«A finalidade da nossa associação é o conhecimento de causas e secretos movimentos das coisas e o alargamento dos confins do império humano à produção de todas as coisas possíveis.»
– Francis Bacon descreve o objetivo da academia de ciência prevista no seu livro «Nova Atlântida», em parte concretizada com a fundação da Royal Society em Londres, 34 anos depois.
Historicamente, uma das principais formas de especulação racional sobre o futuro tem sido a chamada ficção utópica, criando sociedades imaginárias distantes no tempo e espaço do autor. O género literário adoptou tal denominação devido à «Utopia», de Thomas More, obra publicada em 1516; o título tem duplo sentido, jogando com a palavra grega outopos, que significa «em parte alguma», e também com eutopos, «um bom lugar». Contudo, mesmo quando estava a escrever, More tinha conhecimento de livros utópicos anteriores dos tempos clássicos, tendo ele próprio citado «A República», de Platão.
Os escritores que descreveram utopias (foram muitos os que se seguiram a More) interessavam-se, por norma, pelo estado de sociedade existente e como esta poderia ser melhorada. Até ao surgimento da ficção científica em tempos mais recentes, os escritores não se dedicavam especificamente a prever o que o futuro poderia reservar. No entanto, ao especular como podiam ser melhoradas as sociedades em que viviam, acabaram por criar pontos de partida para o desenvolvimento social. Alguns tornaram-se profetas por associação, já que os seus livros ajudaram a formar, pelo menos em parte, o mundo que descreveram.
Thomas More era um jovem quando escreveu «Utopia». Advogado brilhante e amigo do grande humanista do Renascimento Desidério Erasmo, estava no limiar da carreira que o levaria treze anos depois ao mais alto cargo da magistratura judicial inglesa, presidente da Câmara de Lordes de Inglaterra. More era igualmente um homem de princípios, cujas crenças acabaram por colocá-lo em conflito com o seu rei, Henrique VIII. Quando este resolveu romper com Roma e criar uma igreja independente de Inglaterra, More opôs-se a aceitar a mudança, sendo decapitado por traição em Tower Hill, Londres, em 1535.
A principal intenção de More ao escrever «Utopia« era conservadora. Lamentava o desaparecimento de uma Inglaterra mais antiga, simbolizada pelo sistema de aldeias comunitárias da Idade Média, e a sua substituição por uma Economia de mercado, permitindo ao «homem rico comprar tudo». À luz dos instintos políticos de More, o mais surpreendente é perceber que, se a sua visão social sugere algo no mundo moderno, esta refere-se certamente à China do Presidente Mao.
Um precursor do comunismo
A utopia de Thomas More é um estado agrícola, onde a propriedade é comum e não são permitidas iniciativas privadas. As únicas distinções entre indivíduos baseiam-se no valor e mérito, não em classes sociais. A sociedade é organizada em torno de unidades agrícolas sustentando pelo menos 40 pessoas, embora nesta utopia, ao contrário da China de Mao, estas fossem voltadas para a família. O dia de trabalho é limitado a seis horas e há palestras matinais para os que procuram o autoaperfeiçoamento. As refeições são colectivas e acompanhadas de leituras construtivas. Há até um intercâmbio regular de trabalhadores das cidades para o campo e vice-versa, para evitar que a população urbana perca a sua ligação à terra.
Riquezas e quaisquer tipos de ostentação são desprezados. Na utopia, os penicos são feitos de ouro e prata para desprestigiar os metais preciosos e as joias são vistas como brinquedos de crianças; quando um embaixador estrangeiro chega coberto de jóias, é recebido com escárnio por se comportar «como se ainda fosse uma criancinha». O vestuário é simples e destina-se a cobrir o corpo, não a exibi-lo. O jogo é proibido e também os advogados são proibidos «para que haja menos circunstância de palavras e a verdade seja logo desvendada». Os casais de namorados são incentivados a verem-se despidos antes do casamento, para evitar incompatibilidades sexuais, mas as relações adúlteras são condenadas ferozmente, sendo os culpados punidos com «o cativeiro mais atroz».
Porém, a utopia é, noutros aspectos, marcadamente anti-maoísta. A religião é central para a sua existência, embora a fé seja racional e não opressora (os sacerdotes são «de grandiosa santidade e, por isso, pouquíssimos»). Existe uma ênfase geral na generosidade e bondade. A caça de animais é condenada como «a mais baixa, vil e abjecta forma de carnificina»; e a carnificina em si (o abate de gado) é considerada de tal forma degradante que é deixada para uma pequena classe de servos a quem é negada cidadania plena. Para a mente utopista, a Guerra é detestável e inglória; perante a possibilidade, é melhor assassinar um líder inimigo do que ver milhares de soldados a morrer. No caso de ser impossível evitar um estado de Guerra, os utopistas preferem recorrer a mercenários em combate, lutando eles próprios somente em último caso.
Num estilo muito moderno, Thomas More utiliza artifícios estruturais para se distanciar da sua própria narrativa. Apresenta-a como um conto ouvido numa viagem que fez à Holanda, Bélgica e Luxemburgo, em 1515, de um marinheiro português que viajara com Américo Vespúcio (explorador que deu nome às Américas). O autor utiliza mesmo o distanciamento para comentar com objetividade a sua própria criação (apresenta a utopia como uma interessante sociedade alternativa, cativante em alguns aspetos, impraticável noutros). A sua obra teve sucesso imediato. O livro foi traduzido para quase todas as línguas europeias mais importantes (incluindo inglês, pois ele escrevia em latim) e deu origem a uma série de imitações.
A casa de Salomão
Um dos livros mais interessantes inspirados por «Utopia» foi o inacabado «Nova Atlântida», de Francis Bacon, escrito em 1626. Se a obra de Thomas More reflectia o humanismo renascentista, a de Bacon era o resultado do despontar de uma era da Ciência. Também esta história tem como cenário uma ilha recentemente descoberta, neste caso Bensalém, situada algures no Pacífico. Grande parte da obra é dedicada à descrição de uma só instituição, um protótipo de academia científica (conhecida como a Casa de Salomão ou o Colégio dos Trabalhos de Seis Dias) que tem papel de destaque na administração do Estado. Havia bons motivos para o destaque: Francis Bacon, um homem ambicioso, tinha esperança de convencer o rei Jaime I (que gostava de ser tratado como «o novo Salomão») a criar uma tal instituição em Inglaterra.
Os investigadores de Bacon dedicam-se a pesquisas cooperativas em áreas tão variadas como a física, química, Astronomia, agricultura e medicina. Para garantir que o trabalho tem aplicações práticas, o colégio emprega três «benfeitores», cuja função é «concentrarem-se, estudando as experiências dos colegas, e procurar retirar delas utilizações e práticas para a vida e o conhecimento dos homens». Esta preocupação com a aplicação da Ciência resultou em avanços tecnológicos: os habitantes de Bensalém conseguem voar e viajar debaixo de água e desenvolveram uma espécie de microfone. Dedicam-se, ainda, a algumas áreas menos atraentes da Ciência moderna, incluindo a vivissecção e experiências genéticas interespécies.
A obra de Francis Bacon revelar-se-ia bastante profética num aspecto importante: a sua ideia central foi posteriormente concretizada com a fundação, em 1660, da Royal Society, em Londres. Tal como a Casa de Salomão, a sociedade dedica-se a incentivar a cooperação científica inter-disciplinar. Como as ideias de Bacon estavam consolidadas na mente das pessoas que actuavam a favor da criação da sociedade, tal pode ser tido, pelo menos em parte, como uma previsão cumprida.
Previsão do totalitarismo
O italiano Tomás Campanella, um contemporâneo de Francis Bacon, era igualmente fascinado pelo potencial da Ciência. No caso de Campanella, este entusiasmo revelou-se perigoso, já que era um monge dominicano e o seu interesse por novas ideias provocou um conflito com a Igreja. As suas posições políticas radicais também lhe trouxeram problemas, originando a escrita da sua obra mais conhecida, «A Cidade do Sol», durante o período de vinte e sete anos que passou nas prisões da Inquisição.

À luz das tribulações pessoais de Campanella, é quase decepcionante descobrir que a sua cidade ideal é um local pouquíssimo atractivo. Construída numa colina algures no Oriente, a Cidade do Sol é governada num regime quase monástico por um governante filósofo austero, o Metafísico, escolhido pela erudição enciclopédica. É apoiado por três assistentes superiores, cujos títulos são Poder, Sabedoria e Amor.
Este trio controla de forma quase absoluta a vida dos cidadãos, que, sob a sua ordem, têm de mudar de residência a cada seis meses para não criarem qualquer ligação perigosa à propriedade pessoal. Todos vestem túnicas brancas até aos tornozelos, lavadas uma vez por mês e mudadas quatro vezes ao ano. O sexo é rigorosamente controlado e «não visa o prazer do indivíduo, mas sim o bem da república». Os magistrados decidem quem deve dormir com quem, baseados em princípios eugénicos. Por exemplo, homens gordos têm de se unir a mulheres magras e vice-versa, para gerar crianças satisfatoriamente bem proporcionadas. Os astrólogos e médicos determinam, em consulta, a hora adequada para o encontro e, na altura devida, «depois da digestão e de terem rezado», o feliz casal é conduzido até um quarto decorado com «lindas estátuas de homens ilustres, para que as mulheres, ao vê-los, possam pedir ao Senhor para lhes dar filhos bonitos».
Uma das ideias mais originais de Tomás Campanella foi decorar os muros da cidade com obras de arte instrutivas, ilustrando tudo desde fórmulas matemáticas às diferentes formas de vida animal e vegetal, explicadas em legendas. Campanella acreditava, de forma optimista, que as crianças expostas a esta publicidade pedagógica ubíqua completariam o processo de aprendizagem educativa aos dez anos de idade, podendo, então, esperar uma vida de trabalho incessante, pois, pelo menos para os homens, «o trabalho mais cansativo é o mais digno de louvor».
Apesar de bem-intencionada, a Cidade do Sol é incontestavelmente totalitária e o destino das utopias foi perder muito do encanto com a perspectiva do totalitarismo em si se tornar uma realidade. Com as sociedades cada vez mais organizadas e controladas, a ideia de governantes autoritários a ditar todo e qualquer aspecto da vida de um cidadão, mesmo pelas melhores razões, foi perdendo o interesse. No Século XX, o processo estava completo: a utopia, na qual tudo era para o melhor, deu lugar à distopia, uma terra de pesadelo de sujeição e desespero. O caminho da ilha imaginária de More acabou por não conduzir à sociedade ideal, mas sim às obras «Admirável Mundo Novo», de Huxley, e «1984», de Orwell.
Gulliver e as Luas de Marte
Um dos grandes sucessos de previsão está no romance clássico sobre mundos imaginários de Jonathan Swift, «As Viagens de Gulliver», publicado em 1726. Ao descrever as ciências avançadas da ilha flutuante de Laputa, Swift mencionou que os astrónomos laputanos descobriram «duas estrelas menores, ou satélites, que circulam em torno de Marte». Isto foi mais de 150 anos antes da primeira observação das duas luas de Marte, Fobos e Deimos, por parte de Asaph Hall do observatório naval norte-americano em Washington, em 1877. O escritor especificou ainda que ambas as luas orbitavam o planeta a distâncias de, respectivamente, três e cinco vezes o seu diâmetro e que a duração das órbitas era de dez e vinte e uma horas e meia. As distâncias reais são de aproximadamente 1,5 a 3,5 vezes o diâmetro do planeta e os períodos siderais de oito a trinta horas.
Fonte: Livro «As Profecias que Abalaram o Mundo» de Tony Allan