu um livro ao que Soares responderia ser do seu agrado, tendo mesmo já insistido junto da sua velha amiga Marvin Howe nesse sentido. Só que nenhuma editora anglo-saxónica mostrara qualquer interesse. Janitschek lembraria então o seu amigo, também de origem austríaca, que era um dos mais conhecidos editores britânicos, titulado de “lord Widenfeld” por sua majestade a Rainha Isabel II, por proposta do primeiro-ministro Harold Wilson a quem, George Widenfeld, através da sua editora Widenfeld & Nicolson, publicara alguns livros. Só que como a eleição era arriscada e, de qualquer modo, Widenfeld não queria mais títulos, tal “obra” teria que ser paga. Seria um livro “para português ver” sem qualquer mercado nos países de língua inglesa. Mário Soares concordaria então, desde que não fosse muito caro e que Marvin Howe colaborasse na sua feitura. Segundo ele, a fundação de Relações Internacionais se encarregaria dos pormenores a partir daí, o que então queria dizer que eu teria de me encarregar desta nova actividade eleitoral. A sua filha Isabel se encarregaria das fotos. Assim nasceria o livro «Mário Soares, Portrait of a hero» da autoria de Hans Janitschek, que custaria a módica quantia de cinquenta mil dólares ou, naquele tempo, quase oito mil contos, dos quais mil e seiscentos para o autor.
No dia 13 de Dezembro era lançado o livro, numa recepção de mais de mil pessoas no hotel Ritz em Lisboa com a presença do autor, do editor e do então já ex-primeiro-ministro britânico James Callaghan. Um dos entrevistados por Janitschek seria o general António de Spínola, com o objectivo de “conquistar” simpatias à direita. Um ex-acessor de ambos, do general e do candidato presidencial, o diplomata de carreira Nunes Barata, promovera o contacto e garantira que Spínola estaria presente no lançamento no hotel Ritz. Durante as conversas que Janitsheck gravou com Spínola, na sua residência perto do IST, no início de 1985, o general elogiaria Mário Soares de tal maneira que o ex-secretário-geral da IS nem queria acreditar que estava a falar com um ex-colaborador das tropas nazis. Mas posteriormente, quando as sondagens começaram a indicar que Soares estaria irremediavelmente perdido, Nunes Barata contactaria Janitschek a pedido de Spínola para emendar o texto inicial. Quando a cerimónia estava prestes a começar com os discursos do autor, editor, ex-primeiro-ministro britânico e “homenageado”, sobre esta “obra” que seria simultaneamente “divulgada” em Londres e em Nova Iorque, pelas mais prestigiadas editoras mundiais, a Widenfeld & Nicolson e a Martins Press, respectivamente, ainda o general Spínola não tinha chegado. Mário Soares, visivelmente contrariado, pediria a Nunes Barata que fosse saber o que se passava. Este regressaria pouco depois, com a informação de que o general estava doente e não poderia assistir à cerimónia.
Este livro que Soares quisera, fora “fabricado” com dois objectivos: o primeiro de dar a mensagem aos portugueses mais desprevenidos de que o candidato Mário Soares era considerado um herói além-fronteiras, ao ponto das mais prestigiadas editoras mundiais se “baterem” para publicar as suas memórias e, segundo, permitir a alguns PSD‘s e CDS‘s, como foi o caso de Francisco Pinto Balsemão, poderem apoiar discretamente o candidato Mário Soares, contra as orientações de Cavaco Silva. Mas, por razões que nunca apuraria, Marvin Howe nunca chegaria a colaborar com o autor do livro. Quase um ano depois, Mário Soares, já então presidente da República, dir-me-ia que falara com Marvin Howe e que esta lhe dissera que o livro não possuía qualidade literária. Depois de o encomendar, como qualquer “gadget” eleitoral, a um autor que conhecia desde 1969 e sabia não ser exactamente reconhecido no meio literário de Nova Iorque, tentava culpar-me pelo facto de o livro não ser exactamente considerado para o prémio Pullitzer. Recordei-me então de como ele, dez anos antes, “abandonara” o partido e depois tentara culpar Manuel Tito de Morais pela quase vitória de Manuel Serra! Mas, na realidade, como eu o conhecia bem melhor do que os portugueses o conhecem, sabia perfeitamente que a sua tardia “reclamação” não passava de mais uma birra resultante da frustração de ter encomendado um livro que fora bom para o lançamento da campanha mas que, convenhamos, não era exactamente um grande “crédito” nos meios políticos e literários internacionais para um presidente da República. Mas, infelizmente, ainda não apareceu nenhum autor de renome da língua de Shakespeare a escrever outro!
O segundo passo importante do lançamento da campanha foi o convite a uma empresa de relações públicas para definir as grandes orientações da campanha. Em Janeiro, após o meu regresso de Tóquio, seria convocado para uma reunião com Mário Soares. Nesta altura e dado o pouco interesse que para ele tinham as legislativas, já praticamente só se discutia a eleição presidencial. Dir-me-ia para falar com o Carlucci sobre a questão falada no hotel Madison durante a visita oficial aos EUA, quando este lhe sugerira o recurso a apoio técnico de uma empresa especializada em eleições. Carlucci, com quem aliás mantinha contactos regulares, dir-me-ia que sim, que se lembrava e que me iria pôr em contacto com uns homens do Reagan que eram “the best that money can buy” [4]. Lee Atwater telefonar-me-ia poucos dias depois e combinou-se organizar uma visita a Portugal para em contacto com Soares discutirem o assunto. Lee Atwater e Paul Manafort [5], dois dos proprietários da empresa de relações públicas Black, Manafort, Stone & Kelly chegariam a Lisboa num voo da TWA às 7:30h de domingo, dia 3 de Março. Na parte da tarde eu próprio os iria buscar ao hotel Meridien para depois os levar a uma longa conversa com Mário Soares, na sua casa de Nafarros. A eles exporia, com sinceridade maçónica, como ele próprio sentia a situação, quem seriam os prováveis candidatos e a improbabilidade matemática da sua eleição. Os americanos explicariam como trabalhavam e como tudo era possível desde que houvesse meios. Falou-se muito de Freitas do Amaral, o candidato do PSD e do CDS que mais “chances” tinha de ganhar e de Francisco Salgado Zenha, o que mais probabilidades tinha então de ir à segunda volta. E falou-se de Maria de Lourdes Pintasilgo, uma falada candidata que logo despertaria as atenções dos “public relations” do presidente Ronald Reagan. Entre os truques que eles tinham possibilidade de “plantar”, caso fosse caso disso, para desacreditar um candidato como Freitas do Amaral, no momento decisivo da campanha, havia o lançamento de um artigo num grande jornal como o New York Times, através das suas “toupeiras”, que embora descrevendo o candidato com noventa por cento de informação rigorosa, incluiria dez por cento de ficção. Por exemplo, seria revelada uma associação secreta avassaladora ao KGB, que seria impossível de verificar em tempo útil. O “feedback” dessa informação correria mundo e adquiriria tal veracidade que acabaria por se transformar num elemento implacável de dúvida sobre a integridade do candidato.
Soares estava absolutamente eufórico e, depois de várias horas de conversa, decidiria apresentar o seu novo trunfo ao seu “think thank” que se encontrava reunido nessa noite na sede da fundação de Relações Internacionais. Lá estavam, entre outros de que não me recordo, Gomes Mota, Vitor Constâncio, Jaime Gama e Vasco Pulido Valente. Depois, no dia seguinte e após nova reunião, apresentá-los-ia à sua comissão técnica e a Serras Gago, o elemento encarregado dos estudos de opinião. Antes de partir tiveram oportunidade de dizer a Mário Soares que o seu trabalho era para ser pago. A partir daí ficariam em contacto com a CTE do MASP e, em particular com Serras Gago, vindo a Portugal em inúmeras ocasiões para contactos com Mário Soares e Almeida Santos. O meu trabalho de mediação terminara, contudo, após a primeira visita. Mas tinha conhecimento de que os contactos continuavam e de que, contrariamente ao que foi feito circular após a eleição presidencial, os “técnicos americanos, altamente especializados, tinham vindo a Portugal… e o seu veredicto não pudera ser mais peremptório”, era possível eleger Mário Soares desde que tudo fosse feito para manter Maria de Lourdes Pintasilgo na corrida [6]. Aparentemente, e apesar de eu ter notado algumas reticências à primeira análise dos americanos por parte do “think thank” reunido na sede da FRI no dia 3 de Março, as relações com o candidato e com a sua equipa continuariam em pleno, tendo mesmo alguns dos elementos “técnicos” visitado Washington para ali trabalhar com esta empresa.
No dia 7 de Maio seria chamado de urgência a São Bento. O primeiro-ministro estava em polvorosa. Dois dias depois chegaria a Portugal o presidente do EUA e o primeiro-ministro acabara de ter conhecimento de que o discurso que aquele dignitário iria fazer na Assembleia da República era altamente elogioso para o presidente Ramalho Eanes. “Não pode ser” — dir-me-ia Soares — “afinal contratámos aqueles gajos para nos ajudar e depois fazem uma “gaffe” destas”. Para Soares, os elogios a Eanes, para além de desagradáveis por se tratar de Eanes, constituíam uma nota negativa nas suas aspirações presidenciais. Ele é que era o amigo dos americanos e ao ser ignorado pelo presidente dos Estados Unidos, em Portugal, representava uma não ingerência altamente favorável a Freitas do Amaral. Eu entraria imediatamente em contacto com Paul Manafort que compreendeu a “aflição” de Soares. Mas também viu aqui uma boa oportunidade de demonstrar a sua influência em Washington, entrando em contacto imediato com Bud Mac Farlane, o poderoso conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, e no dia seguinte receberia confirmação de que o discurso que o presidente dos Estados Unidos iria proferir perante a Assembleia da República, tinha sido convenientemente modificado. Reagan falaria da liberdade, de Winston Churchill, de Lincoln e dos pastorinhos de Fátima mas não mencionaria uma única vez o seu homólogo, presidente da República general Ramalho Eanes. Pelo contrário, no almoço que o primeiro-ministro lhe ofereceria em Sintra, Reagan saudaria com grande entusiasmo a “coragem e liderança do primeiro-ministro”.
Durante uma visita a Lisboa de 11 a 14 de Junho, Manafort recordaria o ainda primeiro-ministro, num encontro no Palácio de S. Bento, de que estavam a trabalhar com a sua CTE há três meses e que o contrato acordado de um pagamento de 180 mil dólares mais despesas, não tinha sido nem pago nem sequer assinado. O primeiro-ministro dir-lhe-ia então que lamentava, que pretendia que eles continuassem a trabalhar na campanha em contacto com algumas das pessoas indicadas, como era o caso de Serras Gago, mas não directamente com a CTE ou com a comissão política, uma vez que ele pretendia evitar que viesse a público a informação de que os “homens do Reagan” estavam a orientar a sua campanha. Manafort disse compreender e insistiria no pagamento. Pelas razões aduzidas, diria Soares, não poderia ser o PS a pagar mas ele já tinha falado com Almeida Santos e com Veiga Simão que resolveriam o problema através de um contrato de representação ou “lobbying” para o governo, nos EUA. Daquele encontro seguiríamos para encontros com Almeida Santos e com Veiga Simão, na rua Gomes Teixeira e na rua da horta seca. Ambos tinham sido contactados pelo primeiro-ministro e sugeriram que fosse enviada uma minuta de contrato. A 12 de Agosto seria enviada ao ministro da indústria uma proposta de acordo em língua portuguesa para ser assinada no dia 2 de Setembro e cópias para o primeiro-ministro e para o ministro de estado. No dia 27 de Agosto Mário Soares dar-me-ia instruções no sentido de convencer Paul Manafort a não vir a Lisboa no dia 2 de Setembro, com o pretexto de que Veiga Simão não tivera tempo de se ocupar do assunto. Manafort compreenderia então que, com as eleições legislativas a um mês de distância, tudo não passara de uma manobra de diversão. A 28 de Agosto Manafort escreveria que “acreditamos em V. Ex.a e nos seus objectivos mas, infelizmente, não nos é possível manter uma relação comercial nestes moldes. É absolutamente incompreensível, para mim, esta situação. Passaram-se 6 meses e só obtivemos várias e diferentes desculpas”. A não ser que tenha havido outros “técnicos americanos, altamente especializados”, que eu desconheça, estes, pelo menos até a 28 de Agosto, acreditavam em Mário Soares e nos seus objectivos. Não terão é levado “em conta a dimensão do personagem”. Mas ambos, Soares e eu, teríamos ainda a oportunidade de nos encontrar com a empresa de Paul Manafort dois anos depois.
No seguimento da troca de notas entre o secretário de estado George Schultz e o ministro dos negócios estrangeiros Jaime Gama era, finalmente, constituída a fundação Luso Americana para o desenvolvimento com o Decreto-Lei 169/85 de 20 de Maio. Segundo os estatutos publicados no Diário da República, a FLAD teria três órgãos distintos. O conselho directivo composto por três membros dos quais um era obrigatoriamente o embaixador dos Estados Unidos e os outros dois designados pelo primeiro-ministro; o conselho executivo, também composto por três membros e dos quais dois eram designados pelo primeiro-ministro e um pelo embaixador dos Estados Unidos; e o conselho consultivo composto por 6 portugueses designados pelo primeiro-ministro e 6 designados pelo embaixador americano. O presidente da fundação seria o presidente do conselho directivo, designado para o cargo pelo primeiro-ministro, enquanto o conselho executivo teria igualmente um presidente a ser designado pelo conselho directivo. Ao conselho directivo competia definir as grandes linhas de orientação da fundação e controlar e garantir a eficácia do trabalho quotidiano a desenvolver pelo conselho executivo, responsável pela administração. A ideia inerente à fundação e a preparação dos estatutos mereceriam a atenção de inúmeras pessoas ao longo de vários anos, tendo aliás, contrariamente ao que é do conhecimento geral, este projecto sido iniciado pelo então primeiro-ministro Pinto Balsemão. Quando o primeiro-ministro me pediu em finais de 1983 para acompanhar a elaboração dos estatutos e o lançamento da fundação directamente com o embaixador Allan Holmes, era já sua intenção designar-me para um cargo executivo na mesma e, simultaneamente, evitar que o ministério dos negócios estrangeiros controlasse o projecto. É assim compreensível a aversão com que a FLAD sempre foi recebida pelos diferentes embaixadores de Portugal nos EUA. Por um lado o embaixador de Portugal, ao contrário do seu homólogo americano, não tinha assento no conselho directivo. Poderia parecer ilógico mas o que esteve subjacente nesta matéria não seria o desejo de “afastar” o embaixador de Portugal, mas tão só imprimir operacionalidade à fundação onde, inicialmente, se previa para o conselho directivo um papel bem mais activo do que aquele que o primeiro-ministro Cavaco Silva depois lhe viria a dar. Por outro lado houve a clara intenção de não deixar transformar a fundação num instrumento do ministério dos negócios estrangeiros e, muito menos, da sempre empobrecida e pedinte embaixada de Portugal em Washington. A fundação constituía uma ideia inovadora nas relações luso-americanas que o próprio governo dos EUA acompanharia com grande interesse, dada a esperança de que este modelo de cooperação pudesse vir a ser exemplar da política externa e de cooperação daquele país. Mas as razões essenciais que levariam os dois governos a estabelecer a FLAD seriam a criação de um organismo autónomo que ajudasse a desenvolver as relações luso-americanas, que promovesse o desenvolvimento económico do país e que pudesse ajudar a financiar de um modo rápido, e sem burocracia, pessoas com ideias inovadoras. Mas, como não poderia deixar de ser, todos concordariam que. embora autónoma, a FLAD não deveria ser uma força de bloqueio da acção governativa mas, pelo contrário, sintonizar as suas acções com o esforço governamental.
No momento em que Mário Soares decidiu designar as pessoas para chefiar a fundação eu pedir-lhe-ia que me não nomeasse para um cargo executivo, embora soubesse que os membros do conselho executivo iriam usufruir de salários extremamente elevados para o nível de vida dos portugueses. A definição dos salários e outros aspectos relacionados com o arranque e funcionalidade da organização seriam da competência do conselho directivo, cujos membros, por exigência estatutária não seriam remunerados. Mas nas conversas iniciais com o embaixador dos EUA facilmente se poderia depreender que o elemento por ele a designar para o conselho executivo seria um cidadão americano que não poderia vir para o nosso país com um salário “português”. Ora sendo assim os seus homólogos portugueses não poderiam receber salários inferiores. De qualquer modo antes de Mário Soares iniciar contactos com o PSD e com o CDS a fim de ser obtido um saudável consenso para a distribuição dos lugares, eu dir-lhe-ia que não pretendia um lugar de administrador mas sim de director, sabendo de antemão que iríamos perder as próximas eleições e que lugares daqueles não se deitavam pela janela fora. Allan Holmes tinha-me informado que era sua intenção designar para o cargo um antigo funcinário do ministério da cooperação, “AID“, que eu conhecera antes naquele cargo junto da embaixada americana de nome Donald Finnberg, que tinha deixado muito boa impressão em Portugal. Também sabia que ele teria que receber um salário de pelo menos seiscentos mil escudos mensais. Mesmo assim a minha opção eram as relações internacionais do PS e não a segurança de um gabinete de luxo. Depois de consultados o PSD e o CDS através dos seus líderes de então, respectivamente Rui Machete e Lucas Pires, o primeiro manifestaria desejo de ser ele próprio a preencher um lugar no conselho executivo. Lucas Pires terá indicado Adriano Moreira para lugar idêntico mas Soares pretendia ter alguém na administração e, perante a minha desistência, a escolha recairia em Bernardino Gomes, então seu chefe de gabinete em São Bento. Assim para o conselho directivo seriam indicados António Vasco de Mello pelo CDS e eu pelo PS. Eu seria igualmente designado por despacho do primeiro-ministro, presidente do conselho directivo e, como tal, da fundação. Uma vez reunidos, o embaixador Allan Holmes, António Vasco de Mello e eu, designaríamos por unanimidade Donald Finnberg para presidente do conselho executivo.
A designação de Finnberg não agradaria muito a Rui Machete que, evidentemente, tinha um “curriculum” ministerial invejável que Finnberg não poderia apresentar. Mas os outros cinco elementos dos principais órgãos directivos eram todos de opinião que a administração da FLAD estava ali para trabalhar e justificar os seus altíssimos salários e benesses e não para fazer carreira Política. Tivesse ele optado pelo conselho directivo e então o seu “curriculum” justificaria plenamente a sua designação para presidente do conselho directivo. Este pequeno atrito impediria, contudo, que as relações de Machete com Finnberg se desenrolassem com a normalidade desejada. Assim, durante os primeiros três anos de vida da fundação o seu papel seria sempre de um relativo “low-profile” e de algumas reticências a certas iniciativas para incrementar o relacionamento com os EUA.
Poucos meses após a tomada de posse dos órgãos directivos da FLAD, o PSD sairia vencedor das eleições legislativas e, de acordo com os estatutos, a fundação passaria a depender do novo primeiro-ministro, Cavaco Silva. Nessa altura, Allan Holmes tinha regressado ao seu país e havia um novo embaixador americano em Portugal, um republicano ultraconservador, amigo pessoal do presidente dos EUA, que o substituiria no conselho directivo da FLAD. Frank Shakespeake tinha fama de “falcão” e depressa se compreenderia que o proveito tinha que ver com o facto de o novo embaixador não nutrir grande simpatia por Mário Soares. Mas a composição da FLAD nunca lhe mereceria quaisquer reparos. Pelo contrário, estaria frequentemente de acordo comigo enquanto presidente do conselho directivo e, nas várias crises que iriam ter lugar seria regularmente crítico das atitudes governamentais para com a fundação. A primeira dessas crises viria a propósito de um subsídio de dez milhões de dólares que o governo pretendia que a fundação atribuísse ao Hospital da Prelada. O primeiro-ministro quisera desde logo mostrar que era ele quem mandava na fundação, transmitindo através de Machete este seu desejo que nada tinha que ver com as áreas de actuação previamente definidas de desenvolvimento do sector económico privado, da ciência e tecnologia, educação, desenvolvimento regional e a da cultura. O ex-líder do PSD não estava exactamente de acordo com Cavaco Silva, com quem aliás não simpatizava, mas como era o único PSD na FLAD era através dele que o primeiro-ministro enviava os seus “recados”. O presidente do conselho executivo, Donald Finnberg, nunca aceitaria a exigência do governo nem o facto dela não lhe ter sido transmitida directamente e, recusá-la-ia, considerando-a uma intolerável ingerência. Seríamos assim chamados à ministra da saúde, Leonor Beleza que nos informaria mais ou menos de que a vontade do governo era para ser cumprida. O conselho directivo decidiria que na realidade a FLAD não deveria entrar em conflito com o governo uma vez que todos os seus órgãos portugueses dependiam do primeiro-ministro e se essa fosse de facto a vontade do primeiro-ministro então só nos restava aceitar ou a demissão. Nem Finnberg nem o embaixador aceitariam, contudo, tal atitude afirmando que a fundação era uma organização autónoma. Depois de reunir com a ministra da saúde receberíamos a mesma mensagem do ministro dos negócios estrangeiros, Pires Miranda e, em virtude da continuada renitência dos americanos, seríamos chamados a São Bento para um encontro com o primeiro-ministro, Cavaco Silva.
Cavaco Silva, seria extremamente cordial comigo e mesmo caloroso com Frank Shakespeare mas, praticamente, ignoraria os membros do conselho executivo. Falaria sempre em inglês num gesto de cortesia para com Shakespeare, que desconhecia a língua de Camões, e seria extremamente cordato com a posição dos americanos. Todos notariam, contudo, que sempre que Rui Machete usava da palavra nunca teria resposta do primeiro-ministro que pura e simplesmente ignoraria a sua presença. Explicaria a importância do projecto da unidade de queimados do Hospital da Prelada mas acabaria por concordar que talvez não fosse necessário ali “investir” o inicialmente pedido. E que Frank Shakespeare informaria o primeiro-ministro, que a quebra de solidariedade e de unanimidade dentro da FLAD teria como consequência inevitável o desinteresse do governo dos EUA pela FLAD. E foi exactamente o que aconteceu. Apesar do “quero, posso e mando” das insistências iniciais para financiar aquele projecto na área da Saúde, as exigências do governo de Cavaco Silva seriam substancialmente reduzidas acabando por ser “emprestados” 5 milhões de dólares àquele hospital como excepção à regra. Mas, quando Frank Shakespeare, por razões de natureza Política foi retirado de Portugal, após apenas um ano de mandato, o então “chargé d’affairs”, Alan Flanigan, pretendeu cancelar tal acordo com a ameaça de que a ser levado por diante conduziria à interrupção do financiamento da fundação. Rui Machete passaria então ao ataque, considerando a atitude dos americanos como sendo uma intolerável “intromissão” nas decisões do governo de Portugal, uma vez que, segundo ele, a FLAD era portuguesa e as verbas com que era dotada, embora oriundas dos EUA, eram dadas à fundação pelo governo de Portugal. Teria toda a razão se apenas valesse uma interpretação jurídica e restrita dos estatutos da fundação. Mas para os EUA, a FLAD tinha sido um projecto inédito suprapartidário e, embora não fossem enviar a sua sétima esquadra para defender os seus interesses, as consequências seriam sempre prejudiciais a Portugal.
Em 1985 a FLAD receberia cerca de 40 milhões de dólares e praticamente outro tanto no ano seguinte. Em meados de 1988, em dotações e rendimento obtido das suas aplicações, tinha bens superiores a cem milhões de dólares ou, na altura, mais de oito milhões de contos. No ano de 1988, o primeiro-ministro cometeria um erro de palmatória, em nome de um auto-apregoado “orgulho nacional”, que os americanos considerariam de desnecessária arrogância e que conduziria ao irremediável afastamento dos EUA deste projecto bilateral. O governo dos EUA sentir-se-ia ofendido com a atitude do governo português no caso do Hospital da Prelada. Antes, em 1984, durante a visita oficial de Mário Soares, o secretário de estado George Schultz tinha afirmado ser intenção do seu governo manter para a FLAD, a partir de 1985, uma dotação anual de cerca de 40 milhões de dólares durante um período de dez anos. Foi essa a razão que determinaria a decisão conjunta do conselho directivo e do conselho executivo em declarar o projecto como sendo de duração indeterminada. Fizeram-se contas, entre portugueses e americanos, e contava-se com aproximadamente quinhentos milhões de dólares os quais, devidamente investidos, transformariam a FLAD numa fundação não só rica mas, de duração indefinida. Foi essa a razão pela qual o conselho directivo concordou com o investimento numa sede de prestígio, cujo elevadíssimo custo, dentro dessa previsão, em nada afectaria as actividades que dariam razão de ser à fundação Luso Americana. Essas dotações, essas actividades e o excelente relacionamento com o governo dos EUA manter-se-iam durante os três anos do meu mandato e do do presidente do conselho executivo, Donald Finnberg. Em princípio de 1988 o “chargé-d’affairs” da embaixada dos EUA e membro do conselho directivo da FLAD, Wesley Egan, seria chamado a São Bento. Um acessor e não o próprio primeiro-ministro, como mandariam as boas regras — segundo os comentários que aquele diplomata me faria — entregaria ao então encarregado de negócios americano umas folhas de papel contendo as alterações que o primeiro-ministro decidira efectuar na FLAD. Wesley Egan, conhecedor da FLAD e de todo o processo de negociação intergovernamental que estivera na sua origem, perguntaria então incrédulo ao acessor Martins da Cruz se se tratava da proposta do primeiro-ministro português, para apreciação do seu governo. Este responder-lhe-ia que não, que era uma decisão já tomada pelo primeiro-ministro Cavaco Silva que, segundo os estatutos, tinha todos os poderes para as efectuar. O que era verdade. Mas em política e nas relações intergovernamentais há sempre outros aspectos de interesse comum, para não falar de cortesia, a ponderar. Existia uma troca de notas entre os dois governos com data de 10 de Janeiro de 1985 em que o governo português reconhecia que o “governo dos Estados Unidos, actuando através da Agência para o Desenvolvimento Internacional, tinha contribuído significativamente, desde 1975, para o desenvolvimento económico e social de Portugal” e seria neste contexto que se via a fundação Luso Americana como “uma oportunidade única para o estabelecimento de um novo mecanismo que visava a promoção da cooperação dos sectores privado e público entre Portugal e os Estados Unidos“.
O governo dos Estados Unidos endossaria nessa troca de notas o espírito da fundação, segundo os estatutos e o Decreto-Lei n.° 168/85 de 20 de Maio. Tal já não aconteceria com as mudanças que Cavaco Silva viria a efectuar em 11 de Fevereiro de 1988, em que decidira aumentar o conselho directivo de três para nove membros, um dos quais, por direito próprio, seria o embaixador dos EUA e outro a nomear por si. Ele próprio nomearia sete. Logo aqui os EUA veriam o seu peso reduzido de um em três para dois em nove. Depois o conselho executivo passaria também de três para cinco perdendo o governo dos EUA o direito de nomear um elemento para a administração. Finalmente o presidente do conselho executivo passaria a ser designado pelo primeiro-ministro, em vez de eleito pelo conselho directivo passando, pelo contrário, o presidente do conselho directivo a ser eleito entre os seus pares. O governo dos EUA deixava assim de ser um “partner” para ter uma presença simbólica. O executivo passava a dirigir a fundação com relevo para o seu presidente que passava a ser, de facto, o presidente da fundação. Era a total governamentalização possidónica sem qualquer redução das despesas e, pior ainda, a partidarização completa da FLAD. O presidente designado seria Rui Machete que seria acompanhado de Pires Miranda e Rui Carp do PSD. Bernardino Gomes do PS manter-se-ia e, para “por água na fervura”, seria nomeado um americano Charles Buchnanan em substituição de Donald Finnberg, que pediria a sua demissão. A FLAD deixaria então de receber financiamentos do governo português pela simples razão de que o governo dos EUA cortaria as contrapartidas destinadas à fundação de direito privado português! Em virtude das alterações estatutárias eu continuaria de 1988 a 1991 como membro do conselho directivo, tendo Jacinto Nunes sido eleito em 1988 com os votos de Pires Miranda, Sucena Paiva, Fernando Real do PSD e de Figueiredo Dias. António Vasco de Melo abster-se-ia e o embaixador dos EUA, então Edward Rowel, recusar-se-ia a votar. Eu também não estaria presente à votação. Em 1991, de forma grosseira e em termos de duvidosa legalidade, eu seria informado pelo presidente do conselho directivo, Jacinto Nunes, que o primeiro-ministro lhe comunicara não pretender designar-me para novo mandato. Para o lugar que eu ocupara no conselho directivo entraria Vitor Constâncio. António Vasco de Melo seria também substituído por Ramalho Eanes. Segundo o ex-embaixador de Portugal em Washington “o projecto não teve a amplitude desejada por culpa do congresso americano que tomou medidas prejudiciais aos pagamentos acordados. Mas essa circunstância não impediu que sectores americanos tivessem discordado das soluções adoptadas entre nós. Para esses críticos, Portugal, dentro de uma orientação terceiro-mundista, investiu parte dos fundos recebidos em instalações sumptuosas e na aquisição de obras de arte, criando além disso compromissos exagerados com despesas administrativas e deixando a ideia de a fundação ser usada para compensar políticos amigos com excelentes sinecuras” . [7]
Como já afirmei, o período governamental de 1983 a 1985 seria prejudicado pela falta de competência e pela exagerada obcessão do primeiro-ministro em encontrar fundos para a sua campanha presidencial. Para além do “think-tank” que definia a estratégia, Gomes Mota era o coordenador-geral da campanha. O gestor do PS, Menano do Amaral e Carlos Monjardino, embora não tendo acertado na estratégia para a constituição do banco do movimento socialista em 1983, estavam em perfeita sintonia para administrar financeiramente a campanha que, todos sabiam iria ser extremamente cara. Dos tradicionais partidos da IS haveria pouco dinheiro para esta campanha presidencial. Seria o primeiro contratempo. Estive em Viena, Estocolmo e Bona sem grande sucesso. Em Outubro Mário Soares pedir-me-ia para falar com Skidmore da CIA que me diria exactamente o que me tinha dito da primeira vez que o conheci. Não acreditava (sobretudo após a derrota do PS nas legislativas) que Mário Soares pudesse vencer e estava convencido que Carlucci tinha ido longe de mais no seu apoio ao PS. Dada a minha excelente relação com o embaixador Frank Shakespeare teria uma longa conversa com ele a sós, na sua residência. A posição era idêntica. No dia 31 de Outubro estava em Washington. Carlucci estava fora do governo e o seu sucessor, John MacMahon, disse-me que estava de malas arrumadas para trabalhar no sector privado e que na Casa Branca ninguém se entendia [8]. Teria assim que recorrer às reservas acumuladas a partir de 1984.
No dia 23 de Agosto de 1984 fora convocado de emergência ao fim da tarde a São Bento pelo primeiro-ministro. Como era costume e era conhecido da casa só em raras excepções, quando o primeiro-ministro tinha reuniões oficiais, é que tinha que esperar no rés-do-chão para ser recebido. Assim, logo que cheguei subi ao primeiro andar e esperei na sala adjacente ao gabinete do primeiro-ministro em cavaqueira com a Osita, a Maria José e a Maria Fernanda de Castro. Carlos Melancia encontrava-se no gabinete com o primeiro-ministro e quando ele saiu ficou também em conversa connosco até que eu seria mandado entrar. Depararia então com Hans-Jurgen Wischnewski, ex-ministro alemão e alto dirigente do SPD e uma outra pessoa, conhecida nos meios da IS como um dos angariadores de fundos daquele partido alemão. Nunca, contudo, tinha falado com ele. Soares informar-me-ia que os “nossos” amigos iriam dar uma ajuda ao partido e que eu deveria ficar em contacto com Otto Georg para o efeito. E assim fiz mas, nessa noite, o primeiro-ministro, visivelmente satisfeito, convidar-nos-ia, aos dois alemães, a mim e a Raul Junqueiro para jantar no restaurante “O Pescador” de Cascais. Mas essa ajuda estava demorada, tendo antes da eleições legislativas contribuído com cerca de dois milhões de marcos depositados numa conta bancária aberta para o efeito, e que eu depois entregaria a Menano do Amaral em cheques ao portador de cem mil e de cinquenta mil marcos. Soares estava convencido de que após o resultado das legislativas eles iriam “roer a corda”. Assim pediu-me para receber um dia na fundação de Relações Internacionais um amigo do seu amigo François Mitterrand, de nome Roger Patrice Pelat, com quem deveria combinar igualmente a maneira de fazer chegar aos administradores financeiros da sua campanha a contribuição daquele personagem que mais tarde viria a ser famoso nos escândalos financeiros relacionados com o PS francês. Achei estranho não ter encarregado Monjardino desse contacto, uma vez que este tinha vivido vários anos em França mas, responder-me-ia, que como Monjardino não era do PS tais contactos poderiam levantar objecções. Recebi-o e devo confessar que era simpatiquíssimo. Contou-me um pouco da sua história, que fora ele que apresentara Miterrand à sua mulher Daneille de quem era padrinho de casamento, falou do seu “chateau” na Normandia, onde tinha um casal de caseiros portugueses e falaria abertamente da situação interna no PS francês. Depois marcou encontro comigo em Zurique para o dia 30 de Julho, onde me deveria entregar a “contribuição”. Esperar-me-ia no aeroporto e tinha reservado quartos no hotel Dolder Grand, convidando-me para jantar nessa noite no luxuoso restaurante de “nouvelle cuisinne” Agnes. Perguntei-lhe porque não em Genebra, onde, ao contrário de Zurique, se falava francês. Responder-me-ia que não, porque as “secretas” francesas tinham invadido aquela cidade, na perseguição de evasores fiscais franceses e que poderia dar muito nas vistas. No dia seguinte levar-me-ia a um gabinete de advogados de um banco, onde me entregariam um documento para assinar. Foi então que verifiquei que a “contribuição” tinha contrapartidas que nada tinham que ver comigo. Disse-lhe então que não assinava, pois as minhas únicas instruções tinham sido as de receber uma contribuição para o PS e dado o conteúdo daquele documento sugeri que o levasse a Mário Soares para assinar. Pelat ficou extremamente embaraçado e saiu para telefonar. Quando regressou, disse-me simplesmente que tinha contactado Lisboa e que o assunto seria resolvido por outra pessoa. Foi a última vez que vi Patrice Pelat. Quando regressei a Lisboa confrontei Mário Soares que me respondeu irritado não saber de nada sobre o conteúdo do documento mas que tinha sido atrevimento da minha parte sugerir que fosse ele a assinar!
Mas Otto Georg não “roeria a corda” e entregaria mais quatro milhões de marcos que Mário Soares me instruiria a transferir em tranches para um número de conta na Companie Financiere Espírito Santo. Segundo ele, este sistema tinha sido organizado por Carlos Monjardino que iria fazer chegar aquele dinheiro a Portugal em escudos. A primeira tranche seria enviada no dia 28 de Outubro. As seguintes, teriam lugar a 19 de Novembro, 8,15 e 29 de Janeiro, a 7 de Fevereiro e a última no dia 30 de Setembro de 1986. Como eu imaginara desde a desagradável conversa de Santo Domingo em 1982, a preocupação principal tinham sido as eleições presidenciais e não as legislativas. Enquanto “correio” desconheço a origem dos financiamentos, sobretudo os nacionais, que nunca passariam por mim, e não averiguei se tinha chegado à campanha o considerável montante que Patrice Pelat me quis impingir em Zurique. Mesmo assim ainda participaria em mais duas operações de financiamento da campanha presidencial. Dois dias após ter passado à segunda volta, graças aos 7 por cento obtidos por Maria de Lourdes Pintasilgo, Soares pediu-me para ir a Madrid falar com Alfonso Guerra, vice-primeiro-ministro do governo espanhol e com Lionel Jospin, secretário-geral do PSF. Deveria fazer-lhes uma exposição sobre o significado da passagem à segunda volta e convencê-los a “ajudar” financeiramente a campanha. Nunca o PS tinha recebido qualquer apoio destes partidos e nunca o PS tinha ajudado estes partidos, nem mesmo o PSOE, que só sairia da clandestinidade três anos depois do 25 de Abril. A mensagem era simples e a aritmética condizia como uma luva no que os “técnicos” americanos tinham previsto na primavera do ano anterior! Ao chegar ao aeroporto de Madrid, estava um veículo à minha espera à saída do avião que me conduziria directamente ao Palácio da Moncloa onde seria recebido pelo chefe de gabinete de Felipe González, Julio Feo. Fui cumprimentar González no seu gabinete, com quem conversaria alguns minutos sobre as eleições e, depois conduzido ao gabinete de Guerra. Apesar da longa e amigável conversa que manteríamos então, não seria necessário convencê-lo de nada pois a dado momento entra um dos seus acessores com uma mala que me entregariam cheia de pesetas. Não estava sinceramente à espera e pedi-lhe para telefonar a Mário Soares que não encontrei. Telefonei então a Menano do Amaral, na rua da emenda, a quem contei o que se passara, pedindo-lhe que informasse Mário Soares para que tomassem as previdências que entendessem. Eu, pela minha parte, não estava disposto a levar a mala, até porque dentro de algumas horas seguia para Paris. No dia 30 de Janeiro encontrar-me-ia com Lionel Jospin que disse poder disponibilizar um milhão de francos franceses a título de empréstimo ao PS. Eu regressaria a Lisboa nesse mesmo dia e no dia seguinte informaria Jospin de que o empréstimo era aceite desde que ao candidato e não ao PS. Ele concordou e a transferência seria feita para Lisboa. Não sei se alguma vez foi paga! Quanto à mala, Menano do Amaral acompanhado por alguém, iria nesse mesmo dia a Madrid buscá-la. Segundo me contou depois, suou as estopinhas para não desmaiar com o medo à passagem da alfândega do aeroporto de Lisboa.
Eu apercebera-me de que, com a mudança de embaixador e de chefe da estação da CIA em 1985, algo tinha mudado nas relações de Mário Soares com os EUA. Em 1984 tinha sido recebido pelo presidente Ronald Reagan de forma extremamente amistosa e o encontro com o director-adjunto da CIA, John MacMahon não poderia ter corrido melhor. O ministro da administração interna tinha ido aos EUA a convite daquela organização e não existiam nenhuns indícios de qualquer mal-entendido. Frank Carlucci tinha seguramente os seus “inimigos” na administração mas, naquele momento, ninguém imaginaria que ele viesse a ser convidado de novo para funções governamentais. Eu estivera nos EUA em Junho e, de novo, em Outubro de 1985 e, nos meus contactos, nada de anormal notara nas relações bilaterais. Afinal, o presidente dos EUA alterara mesmo o seu discurso na Assembleia da República. para agradar ao “amigo” Mário Soares. Na fase final da campanha eleitoral para a Assembleia da República, em Outubro, Michael Ledeen, acessor do conselho nacional de segurança da Casa Branca e colaborador directo de Bud MacFarlane, viera a Lisboa onde teria uma longa conversa com o embaixador Frank Shakespeare. Contar-me-ia depois que os telegramas daquele embaixador com a análise da situação eram profundamente pessimistas em relação quer ao PS quer às chances de Mário Soares nas presidenciais. O que era natural, dadas as sondagens e os contactos que a embaixada tinha com todas as forças políticas portuguesas em 1985. Mas não seriam os telegramas que influenciariam negativamente os apelos do primeiro-ministro. Quando Mário Soares quebrou a “relação” com a empresa de Paul Manafort e de Lee Atwater, em Agosto, estes garantiriam que a Casa Branca seria devidamente informada da “dimensão do personagem”. Depois há toda a confusão por esclarecer à volta do escândalo da venda de armas ao Irão, que dizem, passaria por Lisboa. Será que quando se soube que os americanos hesitaram em ajudar financeiramente o PS e a campanha de Mário Soares, o governo “abriu” os olhos para as “missões humanitárias”, provocando em Langley algum agastamento?
Quando confrontado com jornalistas, Mário Soares “negaria veementemente relatórios de que aeroportos portugueses tivessem sido utilizados como plataformas de trânsito de armas destinadas ao Irão, como parte do caso “Irão-Contra“. Mais, afirmou Soares, as autoridades portuguesas rejeitaram um pedido das autoridades dos EUA para autorizarem a “ajuda humanitária” que a América estava a enviar ao Irão” [9]. O que coincide com a descrição de Bob Woodward, pelo menos no que toca ao aludido caso já referido no anterior capítulo, do pedido de 23 de Outubro pelo agente da CIA em Lisboa, Bob Skidmore. Segundo aquele conhecido jornalista e autor “na noite de 21 de Novembro, North telefonou a Dewey Clarrige [10]… em pânico e disse que necessitava de ajuda para obter autorização de Portugal para a aterragem de um avião de Israel numa missão humanitária” [11]. Ainda segundo Woodward, aquele alto funcionário contactaria o chefe de estação da CIA em Lisboa no sentido de obter tal autorização que o governo de Portugal recusaria [12]. O embaixador Frank Shakespeare não deveria ser informado desta “missão”. Segundo o mais conhecido operacional deste tráfico, o tenente coronel Oliver North, os israelitas entrariam em contacto com o conselheiro de segurança nacional, Bud MacFarlane, em meados de 1985 propondo contactos que poderiam “resultar na libertação dos (seus) reféns em Beirute” [13]. Ele próprio só terá entrado nesta “operação”, que consistia inicialmente na troca de reféns por mísseis “Hawk” de fabrico norte-americano, em Novembro de 1985. O governo americano concordaria com a venda de mísseis usados, deste fabrico, existentes em Israel, que os enviava para o Irão e, em troca, recebia mísseis novos dos EUA. Um negócio de centenas de milhões de dólares, que exigia a concordância das autoridades norte-americanas, um estranho intermediário iraniano, Manucher Ghorbanifar, com contactos com os serviços secretos israelitas e americanos e os intermediários de venda dessas armas, o ex-CIA, general Richard Secord e um ex-adido militar israelita e próspero homem de negócios, Yakov Nimrodi. Quando MacFarlane informa o seu acessor, tenente-coronel Oliver North, destas vendas com o apoio tácito do governo norte-americano, pede-lhe “só para servir de monitor destas transacções” [14]. Mas a 17 de Novembro de 1985 o então ministro da defesa de Israel, Yitzhak Rabin, telefonar-lhe-ia pedindo ajuda no sentido de obter autorização do governo de Portugal para que um avião do seu país, com mísseis “Hawk“, pudesse aterrar “num aeroporto europeu onde deveriam ser transferidos para outro avião” [15]. Portanto, o recém-empossado governo de Cavaco Silva recusara autorização a esta operação e assim se explica a desesperado telefonema do homem da CIA em Lisboa, na manhã de 23 de Novembro, querendo falar com Mário Soares e fazendo promessas de que esse apoio seria bem visto em Washington. A componente portuguesa desta história poderia acabar aqui, não fosse o livro de memórias de George Schultz, então secretário de estado dos Estados Unidos. Schultz pressentira que existia uma diversão deste esquema secreto [16] que tinha autorização do presidente e, como tal, numa reunião no “Situation Room” [17] da Casa Branca, recusar-se-ia a dar cobertura a um comunicado de imprensa, que o presidente dos EUA pretenderia divulgar. Segundo este, pretendia-se fazer crer que a actuação de Oliver North tinha sido a de mero observador da venda de armas israelitas ao Irão por razões humanitárias, tendo “encontrado, por acaso, um depósito de armas israelitas em Portugal“. O ex-secretário de estado negar-se-ia a colaborar e teria então dito ao presidente que “estão a distorcer a verdade e não acabam as mentiras. Estão-me a mentir neste momento a mim e aos outros membros do governo” sendo certo que “Bud MacFarlane estava já a trabalhar neste projecto em Maio de 1985“‘. [18]
0 resultado deste escândalo seria uma série de demissões, a todos os níveis, dos mais próximos colaboradores do presidente Ronald Reagan. Na sequência das demissões de Bud MacFarlane e do seu sucessor, almirante John Piontdexter, Frank Carlucci regressaria à política, sendo designado em Novembro de 1996 para o todo-poderoso lugar de conselheiro de segurança nacional da Casa Branca. Em 1987 substituiria o seu velho amigo Caspar Weinberger no cargo de secretário de defesa. Também o chefe da estação da CIA em Lisboa seria obrigado a regressar aos EUA. A falta do apoio pedido não resultara de má-vontade do governo americano para com Mário Soares mas sim de uma série de factores, aparentemente coincidentes: O relacionamento com a empresa Black, Manafort, Stone & Kelly e as divisões no centro de poder norte-americano que emergiriam com o escândalo “Irangate“.
Os votos em Maria de Lourdes Pintasilgo, a 26 de Janeiro, permitiriam a Mário Soares passar à segunda volta, deixando Salgado Zenha com apenas 21%. No dia 16 de Fevereiro, uma grande parte dos observadores internacionais seria surpreendida com a sua eleição para presidente da República com cento e cinquenta mil votos de vantagem sobre o seu adversário Freitas do Amaral, que na primeira volta tivera 46% dos portugueses consigo. Paul Manafort telefonar-me-ia no dia seguinte: “Como vês o segredo era Pintasilgo. Well done anyway!”, disse-me simplesmente. No dia das eleições estivera entre nós a velha amiga da família Soares, Ivanka Corti, secretária internacional do PSDI. Após o “sofrimento” na sede de campanha, entrámos em êxtase, mas ainda me recordo de duas coisas que me disse: “como vês ser primeiro-ministro não impediu a minha eleição” e “amanhã a Ivanka vai almoçar lá em casa e quero que vás lá tomar o café”. Assim faria. No dia 17, encarregar-me-ia de garantir uma presença maciça de convidados internacionais na sua tomada de posse e nasceria a Emaudio.
Nesse dia, o presidente recém-eleito estava consciente, que a direita perdera por um triz, que a sociedade se encontrava perigosamente dividida, que a sua eleição dependera do seu antigo professor Álvaro Cunhal e que o PS tinha entretanto resvalado para os seus adversários do “ex-secretariado”. No dia 17 de Janeiro, Mário Soares tinha um grande objectivo: Ser reeleito cinco anos depois. Para isso, segundo a análise de então, seria fundamental o apoio do PS e da opinião pública.
Os convites para a cerimónia da posse na Assembleia da República seriam evidentemente conduzidos pelo ministério dos negócios estrangeiros. A minha missão era a de garantir, pessoalmente, o máximo de presenças prestigiantes nessa cerimónia e a de organizar, na véspera, um banquete com os amigos socialistas. O departamento internacional não perderia tempo a fazer todo o tipo de contactos e o resultado não poderia ter sido muito melhor. Além de Frank Carlucci, estariam presentes o vice-presidente dos EUA, George Bush, François Mitterrand e o seu sucessor no PSF, Lionel Jospin, Felipe González, Betino Craxi e Willy Brandt além de Michel Roccard, Pierre Mauroy, Anker Joergensen e Carlos Andrés Perez. “A este respeito, era visível a satisfação face à quantidade e qualidade de convidados estrangeiros, cujas presenças iam sendo confirmadas” tendo “os próprios diplomatas estrangeiros se admirado como é que conseguimos, em tão pouco tempo, assegurar todas estas participações”, tendo um elemento do MASP então ironizado sobre a “”capacidade bem portuguesa” de improvisar e resolver “por vias directas” algumas situações mais complicadas”.[19] O jantar organizado na véspera, na Cruz Vermelha, seria igualmente um grande êxito. Decorreria sob os auspícios da fundação de Relações Internacionais que também assumiria os encargos com as viagens de vários dirigentes socialistas para estarem presentes na tomada de posse do novo presidente. Faltaria contudo uma das pessoas a quem o PS devia imenso: Olof Palme, assassinado uma semana antes à saída do cinema, em Estocolmo, a dois passos da sede do Partido Social-Democrata sueco.
Uma semana antes da sua morte tinha-me prometido, apesar do relacionamento entre eles não ser caloroso, que viria a Lisboa assistir à posse de Mário Soares. Em vez disso, o presidente eleito e eu, em representação do PS, participaríamos no seu funeral em Estocolmo, no dia 15 de Março.
Em 1982, quando Olof Palme regressou ao governo após um longo período de oposição, pediria para ver alguns ficheiros dos Serviços Secretos da Suécia, SÄPO, em relação a um certo número de pessoas. Segundo o ex-secretário-geral do partido sueco, Sten Andersson, diria numa entrevista à televisão da Suécia, Palme ficaria “violentamente furioso” depois de ler os relatórios contidos nos referidos ficheiros. Relacionavam-se com dirigentes social-democratas altamente colocados, que estavam a ser observados “mas continham conclusões (os relatórios) que eram totalmente inaceitáveis e as quais…, indicavam que a função da inteligência tinha falhado, tendo que existir alguma explicação para isso”. “Segundo o programa televisivo, os sociais-democratas altamente colocados, que o então ministro dos negócios estrangeiros não quis mencionar, eram: o próprio Sten Andersson, Olof Palme e Pierre Schori” [20]. As autoridades nunca encontrariam o ou os assassinos de Olof Palme. Mas há sérias suspeitas de que o não queiram fazer. Inicialmente, em 1987, um jornalista da tv, Lars Kranz, escreveria um livro considerado sensionalista [21] que lança suspeitas sobre os serviços secretos do seu país. Hans Holmér, então chefe da Polícia Judiciária, encarregado das investigações, seguiria pistas que, segundo ele [22], apontavam para um acto de terrorismo do PKK, o Partido Operário Curdo, que luta pela independência do seu povo e que conta com inúmeros exilados na Suécia. Pelo contrário, o recente livro No Labirinto [23], um livro extremamente minucioso e completo, retoma a tese de um “complot” nos serviços secretos e, embora não revele quaisquer assassinos, aponta coincidências extremamente preocupantes entre este caso e as ameaças de revelações de colaboração de vários líderes socialistas com o KGB.
Desde 1968, quando acompanhou lado a lado o embaixador do Vietename do norte pelas ruas de Estocolmo, em protesto contra a intervenção americana naquele país, que Palme era particularmente mal visto nos EUA. Segundo a sua biografia da autoria de Bjorn Elmbrant, Richard Nixon chamava mesmo a Olof Palme “that swedish asshole” [24] que “como primeiro-ministro desde o princípio dos anos 70 tentara activamente pôr fim à colaboração dos serviços secretos suecos com a CIA” [25]. Mas após uma longa interrupção ambos tinham secretamente recomeçado a cooperar para fazer escutas a um diplomata soviético suspeito de ser agente da KGB. Na própria noite do crime as escutas terão revelado que aquele diplomata tinha conhecimento de que Palme ia ser assassinado e seria lançada a teoria de que por detrás do crime estariam o PKK e o KGB. Acontece, porém, que em 1988 rebentaria um escândalo quando um colaborador dos serviços secretos, Ebbe Carlsson, foi detido tentando fazer entrar ilegalmente no país sofisticados aparelhos de escuta. Nessa altura “confessaria” estar a coordenar um grupo privado que investigava, por conta própria, possíveis ligações de Palme com o KGB. Um dos principais visados dessa investigação, com a cobertura da então ministro da justiça, Anna Greta Lejon e do chefe da polícia, Hans Holmér, seria Pierre Schori [26]. Hoje, quase dez anos depois, persiste o mistério sobre o assassinato de Olof Palme mas, à semelhança do que aconteceu com Sá Carneiro, em 1980, os suecos têm a sensação de que algo lhes está a ser escondido em nome de um interesse nacional pouco transparente.
No dia 14 de Abril de 1986, aviões bombardeiros F-111 dos EUA levantariam voo da Inglaterra para bombardear a capital da Líbia. Algumas dessas bombas, guiadas por raios laser, tinham a missão de fazer ir pelos ares o quartel-general de Muammar Kadafi que, milagrosamente, escaparia ileso. A operação destinada a pôr fim ao apoio do dirigente líbio a actos de terrorismo seria contudo um êxito militar e técnico, apesar de o voo dos aviões americanos ter de ser efectuado ao longo da costa portuguesa, dado que nenhum país do sul da Europa autorizaria que este “raid” sobrevoasse o seu território, com receio de represálias de Kadafi. O director da CIA, William Casey, que sonhara ser o secretário de estado do governo do presidente Ronald Reagan, nunca conseguira esse objectivo. Seria contudo mais influente na formulação da política externa americana do que o próprio secretário de estado. Durante o seu mandato verificar-se-ia o início do declínio do comunismo e a desintegração da União Soviética, segundo a receita legada pelo homem que em 1975, enquanto embaixador dos EUA em Portugal, tivera um papel decisivo na primeira derrota dos bolcheviques pelos democratas. Esse homem estava agora de novo na ribalta, enquanto conselheiro de segurança nacional dos EUA.
Entre os aliados com que a CIA e os EUA contariam para o apogeu da sua supremacia encontrava-se Mário Soares. Mas nem a CIA nem o departamento de estado tinham sido exemplares durante a sua campanha. Frank Carlucci que, em 1985, não conseguira influenciar essa política tinha perfeita consciência disso. O chefe da CIA em Lisboa seria “retirado”, logo após a eleição presidencial. O embaixador Frank Shakespeare, ao fim de um curto ano de funções em Portugal, seria enviado para o Vaticano. Antes, porém, seria obrigado a acompanhar o director da CIA a um jantar íntimo com o novo presidente da República, em Belém, a que eu também estaria presente. Mário Soares, aparentemente, não tivera confiança nos seus acessores e pedir-me-ia a mim para ser o “intérprete” da conversa. Casey revelaria então a segunda parte dos seus planos para a Líbia. Estes nunca viriam a ser concretizados. O escândalo de venda de armas ao Irão, para financiar os “contras” na Nicarágua, rebentaria entretanto e Casey demitir-se-ia em Janeiro de 1987. No dia 6 de Maio, um dia depois do início das audiências do caso “Irangate“, em que ele era um dos principais protagonistas, morria em Nova Iorque.
Referências Bibliográficas:
[1] Soares responde a Artur Portela, ed. cit., p.43
[2] Um grupo de 179 eanistas, encabeçados por Henrique de Barros e Medeiros Ferreira, lançariam em Março de 1980 um documento intitulado “Para Um Aprofundamento da Democracia” em que apelavam a Ramalho Eanes para intervir na política partidária, prenunciando o início do movimento que conduziria ao PRD
[3] Proclamação de apoiantes da formação do PRD reunidos em Tomar, em Maio de 1984
[4] O melhor que se pode comprar com dinheiro
[5] Lee Atwater fora vice-presidente da campanha eleitoral de Reagan e, depois, de 1981 a 1983 assistente especial do presidente. A partir de 1986 seria eleito presidente do Partido Republicano. Paul Manafort é advogado e o principal “operacional” desta empresa, que representava nos EUA Jonas Savimbi, inúmeros governos e algumas das principais empresas multinacionais
[6] Na sua biografia sobre Mário Soares (ob. cit., p.131), da Nova Cultural, 1988, Teresa de Sousa contradiz o que terá sido a verdade dos factos quando afirma que “A frieza dos números revelados nas sondagens parecia pôr cobro a qualquer veleidade ou qualquer esperança. Técnicos americanos, altamente especializados, tinham vindo a Portugal analisá-los e o seu veredicto não pudera ser mais peremptório: era impossível eleger Mário Soares porque nele se conjugavam um mínimo de popularidade e um máximo de notoriedade nacional. O rigor dos cálculos não levara, todavia, em conta a dimensão do personagem”
[7] João Hall Themido, ob. cit.. p.292
[8] John MacMahon, após ter conhecimento da chamada conexão de Lisboa, demitir-se-ia de director-adjunto da CIA para trabalhar para a empresa Lockheed
[9] The Providence Journal-Bulletin, de 23 de Maio de 1987
[10] Dewey Clarrige era chefe da divisão para a Europa, da CIA
[11] Bob Woodward, Veil, ed. cit., p.420
[12] Refere-se ao primeiro governo de Cavaco Silva, em 1985
[13] Oliver North, Under Fire, p.25, Harper Collins, Londres
[14] Oliver North, ob. cit., p.27
[15] Oliver North, ob. cit., p.26
[16] Esta “diversão” refere-se ao escândalo “Irão-Contra“, que estalaria em 1986. O esquema montado e que tinha tido como origem o desejo de libertar reféns americanos no Líbano transformara-se num chorudo negócio para alguns e numa fonte de financiamento dos movimentos “contra” da Nicarágua, os quais, liderados por Adolfo Calero se opunham à Frente Sandinista. Esta bizarra forma de financiar a luta anti-sandinista era ilegal nos EUA
[17] “Situation Room” é o gabinete de crise da Casa Branca
[18] George Schultz, Turmoil & Triumph, MacMillan Publishing Co., Nova Iorque, 1993, pp.812-815
[19] Expresso, de 8 de Março de 1986
[20] Kari Poutiainen & Pertti Poutiainen, ob. cit., p.756
[21] Lars Krantz, Ett Verkligt Drama, Krelib, Gotemburgo, 1987
[22] Hans Holmér, Olof Palme Ar Skjuten!, Wahlstrom & Widstrand, Estocolmo, 1988
[23] Inuti Labyrinten, de Kari Poutiainen & Pertti Poutiainen, Grimur Forlag, Estocolmo, 1995
[24] Bjorn Elmbrant, Palme, p.148, Fischer & Rye, Estocolmo, 1989
[25] Mikael Rosquist, Spionage i Sverige, p.131, Tempus Forlag, 1988
[26] Pierre Schori, expulso de Portugal por Marcello Caetano em 1969, é actualmente ministro da cooperação da Suécia