No tribunal do Juiz Roy Bean ou da juíza que gostava de ser Ministra da Justiça?

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Juiz Roy Bean
Juiz Roy Bean

Embora acusados sem provas e sentindo que o “ministério público deveria ter tido a coragem de bater em retirada” [1] também sabia que seria preciso coragem para sermos absolvidos pelos juízes do tribunal da Boa Hora, tendo em conta a nossa inequívoca condenação prévia nos jornais. Era o “soarismo em tribunal” [2] e a grande oportunidade de muitos ajustes de contas de interesses cruzados e de ódios reprimidos. Para além da retórica do procurador-geral-adjunto, às vezes em termos e com deduções que faziam lembrar o “jornalismo de investigação” do semanário O Independente, nada no processo poderia fazer prova de que tivesse subornado ou tentado subornar o governador de Macau. Consistia num aglomerado de autos inócuos em que se podiam detectar as contradições de Strecht Monteiro, declarações institucionais altamente favoráveis aos arguidos, como acontecia com o relatório da inspecção geral de finanças e nem uma frase que acenasse o alegado “pacto de suborno” por parte das duas dezenas de testemunhas arroladas pela acusação. “Afinal, o que é que eles tinham nas mãos? Um fax, enviado pela Weidleplan ao governador de Macau exigindo a devolução do suborno que lhe teriam pago” [3]. E “se eu enviar um fax a quem quer que seja a dizer “devolve-me o dinheiro que me roubaste”, acaso isso prova que o outro me roubou?”. [4]

O esqueleto da acusação consistia, de um modo geral, na tentativa de provar a existência de um “pacto de suborno” através do que seria impossível provar: que a Weidleplan, embora desclassificada pela própria mão de Carlos Melancia, tinha sido por este beneficiada consumando o crime de Corrupção no momento em que a “pré-qualificara”. Ora como já se disse, e como a maior parte das testemunhas o diriam igualmente, só houvera dois candidatos àquele contrato e, como tal, não existiria qualquer pré-qualificação mas apenas convites, a ambos, para a apresentação de propostas. No contrário é que poderiam ter residido equívocos embora, nesta matéria, o governador de Macau seja um autêntico “mandarim” e tenha poderes legais quase ilimitados. A maioria das testemunhas eram portanto “funcionários” ou gente ligada à administração de Macau e tinham sido arroladas pelo ministério público com a finalidade de o ajudar a “provar”, em sede de julgamento, o alegado favor. Ora, dado que o alegado pacto de suborno teria alegadamente sido feito em segredo, razão pela qual nenhumas provas seriam apresentadas para o justificar, só provando primeiro o favor se poderia eventualmente provar, depois, o pacto de suborno. Não bastaria, como alegava Maximiano Rodrigues na sua acusação, referir que o dito “pacto” tinha tido lugar, algures em território nacional, em data incerta e sido proposto ao governador, ou pelos três administradores da Emaudio ou só por um em nome dos outros… Era demasiado vago e leviano e, portanto, demasiado óbvio!

Rodrigues Maximiano

Perante a incoerência de tal acusação seria, como é evidente, requerida a instrução do processo, que caberia ao juiz Carlos Alberto Lobo do TIC de Lisboa. Este, ao fim de um ano de novos inquéritos e debates, discordaria da acusação de Rodrigues Maximiano. Discordaria sobretudo de que, nas circunstâncias descritas pela acusação, a “Weidleplan” tivesse sido favorecida e que, a ter havido tentativa de crime, ele alguma vez pudesse ter sido executado. Assim, depois de longamente explicar aos arguidos presentes na leitura do seu acórdão, em Setembro de 1991, o significado da sua decisão, remeteria o processo para julgamento em tribunal singular, no Tribunal Correccional de Lisboa. O ministério público, curiosamente, não recorreria desta decisão. O que, desde logo, tinha o significado de uma crítica velada à actuação do procurador Rodrigues Maximiano, responsável pela acusação e militantemente empenhado em a promover. Poderia, contudo, parecer que tinha, em qualquer dos casos, prevalecido um certo sentido de protecção corporativa, quer do juiz de instrução criminal que não chegaria a abertamente criticar a actuação do ministério público através de uma rejeição liminar da acusação, quer do ministério público que não recorreria da decisão daquele juiz, que desqualificara a acusação e a reduzira a matéria de somenos importância.

Mas, surpreendentemente, a 31 de Janeiro do ano seguinte, a juíza Ana Maria Grácio Alves, do Tribunal Correccional de Lisboa, para onde fora remetido o processo, tornar-se-ia conhecida do grande público ao declarar-se incompetente para julgar este caso nos termos em que vinha definido pelo seu colega do Tribunal de Instrução. Por essa alegada razão, remetê-lo-ia, de novo, para a Boa Hora e como não poderia deixar de ser, os arguidos, no seu conjunto, achariam esta decisão incompreensível e recorreriam para a Relação. Este tribunal não só acabaria por dar razão à juíza Grácio Alves, como criaria uma nova situação que, embora legal, não deixava de ser altamente polémica e bizarra. Aceitaria a separação de processos da acusação comum, permitindo ao alegado “corrupto” um julgamento separado do dos seus alegados “corruptores”. Mecanismo de duvidosa democraticidade, utilizado em certos países subdesenvolvidos para “proteger” ministros e “castigar” a arraia miúda, sobretudo a que tem o descaramento de enfrentar o poder, é utilizado no nosso país para permitir que detentores de cargos políticos acusados possam ser julgados com celeridade. Com a justificação de que a justiça é lenta. Acontece que este mecanismo é uma verdadeira aberração, uma vez que quando os detentores de cargos políticos são acusados têm a obrigação moral de se demitirem deixando, portanto, de exercer funções públicas. Por uma razão muito simples: para poderem ser julgados em igualdade de circunstâncias com os restantes cidadãos e não poderem haver dúvidas em ninguém de que utilizam imunidades e poder enquanto arguidos. Aliás, Carlos Melancia já não era detentor de nenhum cargo político e tão pouco parece que o seu processo tenha sido apressado pelo benefício daquele mecanismo. Porque é que então lhe foi concedido o benefício de ser julgado separadamente e ver o seu caso apreciado por juízes diferentes dos que apreciariam o caso dos outros? Ninguém, provavelmente, saberá responder com lógica. E, embora pesem os longos anos de ditadura que antecedeu o 25 de Abril e as tropelias e julgamentos populares que se lhe seguiriam, a justiça de Portugal, hoje sem dúvida o elo menos credível do regime, bem poderia passar sem mais esta peça rocambolesca.

Assim, o julgamento de Carlos Melancia iria iniciar-se em Abril de 1993 no 1.° Juízo da Boa Hora e o meu, um mês depois, no 3.° Juízo, a que presidiria a juíza Filipa Macedo. Em Agosto, Carlos Melancia seria absolvido e poucos meses depois, em Janeiro de 1994, eu seria condenado a quatro anos e meio de prisão por ter alegadamente “subornado” o então governador. “Apesar da acusação e das testemunhas serem as mesmas, numa sala de audiências foi dado como certo que o governador de Macau sabia que estava a receber dinheiro vindo de uma empresa alemã que o queria subornar, enquanto na outra ficou por estabelecer a origem das verbas que permitiram os pagamentos feitos a Melancia. Mais: para uns juízes, esses pagamentos visavam o suborno, enquanto os outros não foram capazes de descobrir o motivo das transacções”. “Ninguém gosta de ver a sua vida e a sua liberdade avaliadas por critérios tão subjectivos. Se é verdade que a justiça deve ser cega, ainda mais verdade é que a opinião pública deve ver bem e, sobretudo, perceber o que se passa nos tribunais”. [5]

Maria José Morgado

Durante o julgamento de Carlos Melancia a que eu seria chamado a testemunhar arrolado pela acusação [6] seria desde logo impedido pelo juiz-presidente Ricardo Cardoso de “falar de Política. Aconteceria contudo uma situação caricata que aquele tribunal não procuraria explicar convenientemente. Os acusadores insinuavam que o cheque de dez mil contos que eu emitira da minha conta e depositara na conta de Carlos Melancia, em 9 de Março de 1988, era a divisão de um pagamento do “aeroporto de Frankfurt” que o procurador-geral-adjunto Rodrigues Maximiano decidira não apurar por o considerar “estranho ao objecto dos presentes autos, em virtude da sua data”. Mas a delegada do ministério público, Maria José Morgado, iria directa ao assunto sem rodeios e sugeriria que a proveniência daquele montante tinha sido a referida empresa. Mas, embora, esse cheque fosse considerado “estranho ao objecto dos presentes autos”, porque a Rodrigues Maximiano lhe não interessara aprofundar as investigações, não perderia tempo em compreender o porquê da insistência sobre os referidos dez mil contos. Strecht Monteiro, inquirido sob o mesmo tema, diria então no julgamento do ex-governador que me tinha entregue em 1988 uma soma que variava entre os vinte e os trinta mil contos daquela empresa alemã [7]. A jornalista Sanches Osório, de quem, entretanto, para minha surpresa, Strecht Monteiro se tornara grande amigo, diria dois dias depois, com total despudor, que um administrador do “aeroporto de Frankfurt” lhe teria confessado ter pago à Emaudio uma soma de cerca de trinta mil contos e que eu lhe teria “confessado ter untado as mãos do ex-governador, em 1988, com dez mil contos”. Tudo parecia indicar que a delegada do ministério público saberia de antemão que aquelas testemunhas iriam dizer aquilo, que, contudo, eu provaria ter sido uma autêntica montagem. Só não sei é se nela colaboraria o próprio ministério público. Em qualquer caso foi um acto indecoroso para criar ambiente contra Melancia e os restantes acusados e, evidentemente, contra mim através da opinião pública. Alguns dias antes do início do julgamento de Carlos Melancia, Helena Sanches Osório, com quem eu deixara de falar três anos antes, entraria em contacto comigo e, após devida autorização e conhecimento do meu advogado, iria a minha casa no dia 16 de Abril. O motivo da sua visita, segundo invocara na conversa telefónica que tivera com minha mulher, seria urgente e visava “ajudar-me”. Dir-me-ia, então, que Strecht Monteiro iria colaborar com o ministério público e que se eu fizesse o mesmo seriam benevolentes comigo [8]. Avisar-me-ia, ainda, de que o meu advogado, Germano Marques da Silva, “estava feito com o Mário Soares“, matéria que ela alegava saber de fonte segura e que não fosse “tanso”.

Compreendi, então, a razão da súbita amizade com Strecht Monteiro, com quem a jornalista apareceria no átrio do tribunal da Boa Hora “de braço dado” numa revelação de quem com ele vinha mantendo as melhores relações. Algo que contrastava com anteriores declarações de Monteiro à comunicação social. Compreendi também a razão da sua “inesperada” ida a minha casa. Confrontada no tribunal do juiz Ricardo Cardoso com a minha denúncia desta sua estranha visita, admitiria ter, de facto, ido a minha casa naquela “curiosa” data, mas negaria ter lá ido com a finalidade de me aliciar. Alegaria “interesse jornalístico” para a visita mas, curiosamente, esse interesse não produzira antes, nem nunca chegaria a produzir, depois, nenhum artigo. Como não poderia deixar de ser eu exigiria ao juiz Ricardo Cardoso, que parecia estar a divertir-se imenso com o caso, que fosse feita prova daquela ignóbil montagem. Strecht Monteiro garantiria então ir contactar o seu banco na Alemanha para obter essa prova. Que nunca seria produzida. Mas o mal estava feito. Quando, meses depois, fui julgado, a delegada do ministério público, de novo Maria José Morgado, pretendeu evitar aquele penoso assunto. Mas eu não. Pedi que ele fosse abordado e que Strecht Monteiro produzisse então a prova que acabaria por não lhe ser exigida no julgamento de Carlos Melancia. Aí, Strecht Monteiro diria então, algo embaraçado, ter contactado “o banco alemão e que, afinal, o montante não fora de trinta mil contos mas somente de vinte mil marcos que poderiam muito bem ter ido parar a outro lado”. Estava totalmente esquecido mas, Helena Sanches Osório, embora menos esquecida, recusar-se-ia a responder às perguntas dos advogados de defesa. Coisa que os juízes do 3.° Juízo permitiriam! Ninguém seria assim acusado de perjúrio embora o país inteiro ficasse com a ideia (e era essa a ideia) de que eu “untara as mãos do ex-governador”!

Helena Sanches Osório

O julgamento fora adiado de Maio para Outubro devido à esperada não comparência da Weidleplan. Mais um bom motivo para que a verdade nunca fosse apurada nos tribunais. É que, se tivessem estado presentes e se o julgamento também tivesse a companhia do funcionário alegadamente corrompido, talvez fosse possível lá chegar e talvez fosse possível discutir política. Seria possível saber se afinal a Weidleplan viera à Emaudio propor um pacto de suborno, ou se viera atraída pelos contactos de Strecht Monteiro na presidência da República. Talvez fosse possível saber se os cinquenta mil contos eram um donativo, na esperança de poderem ser recompensados — como acontece todos os dias com os donativos políticos em Portugal — ou se lhes teriam sido dadas garantias de que receberiam um contrato em Macau. E se assim acontecera, quem lhes dera essa garantia. Enfim, poderiam, se cá tivessem vindo, explicar qual era o “seu” motivo para enviar o fax, porque é que ficaram furiosos quando ele foi divulgado, qual era o acordo de segredo proposto pelo seu advogado ao advogado de Melancia, porque é que o esconderam no escritório do seu advogado, porque é que tinham feito uma participação de falsificação contra terceiros, porque é que o seu representante de “prestação de serviços” passaria a sentir-se burlado e porque é que demoraram tanto tempo a pedir desculpa ao então governador?

Após 23 longas sessões e, contrariamente à opinião generalizada quer dos advogados quer do público, seríamos todos condenados embora com curiosas nuances. Segundo o acórdão (art.° 190) João Tito de Morais, Menano do Amaral e eu teríamos dado “conhecimento ao então governador de Macau estar a Weidleplan disposta a pagar afinal uma quantia não apurada, desde que por este governador, e no exercício das suas funções, fosse dado à Weildelplan, no âmbito das pré-qualificações em concursos, adjudicações e posições contratuais, atinentes ao “Projecto do aeroporto internacional de Macau“, um tratamento mais favorável do que a terceiros, de modo que lhe permitisse (à Weidleplan) ser a empresa pré-qualificada em tais concursos e a que obtivesse, por fim as referidas adjudicações. Mais deram aqueles arguidos, Rui Mateus, Tito de Morais e Menano do Amaral conhecimento ao então governador de Macau que a aludida quantia dos 606.000 marcos alemães, entregues na Emaudio, em 6 de Janeiro de 1989, constituíam parte do pagamento da quantia acima referida. Deram ainda tais arguidos, Rui Mateus, Tito de Morais e Menano do Amaral conhecimento de que foi da importância dos 606.000 marcos alemães que saíram os referidos 27.492.790 escudos. Em nome da Weidleplan e com conhecimento e acordo prévio de Richard Weidle, Peter Bier e o arguido Strecht Monteiro, foi proposto por estes, aos arguidos Rui Mateus, Tito de Morais e Menano do Amaral, pagar-lhes afinal uma quantia não apurada e dispondo-se a Weidleplan ao pagamento imediato de 606.000 marcos alemães, importância a dividir em proporções não apuradas entre os arguidos Rui Mateus, Tito de Morais e Menano do Amaral e o então governador de Macau. Os pagamentos prometidos visavam a prática dos actos articulados supra, pelo então governador de Macau, por si ou interposta pessoa, de modo a ser tratada a empresa Weidleplan de forma favorável e com parcialidade, vantajosamente desigual, relativamente a outros eventuais concorrentes ao projecto do aeroporto de Macau, que não disporiam daquelas condições de acesso, informação e decisão. Os arguidos Menano do Amaral, Tito de Morais e Rui Mateus aceitaram a proposta que lhes foi apresentada e de comum acordo decidiram apresentar, por intermédio de um dos arguidos, Menano do Amaral, Tito de Morais ou Rui Mateus, ao então governador de Macau, a proposta já descrita, prometendo pagar-lhe quantia não determinada para a prática por si, no exercício das suas funções de governador de Macau ou por interposta pessoa, “dos factos acima referidos”. Anteriormente, contudo, no art.° 60 do acórdão não fora dado como provado que a empresa Weidleplan “tivesse um tratamento de favor e preferencial em relação a terceiros”!

Carlos Melancia

Como é que o colectivo de juízes presidido por Filipa Macedo terá chegado a tal conclusão e com que motivações? “That is the question“, como teria dito um dos autores que a juíza-presidente, aparentemente, gosta de citar. Mas também isso nunca se saberá a não ser que a isso o Tribunal Constitucional venha a obrigar aquele colectivo. Melancia fora absolvido e, durante este julgamento, com as mesmas testemunhas e os mesmos documentos, éramos condenados a penas invulgarmente pesadas. Terá ocorrido durante este julgamento algo de novo? Factos novos? Novas pistas? Não creio, embora como diria Miguel Sousa Tavares, referindo-se ao voto de vencido que o juiz-presidente do julgamento do ex-governador decidira divulgar com pompa e circunstância, “no dia da absolvição o “protagonista principal” deixou de ser o réu absolvido e passou a ser o juiz que o queria condenar… ou seja: um cidadão entra como publicamente condenado num julgamento, graças ao “protagonismo” de uma jornalista e, embora formalmente absolvido continua a sair de lá publicamente condenado, graças ao “protagonismo” de um juiz” [9]. Não sei se a divulgação do voto de vencido do juiz Ricardo Cardoso terá tido influência na decisão do colectivo presidido pela juíza Filipa Macedo, mas que ninguém tenha dúvidas que, num estado democrático normal, uma tal divulgação, pelo juiz-presidente que acabara de sair derrotado, representaria uma intolerável “pressão” no julgamento que iria ter lugar meses depois. Uma ingerência semelhante à do chefe de estado quando afirmou estai- convencido da inocência de Carlos Melancia, as quais o regime democrático não deveria tolerar. A única explicação para a minha condenação poderia e deveria estar contida na “fundamentação” da sentença. Tentei ansiosamente descortinar o que é que de novo teria ocorrido para justificar tão grave sentença. Que documento ou testemunho teriam sido produzidos num qualquer momento de distracção da defesa? Qual a filosofia e o raciocínio aduzidos para tal condenação. Onde é que os experimentados advogados teriam falhado? Fui ler e, para além de citações de Camões, Shakespeare e Mário Soares, nada vi.

A explicação da razão que levou os juízes a dar-me como culpado não estava no acórdão. Terá sido a alusão dos juízes a Camões sobre o “metal luzente e louro” para concluírem que “os motivos que determinaram a conduta dos arguidos foram o aumento do respectivo património” e assim justificarem a agravação das penas? Ou a preocupação pela luta de classes que os levaria classificar-me como sendo da “alta burguesia”? Ou o facto de não ter, durante o julgamento, mostrado “arrependimento” e razão pela qual a pena seria, igualmente, agravada? Não tendo culpa de que pessoas de formação estalinista me tenham sempre considerado “burguês” ou da “alta burguesia”, também não achava justo que me fosse exigido arrependimento por um crime que não cometera. Mas, perante tantos anos de prisão e tão pouca explicação, teria que me contentar com a insólita fundamentação. Segundo esta, “serviram para formar a convicção do tribunal:

— o depoimento dos arguidos… que em audiência prestaram declarações, negando cada um deles que o dinheiro entregue pela Weidleplan se destinasse ao então governador de Macau, no todo ou em parte, e que lhe tivesse sido dado conhecimento dos factos dados como provados, sob o n.° 190, nomeadamente;
— o depoimento das testemunhas;
— e a prova documental”.

Strecht Monteiro

Poderia parecer que este filme se passava na Turquia. Mas não, estávamos a reviver uma espécie de “Expresso da meia-noite” à portuguesa. Todos os acusados, incluindo o homem que tinha “colaborado com a entidade policial e com o tribunal para o apuramento da verdade” — Strecht Monteiro — negariam aquela acusação. Nenhuma testemunha se referiria ao chamado pacto de suborno ou tinha conhecimento dos aludidos pagamentos ou sequer tinha a menor ideia sobre o alegado conteúdo do art.° 190. Nem uma. Se a houvesse, também o colectivo a exibiria, atrevendo-se, então, a fundamentar a sua decisão como se de um precioso troféu se tivesse tratado. Se alguma testemunha se tivesse pronunciado contra mim, certamente que eu teria reparado e as suas declarações, sem dúvida, seriam sublinhadas para justificar a justeza da sentença. E qual dos documentos ajudaria a formar a convicção do tribunal? Aparentemente todos, já que nada é dito, nada é fundamentado e nenhum deles é salientado. Como diria um mecânico onde o meu carro vai a reparações: “imagine que me vinha cá um cliente e eu lhe levava cem contos e depois não lhe especificava o que tinha feito e as peças que tinha metido”. E, de facto, é mesmo assim. O acórdão que me condena é como uma factura agravada com pesados juros, mas não detalhada e, quando isso acontece, o cliente sente-se enganado.

Mas, para meu espanto, não só não teria explicações convincentes como, uma semana depois de ser condenado, a juíza Filipa Macedo “deixava-se posar para o fotógrafo” num artigo-entrevista de tipo promocional intitulado “A juíza com juízo” [10]. “Era a primeira vez” que “colarinhos brancos” de tal gabarito eram condenados em tribunal a penas de prisão. Portugal ficou um bocado surpreendido e, também, a olhar para Filipa Macedo, a juíza que esteve por trás da decisão. Esta é a realidade, mas quem olha para Filipa Macedo imagina-a facilmente num anúncio publicitário na televisão, daqueles a desodorizante ou a champô, assim ao estilo mulher-activa. Filipa Macedo chega ao tribunal da Boa-Hora ao volante do seu Renault 4 assim com um ar desligado de bens materiais, mas não deixa de ser uma “vamp” de cabelo loiro. Veste uma calças ou saia apertadas, cintos a realçar cintura fina, nos braços usa pulseiras de ouro e na mão um anel com brazão de armas. E depois, já em declarações próprias vai afirmando que gostava de ser ministro da justiça “mas não do governo de Cavaco Silva, com os cinzentões não” e que “depois de 1974 passou pela extrema-esquerda como toda a gente. Foi da UDP, apoiou o Otelo e pôs punhos no ar. Hoje continua à volta da esquerda mas já não é da extrema. É de uma esquerda muito europeia. Muita gente da sua geração conserva os ideais. Tem convicções socialistas. Aliás a sua geração tem muito que ver com os personagens do filme “Os Amigos de Alex”. Depois admite que quando está em tribunal se entretém “a desenhar as expressões dos arguidos”, “gosta de usar citações nas sentenças”, “costuma andar acompanhada de um caderninho que enche de frases de que gosta quando vai ao cinema ou quando lê” e “usa-as quando elas se adequam ao caso em jogo”. Está convencida de que “os arguidos mais básicos têm sentido da justiça ao contrário dos colarinhos brancos, muitas vezes arrogantes e soberbos que querem fugir da justiça a qualquer preço”, embora reconheça que é “mais exigente com os colarinhos brancos” em relação aos quais se sente “a fazer justiça” [11]. Comecei então a pensar em alguns episódios passados em tribunal e fiquei aterrado. Afinal estávamos em Portugal.

Juíza Filipa Macedo

Durante todo o julgamento só uma testemunha de algum modo corroboraria as teses da acusação. A jornalista Helena Sanches Osório começaria por fazer declarações pouco precisas até que a juíza Filipa Macedo, numa situação que fazia lembrar um filme de ficção, lhe diria: “as suas declarações são tão sem chama. Olhe que estou habituada a vê-la com outra postura, mais determinada”. “Para quê?” questiona a jornalista descaradamente, “o dr. Rui Mateus já me tinha dito que isto não dava nada e não deu. Não vale a pena! O outro (referindo-se a Melancia) foi absolvido, também aqui será igual. Para quê bater-me?”. “Não — diria então a juíza-presidente — quero vê-la com a sua determinação habitual”! Passou-se em tribunal e mereceria o comentário do advogado Fernando Oliveira “A apatia virou ânimo. Todos escutamos uma nova voz, uma outra receptividade, uma integral disponibilidade, uma nova acção, por acaso até sorridente, para a acusação, já não para um qualquer defensor. A nenhum respondeu. O depoimento da testemunha Sanches Osório, única voz acusatória deste julgamento é viciado pelo compromisso de condenação anteriormente assumido na imprensa. Quem, assumindo-se magistratura, havia já condenado, não podia falar em absolvição. Mesmo aqueles que absolveram o governador não decidiram com justiça. Ou terá querido a jornalista denunciar um caso de corrupção na magistratura, por quanto sendo verdade, como disse, ter sido o governador corrompido, este foi absolvido, cumprindo-se o já anteriormente comunicado pelo dr. Rui Mateus? A testemunha Sanches Osório é interessada no processo. Ela conhece bem a responsabilidade que sobre si impede, quando acusou. Talvez isso explique o silêncio do seu jornal no decurso deste julgamento”. [12]

No dia 6 de Março de 1990 — três anos antes — limitara-se a dizer aos investigadores que a “fonte” lhe teria contado “toda a história que viria a publicar” mas que teria tentado obter “mais elementos publicáveis relativamente a uma outra questão relacionada com Macau, o que não consegue” [13]. Fiquei com a sensação de que o colectivo de juízes adorara o “protagonismo” da jornalista, mas não acreditei que pudesse aceitar as suas afirmações como credíveis. Em primeiro lugar porque eu já tinha denunciado o seu papel perjuro na intriga sobre o “aeroporto de Frankfurt” e também porque eu pediria que ela fornecesse as histórias publicadas em tempo útil para ver se se poderiam comparar às afirmações. A verdade é que antes da acusação aquela jornalista não escrevera nada que pudesse comprovar o suborno do então governador e que, a história que agora vinha contar, extraída de pretensas confissões minhas, era pura retaliação e colaboracionismo. Eu afirmara que ela me tinha tentado coagir a colaborar na campanha de O Independente a favor do candidato do CDS e contra Mário Soares em 1990 o que ela, evidentemente, negaria. Mas no seu já mencionado depoimento tinha afirmado que “ao ter a percepção de que estão preenchidas condições para “irritar” a sua fonte… tenta obter dela mais elementos… o que não consegue” e, recentemente, declararia ao semanário Diabo que afinal O Independente estivera ao serviço do CDS. Mas mais grave de tudo seria a sua última tentativa de incursão para me aliciar a colaborar contra Carlos Melancia, como eu igualmente revelara, enquanto testemunha, no julgamento de Carlos Melancia.

Em todo o julgamento foi patente o desinteresse da comunicação social, convencida que estava de que aquele julgamento não passava de uma repetição do julgamento em que Carlos Melancia fora absolvido. O que nos prejudicou, porque penso ter também desmotivado o colectivo de estar com a atenção que normalmente dá a casos observados de perto pelos jornais. Mesmo assim, a comunicação social, seria a primeira a ficar surpreendida, uma vez que sabia não ter sido produzida qualquer prova contra nós. Pelo contrário, os depoimentos dos inspectores de finanças, Conceição Graça e Fernando Cordeiro, reiterariam que o valor depositado nas contas da Emaudio era de expressão idêntica e data coincidente com a entrega da Weidleplan. Quanto às acções diriam de novo que elas tinham um valor que não puderam determinar. A delegada do ministério público voltaria então à carga, dizendo que nesse caso se podia concluir que elas nada valiam. E os dois inspectores diriam separadamente que não. Que as acções tinham valor que oscilava consoante variantes diferentes. “Então porque não fizeram essa avaliação? Seria muito difícil?” perguntaria o advogado Germano Marques da Silva. Não, seria relativamente fácil avaliar o património da Emaudio mas a procuradoria-geral da República, após aquele relatório, não quis fazer essa avaliação, afirmariam. Ainda sobre as acções, a super-informada jornalista Sanches Osório até sobre o seu valor das acções tinha, aparentemente, conhecimentos e voluntariaria que o dr. Medina Carreira teria dito que elas nada valiam. Sendo ele um conhecido especialista e um conceituado ex-ministro das finanças para além de membro da comissão liquidatária da Emaudio uma tal afirmação seria, sem dúvida, extremamente importante. A delegada do ministério público arrolá-la-ia imediatamente. Mas não, segundo Medina Carreira, a posição de Melancia na Emaudio valia então e continuava a valer mesmo na fase da liquidação.

Medina Carreira

Mas o mais estranho deste segundo julgamento seria a total ausência de testemunhas da acusação com capacidade ou conhecimento de causa em relação ao alegado “pacto de suborno”. Tudo giraria, duma perspectiva da acusação, à volta do favor que se não provaria. Todas as declarações e toda a prova documental relativa ao alegado suborno era favorável aos arguidos. Desde o relatório das finanças, à ausência de quaisquer sinais de repartição “em proporções não apuradas” das “quantias não apuradas”, segundo pacto de suborno alegadamente estabelecido “em local indeterminado do território nacional” em data também nunca apurada. Não havia indícios desse suborno nas contas da Emaudio nem nas nossas contas particulares, ao mesmo tempo que constavam — isso sim — depósitos coincidentes com o valor em escudos dos 606.000 marcos alemães em contas da Emaudio. E, à excepção da jornalista, nem uma única testemunha pronunciaria a menor suspeita sobre o alegado suborno do governador.

A história que Rodrigues Maximiano contara não tinha a menor coerência ou lógica. Era evidente, mesmo que o procurador-geral-adjunto quisesse dar a entender que eu teria actuado como uma espécie de “kamikaze“, que se o fax fosse verdadeiro nunca a Weidleplan o enviaria, comprometendo-se a si própria. Da empresa, que o enviara, tratara-se de coagir o então governador e, da minha parte, que o divulgara, tratara-se de um míssil político. Seria também elementar que o aparecimento da Weidleplan em Portugal através de Strecht Monteiro se fizera por causa das alegadas relações deste com a presidência da República, detentora do poder real em Macau — onde se pretendiam as adjudicações — e não por causa dos administradores da Emaudio, que nenhum poder tinham para poder conceder ou prometer o que quer que fosse. E com os grande negócios a decorrer em Macau — com a construção do aeroporto, do aterro da Praia Grande e a concessão das telecomunicações, para dar só alguns exemplos — logo a Emaudio se iria mergulhar num pequeno negócio com a Weidleplan quando, se quisesse tentar subornar alguém, seria mais lógico tentar intervir nos negócios graúdos? E não seria disso exemplo, conforme depus logo da primeira vez, que seria eu próprio a rejeitar a participação da Interfina na Emaudio pelas razões já aduzidas? Essa, sim, uma participação de centenas de milhões de contos. E Melancia, com todas as oportunidades ao seu alcance e com os poderes de um “mandarim” ia meter-se numa coisa de “tostões” à mercê de depósitos atabalhoados de grupo feitos por intermédio de funcionários? E os administradores da Emaudio, que se afirma serem da “alta burguesia”, aceitariam repartir o que restava daqueles cinquenta mil contos, em proporções tão pequenas, que nem para as alegadas viagens a Macau chegaria! Seria, contudo, mais lógico acreditar no caminho para que apontaria a IGF e concluir que o dinheiro fora depositado em contas da Emaudio porque se tratara de uma dádiva política quando se sabia que a própria IGF detectaria, sem quaisquer dificuldades, o inter-relacionamento da Emaudio com o presidente da República e os institutos da área socialista, incluindo a passagem da Imprinter para o PS, poucos meses antes do início do inquérito.

Supremo Tribunal de Justiça

Insatisfeito com a decisão do colectivo presidido pela juíza Filipa Macedo, da sua ausência de fundamentação e até do que o conhecido professor de direito Penal Figueiredo Dias consideraria serem erros no enquadramento jurídico-penal dos factos e sobre a determinação da medida concreta da pena, recorreria para o Supremo Tribunal em Janeiro de 1994. Segundo o professor Marques da Silva afirmaria então, “o conhecimento da jurisprudência do STJ quanto à questão da fundamentação não impede os recorrentes de invocarem argumentos que em seu entendimento e de parte significativa da doutrina nacional e estrangeira contrariem aquela orientação, tanto mais quando entendem que a questão é fulcral na problemática mais geral da legitimação democrática do poder judicial e constitui, no quadro actual do nosso sistema processual, a única garantia contra o eventual arbítrio das decisões judiciais em matéria de facto”. O arcaico funcionamento dos tribunais e administração da justiça em Portugal, à semelhança dos países do Terceiro Mundo, não adoptou, até agora, o hábito de registar os julgamentos, impedindo qualquer apreciação da matéria de facto pelos tribunais de recurso, quase impossibilitando qualquer defesa do arguido contra o arbítrio de juízes mal preparados e, nalguns casos, de formação totalitário-comunista. Só através da fundamentação das decisões dos tribunais, como se depreende do direito de defesa que resulta da constituição, seria possível colmatar esta deficiência. Ou, como diria o professor Gomes Canotilho, é preciso “que a independência no exercício da função jurisdicional não transforme os juízes num poder silencioso, opaco e incontrolável”. A fundamentação das sentenças “possibilita o conhecimento da racionalidade e coerência da argumentação do juiz e permite às partes interessadas invocar perante as instâncias competentes os eventuais vícios e desvios das decisões dos juízes”.

Tribunal

Foi exactamente isso que aconteceu com o tribunal da juíza Filipa Macedo onde a sentença não seria, quanto a mim, minimamente fundamentada. Ora, dado o sentimento generalizado de que em todo o julgamento não fora produzida qualquer prova contra mim, ficaria, sem essa fundamentação, com a sensação de que o aparente desagrado da juíza em relação aos “colarinhos brancos” a poderá ter influenciado a julgar sem prova e contra a prova. Para evitar que os tribunais portugueses permaneçam autênticos tribunais do juiz Roy Bean [14], “a decisão penal deve conter não só a expressão clara dos factos que conduziram à decisão, por um lado, e os fundamentos de direito, por outro, mas também os meios probatórios que levaram a autoridade judiciária a decidir como decidiu, assim como as regras da experiência, a lógica ou a razão em função das quais pelas provas produzidas se julgaram provados os factos pelos quais se decide. Trata-se, pois, de referir os elementos objectivos de prova que permitam constatar se a decisão respeitou ou não a exigência de prova, por uma parte e indicar o iter formativo da convicção, por outra, isto é, o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir comprovar se o raciocínio foi lógico, ou se foi irracional ou absurdo, por outro. A mera indicação dos elementos de prova, não preenche qualquer função. O sentido das provas que contrariam o das que expressamente se referem na sentença — e que contrariam o sentido da decisão — ficarão para sempre no segredo dos deuses, isto é, no caso, dos senhores juízes! Nem os arguidos, nem os demais intervenientes processuais, nem o público que assistiu à audiência, nem o tribunal de recurso têm nada a ver com a razão de decidir; os senhores juízes decidiram, decidido está, e necessariamente bem decidido. Ninguém, também os arguidos, tem direito a esclarecer a razão porque são declarados culpados, têm apenas sujeições, as de se submeterem ao juízo que os condena, sem apelo nem agravo” [15]! É evidente que a razão pela qual eu seria condenado ficaria no segredo dos juízes. Mas, Filipa Macedo espantar-se-ia que, após ter condenado sem quaisquer “explicações”, as pessoas estivessem “a especular um bocado em relação à comparação com o processo anterior de Carlos Melancia[16] explicando então que “no mundo jurídico é perfeitamente possível que estas coisas aconteçam” [17]. A “opinião pública deve ver bem e, sobretudo, perceber o que se passa nos tribunais” [18] quando não ficamos como antigamente, quando alguns juízes não fundamentavam as suas decisões por “vergonha resultante das deficiências das mesmas decisões, enquanto outros, mais indulgentes ou mais politizados, procuravam explicá-la simplesmente pelo carácter soberano do poder de julgar”. [19]

Quanto à medida concreta da pena também todos os advogados que, segundo a juíza-presidente, “eram bons tecnicamente” [20], estariam de acordo em que o colectivo de juízes, mesmo que tivesse sido capaz de fundamentar a sua decisão, se teria enganado “tecnicamente” quanto à pena recomendada pelo código penal. Para isso socorrer-se-iam de um parecer do professor Figueiredo Dias, presidente da comissão do código de processo penal, em que este aponta dois tipos de erros cometidos pelo colectivo a que presidiu a juíza Macedo. Por um lado, as razões aduzidas para agravar as penas — “falta de confissão, ausência de arrependimento e intenção de corromper o governador” — não podiam “ser licitamente admitidas como instrumentos de determinação da medida da pena”, uma vez que a “falta de confissão dos factos não pode agravar a responsabilidade do agente” nem tão pouco a falta de arrependimento. Por outro lado, “a agravação da pena, em virtude de ter sido intenção dos arguidos corromper o governador de Macau, é um caso típico — dir-se-ia mesmo: exemplar! — de violação da proibição da dupla valoração dos factos: é justamente por força dessa “agravante” que os arguidos são condenados, pelo que os mesmos factos fundamentadores da condenação não podem ser de novo valorados para agravar a medida da pena” [21]. Por outro lado, não tendo o tratamento de favor à Weidleplan sido dado como provado e dado que quer a “pré-qualificação” [22] quer a “adjudicação dos contratos” [23] já citados “só constituiriam actos ilícitos na medida em que fossem determinados por um tratamento preferencial motivado pelo suborno, visto que só aí estaríamos perante uma violação do dever de imparcialidade”. Ora não se provou, nem poderia ter-se provado, que a Weidleplan tivesse sido favorecida, “o que significa que não se provou, por um lado, que o acto constitutivo da pré-qualificação tivesse sido determinado pelo oferecimento do suborno e, por outro, que a Weildelplan tivesse sido tratada preferencialmente”. Assim, “perante a análise dos factos, impõe-se a conclusão de que o acto a que o cometimento do crime de corrupção activa se destinava não foi executado” [24]. A não aceitação desta tese conduzir-nos-ia ao estudo da metafísica e, em última análise, à elaboração de conceitos morais obsoletos. Um pouco como tentar descobrir se seria o ovo ou a galinha que teria aparecido primeiro. Segundo a acusação, o acto de corrupção consuma-se com a simples promessa. É uma maneira de ver as coisas, sobretudo no actual movimento fundamentalista da magistratura, com o qual discordo mas que enfim, aceito para efeitos de raciocínio. Transportando este conceito para a prática, verificar-se-ia que, em casos de suborno, dado o evidente secretismo de que estão rodeados, só seria possível provar a promessa através da denúncia por parte do funcionário que se tentava subornar. Quer dizer que, a não ser que haja registo do acto, e dadas as sempre maiores responsabilidades do funcionário, a promessa só se prova com a denúncia. Nesse caso, estaríamos perante um acto consumado de corrupção activa em que bastaria a promessa do corruptor. Mas a não existir tal denúncia, como seria obrigação dos deveres do funcionário público, ou o acto se consuma por ambos, com a sua execução, ou será sempre solicitação por parte do funcionário e nunca promessa. Tendo em conta, portanto, que a Weidleplan não recebeu nenhum favor, que não há provas materiais da existência de um pacto de suborno, que o alegado funcionário corrupto nem favoreceu o seu alegado corruptor nem o denunciou, então estamos perante um crime que só existe na mente do acusador.

professor Figueredo Dias

Lamentavelmente, o Supremo Tribunal de Justiça, sem condições nem legislação que lhe permitam avaliar se, em sede de julgamento, fora feita prova ou a decisão resultara do arbítrio ou da incompetência dos juízes de primeira instância, também optaria por manter o seu alheamento aos aspectos fundamentais dos direitos do cidadão. Em decisão de Abril de 1995, ignoraria os recursos e o parecer do professor Figueiredo Dias sobre a matéria de direito, quer em relação à medida da pena quer em relação às circunstâncias e motivações que levariam a primeira instância a agravá-la. Quanto a mim, contudo, o STJ cometeria dois erros graves: declararia existir “exaustiva fundamentação” no acórdão do tribunal da juíza Filipa Macedo e consideraria que “são os corruptores que geram os corruptos”. Todos sabem que o STJ não é exactamente um órgão combativo e inovador na defesa dos direitos do homem e é frequentemente associado mais à defesa da corporação dos juízes que dos recorrentes. Mas poderia limitar-se a decidir nesse sentido, sem expandir teses fundamentalistas de que a opinião pública — os cidadãos — não compartilham. Poderia simplesmente dizer aquilo que todos já sabem: que o STJ não aprecia se houve ou não justiça praticada na primeira instância, quer porque não se debruça sobre a matéria de facto, quer porque lhe é indiferente que os juízes expliquem aos arguidos e ao país o que motiva as suas sentenças. Mas, confirmar que uma decisão em que apenas se diz que “serviram para formar a convicção do tribunal: o depoimento dos arguidos, o depoimento das testemunhas e a prova documental”, é “exaustiva fundamentação”, é, no mínimo, ridículo. Dizer que “são os corruptores que geram os corruptos — são excepcionais os casos de corruptos sem corruptores”, é o mesmo que dizer que a galinha apareceu antes do ovo. Está muito na moda entre os “fundamentalistas” e lembra um pouco práticas da inquisição para proteger detentores do poder.

O cidadão comum, que tem que obter a sua licença de construção, ou resolver um problema burocrático, ou o empresário que, como Benedetti diria na Itália, tem que pagar luvas para poder manter a sua empresa em funcionamento, não estariam certamente de acordo com o conselheiro Herculano Lima do STJ. Quase todos sabem, pelo contrário, que são os funcionários corruptos que solicitam e geram a corrupção, razão pela qual a filosofia do próprio código penal considera que “do ponto de vista da ofensa ao bem jurídico, a conduta do corruptor nunca é tão grave como a conduta do corrupto”, pelo que as penas para o corrupto são muito mais severas do que para o corruptor. A meu ver, a filosofia da decisão do STJ também está profundamente errada não só de um ponto de vista formal como de um ponto de vista ético. Ao aceitar, como faz o acórdão do tribunal a que presidiu a juíza Filipa Macedo, que tão tendo Carlos Melancia favorecido a Weidleplan e, não tendo, portanto, executado o crime de que era acusado, mas que eu, ao alegadamente lhe dar ou prometer dar dinheiro, tinha executado o crime, o STJ está a dar cobertura a uma verdadeira heresia. O professor Figueiredo Dias afirmaria com clareza e determinação que a ter-se dado como provada a acusação segundo o art.° 190 do acórdão, o tribunal de primeira instância tinha cometido um erro: aplicara a pena errada o que, necessariamente, implicaria uma radical substituição da moldura penal. Doutro modo, “a não aplicação desta atenuação…poderia levar ao resultado incompreensível de, no seio do mesmo processo, o corruptor vir a ser punido com prisão até 6 anos e o funcionário por ele corrompido, que embolsou a peita e não a restituiu, ver o limite máximo da sua punição reduzido para um ano de prisão, só porque decidiu, porventura com intuitos fraudulentos, não executar o acto…” [25]. O STJ não estaria, contudo, de acordo ficando-se a saber, que, segundo tal critério, é possível, em Portugal, que um governante possa vir a “solicitar” um milhão de contos a um construtor para lhe adjudicar a construção de uma autoestrada e, depois, guardar o dinheiro e adjudicar a estrada a outro concorrente. Em tal hipotético caso o governante sujeitar-se-ia a uma pena de prisão máxima de um ano enquanto o construtor ficaria sem o seu milhão de contos e ainda iria parar à cadeia até um máximo de seis anos. “Ad litteraml”

Notas:

[1] Miguel Sousa Tavares in Público, de 6 de Agosto de 1993

[2] Visão, de 8 de Abril de 1993

[3] Miguel Sousa Tavares in Público, de 6 de Agosto de 1993

[4] Miguel Sousa Tavares in Público, de 6 de Agosto de 1993

[5]Justiça cega ou confusa?”, Expresso de 15 de Janeiro de 1994

[6] No meu julgamento também Carlos Melancia seria arrolado enquanto testemunha, quer da acusação quer da defesa. Este recusar-se-ia a falar, alegando a sua qualidade de arguido do mesmo processo noutro julgamento!

[7] Embora Strecht Monteiro colaborasse nesta farsa insinuando um crime novo e aparecendo então perante a comunicação social como um “arrependido”, negaria sempre, naquele julgamento, a existência de acto ilícito. Tratava-se de um acto de “relações públicas” para criar convicção, depois, aparentemente, reconhecido como colaboração para o apuramento da verdade. Note-se, contudo, que ao longo de três anos de infindáveis declarações para os autos de Monteiro e inúmeros artigos na Imprensa seria a primeira vez que tal história era “abordada”!

[8] Nunca conseguiria apurar se esta visita se realizou por iniciativa pessoal num “freelance” da jornalista ou se ela envolvia algo mais complicado

[9] Público, de 6 de Agosto de 1993

[10] Revista Vida do semanário O Independente de 21 de Janeiro de 1994

[11] Declarações da juíza Filipa Macedo à revista Vida do semanário O Independente de 21 de Janeiro de 1994

[12] Alegações finais do dr. Fernando Oliveira. Janeiro de 1994

[13] Depoimento de Helena Sanches Osório à procuradoria-geral da República, 16 de Fevereiro de 1990

[14] Roy Bean foi um juiz americano do século passado que declarava os arguidos culpados logo no início do julgamento a fim de evitar despesas públicas

[15] Resposta do advogado professor Germano Marques da Silva, ao visto do ministério público

[16] Revista Vida do semanário O Independente de 21 Janeiro de 1994

[17] Revista Vida do semanário O Independente de 21 Janeiro de 1994

[18] Expresso de 15 de Janeiro de 1994

[19] Recurso do professor Germano Marques da Silva

[20] O Independente de 21 de Janeiro de 1994

[21] Professor Figueiredo Dias, parecer de 11 de Fevereiro de 1994

[22] Como já foi dito não houve pré-qualificação mas tão só convite às únicas duas empresas que se apresentaram

[23] A Weidleplan, empresa acusada de ser beneficiada, seria desclassificada em Maio de 1989. A empresa vencedora não foi acusada nem ouvida no processo

[24] Professor Figueiredo Dias, ob. cit

[25] Professor Figueiredo Dias, ob. cit

Fonte: Livro «Contos Proibidos – Memórias de um PS Desconhecido» de Rui Mateus

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